Elke Maravilha: o legado da mulher multifacetada

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Muitas pessoas conhecem o seu nome, o seu rosto e sua estética exagerada digna de ser chamada de drag queen, mas quem de fato foi essa mulher multifacetada, com uma filosofia de vida e sabedoria invejáveis?

Filha de um pai russo e mãe alemã, Elke Grünupp nasceu em 1945 na Alemanha, apesar de sempre ter alegado ter nascido na Rússia. Fugindo com seus pais da pobreza causada pela Segunda Guerra Mundial, mudou-se para o Brasil aos 6 anos, onde sua família se dedicou ao cultivo de plantas para o sustento da família.

Elke com seu acervo de objetos [Imagem: Divulgação/Guillermo Giansanti].

Foi professora, atriz, modelo, cursou cadeiras nos cursos de filosofia, medicina e letras, se formando como tradutora e intérprete de línguas estrangeiras. Era fluente em 8 idiomas e possuía um vasto conhecimento sobre filosofia e cultura, sendo uma verdadeira obra ambulante, tanto esteticamente quanto pelo seu conteúdo. Muitos se chocavam com a extravagância de suas maquiagens e roupas, comparando seu estilo com as de drag queens, mas se chocavam ainda mais com a suas reflexões sobre o mundo e o seu espírito livre e resiliente, se tornando uma das figuras mais simbólicas da cultura pop e das grandes lutas por direitos em sua época.

Elke era o tipo de mulher que não temia. Vivia de forma plena, cheia de significados, afetos, ponderações e, acima de tudo, uma relação verdadeiramente sagrada com a natureza e o universo, sem se submeter ou temer o julgamento dos outros. Muitos de nós teríamos sorte de ser 1% da pessoa incrivelmente sábia e resiliente que Elke foi, ou de ter vivido 1% dessa vida carregada de significado e simbolismos que ela viveu. Ela era politeísta, e constantemente falava que sua religião era a natureza.

Elke possuía grandes críticas sobre os papéis de gênero e reflexões étnicas, sendo uma ativista presente em diversas (se não todas) pautas da época. Ela chegava a dizer por exemplo que se negava a ser chamada de mulher, pois entendia que os homens são colocados como melhores, sempre. E isso gerou tanta angústia que ela decidiu quebrar todo tipo de expectativa que tinham sobre ela. Elke não era mulher – era pessoa, como ela já dizia. Era à frente de seu tempo, chegando até a celebrar e realizar um casamento homoafetivo em seu programa de tv no ano de 1993, muito antes de sequer imaginarmos a legalização de tal.

Morou em diversos países, passou por 8 casamentos com homens de diversas nacionalidades, e fez 3 abortos após ter sido enganada por maridos que queriam ser pais, mostrando que apesar de seu jeito rebelde e diferente de ser, ela possuía uma noção sobre a grande responsabilidade de ser mãe, um papel que ela nunca quis cumprir.

Elke foi o tipo de pessoa que, quando lemos sobre, nos aprofundamos sobre, apenas pensamos sobre como de fato ela cumpriu sua missão na terra. Sua história de vida, sua sabedoria, a riqueza cultural imbuída em seu ser foram seu grande e maior legado. Não há textos, livros ou documentários que consigam mensurar a grandiosidade de Elke, uma verdadeira bruxa natural, símbolo de resistência, luta, resiliência e paz, o verdadeiro significado de viver uma vida plena.

Mais Informações:

https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2024/11/23/elke-maravilha-tem-militancia-identitaria-investigada-em-livro-que-vai-alem-das-perucas-saltos-e-batons-da-artista.ghtml

https://pt.wikipedia.org/wiki/Elke_Maravilha

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“Elsa e Fred, um amor de paixão” e a relação com os arquétipos puer-senex

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O filme Elsa e Fred um amor de paixão foi lançado em 28 de julho de 2005, na direção de Marcos Carnevale, um filme argentino, que traz uma reflexão fazendo com que o público tenha um olhar e maneiras que pode ser encarado a terceira idade. O filme aborda a história de dois senhores, sendo que Fred vivia uma solidão, desde o falecimento de sua esposa. 

Devido à tristeza de Fred, por influência de sua filha, mudou-se de casa. Logo conhece a nova vizinha, Elsa, que vai até ao apartamento dele para entregar um cheque devido a um estrago no carro. Alfredo não aceita o cheque. Então se inicia uma nova amizade que após começam a namorar. Fred com o seu jeito conservador começa a namorar uma mulher disposta a viver os padrões fora do comum. 

A história vivida pelos dois personagens envolve os arquétipos de uma maneira intensa. Ao assistir ao filme é possível ativar os arquétipos que possuem relação com imagens arquetípicas emitido de alguma forma padrões universais. Elsa possui um espírito jovial e gosta de aventuras, e Fred mais apático, sendo indiferente às situações em que estava vivendo. 

Elsa com 75 anos, e Fred com 80 anos, ambos na terceira idade, procuram viver um romance entendendo que não existe a expressão “tarde demais” para amar e sonhar. O amor e os sonhos são capazes de impulsionar uma pessoa para continuar sua jornada. Quando um indivíduo deixa de sonhar ou amar perde o combustível para prosseguir. 

De acordo Jung (2007), o querer viver e o querer morrer estão intimamente ligados, pois quando uma pessoa não aceita vivenciar a plenitude da vida, certamente também não aceitará o seu fim. Quando gera uma reação evolutiva em uma pessoa, é possível notar uma aceitação da passagem do tempo, englobando as fases boas, e as fases ruins encara com um refinamento da personalidade.

É possível observar os personagens do filme Elsa & Fred. Ambos conseguem expressar os arquétipos puer-senex e a maneira como vivenciam essas imagens arquetípicas nesse romance. 

No filme, o personagem Fred representa o arquétipo do senex representando um distanciamento do puer e a forma em que muitos vivenciam a velhice de maneira negativa. Fred viveu uma vida durante 40 anos, na mesma casa, com a mesma esposa, trabalhando no mesmo local, e se dedicando só à família.  

O que muito parece é que Fred nunca cometeu deslizes em sua vida e jamais pensou em viver algo promíscuo. Ao ficar sem a sua esposa, Fred possuía uma condição financeira boa, porém deprimido, passivo, vivendo na dependência das orientações da filha. Mesmo tendo boas condições, ele era pobre, pois não tinha o maior valor da vida, entendendo os processos da velhice.

Embora Elsa tenha também características de inconsequentes, foi uma pessoa que viveu o arquétipo do senex que não se distanciou do puer seus dias felizes, procurando aproveitar o hoje, executando seus planos, buscando aprimorar sua personalidade. Concedendo voz a sua alma, ela vive dias mais leves. 

Criatividade, amável, afetuosa, eram as qualidades de Elsa, pois não tinha recursos financeiros próprios. Vivia na dependência de um dos filhos considerado bem sucedido, e possuía mais um filho que era artista sem reconhecimento dependendo dela para sobreviver. Apesar de depender financeiramente do filho, continuava mandando em si, não obedecendo ao filho. Demonstra através da sua vida que o maior bem que um ser humano pode alcançar é a saúde mental.   

Fred sendo um velho senex, em conversa com Elsa, descobre um sonho que ela possuía ao visitar a Fontana di Trevi. Ela também vai se envolvendo e fazendo descobertas da vida de Fred, como era a relação dele com a esposa falecida, se viviam felizes. Percebendo o quanto Fred era tristonho, o incentiva a viver uma simples rotina, mas que seria capaz de trazer mudanças à vida. Certo dia, Elsa vai à casa de Fred, para saborear um licor juntos, ela toca um piano, eles ressaltam sobre o surgimento de uma amizade rara ou um novo relacionamento. 

Elsa demonstra que a sua vida se parece com um rio, não se arrependendo do que passou não se preocupando com o amanhã, vivendo somente o presente e deixando fluir livremente, sem muitas cobranças. Ela não compartilhava com ninguém sobre a sua doença, pois todas as semanas que saía para fazer hemodiálise, dizia que ia tomar chá com as amigas. 

O arquétipo do puer foi fundamental na vida de Elsa, pois traz vitalidade, sabedoria para aproveitar as possibilidades que o momento presente oferece e para ser feliz com isso. Fred, que não tinha nenhuma doença grave, estava sempre cheio de remédios e só falava em doença e morte. Ele não está doente, mas é um homem doente, operando fortemente o arquétipo do senex.

No início do filme Fred muito sozinho, ficava sempre com o seu cachorro, e uma grande cumplicidade com o seu neto. Mas com Elsa entrando em seu caminho, mostra a ele como é viver sem rotina, experimentando algo novo e simples a cada dia. Certa noite ela o convida para um jantar em um dos melhores restaurantes de Madri, mas o assunto que Fred encontrava para falar era sobre o ácido úrico, e colesterol. 

Elsa o exorta para que aproveite a vida, pois ela levava a vida como uma eterna adolescente. Diante da conta de um valor muito elevado ela sugere que saiam do restaurante sem pagar. Fred passa mal por ter feito uma loucura dessa pela primeira vez, tendo que procurar um médico. Elsa pede desculpas pelo excesso, acontece o primeiro beijo e dormem juntos pela primeira vez. 

Fred foi mudando aos poucos, tendo mais autonomia, podia detectar a intrusão da filha e fazer restrições a ela, por exemplo, entrar em casa ou tocar a campainha sem avisar. Diante de tantas mudanças em seu pai, sua filha perguntou se ele havia decidido morrer, e ele respondeu com firmeza que finalmente havia decidido viver, como Chaplin diz: “o homem não morre quando deixa de viver, mas sim quando deixam de amar” Eles viviam uma vida simples todos os dias: andavam de bicicleta, cantavam, iam ao parque, comiam biscoitos, namoravam nos bancos da praça, jantavam a luz de velas e dançavam.

Elsa como sempre intensa, ao apresentar Fred à família assumindo-o como namorado, é repreendida, recebendo julgamentos, ela simplesmente diz: Avante que a vitória é nossa!

Fred, certa vez a encontrou fazendo hemodiálise e tentou compreender melhor sobre a doença com seu amigo médico. Quando soube da gravidade do estado dela, decide então realizar o sonho de Elsa, que era visitar a Fontana di Trevi. 

Ele comprou a passagem, e deixou apenas uma carta para a filha dizendo que gostaria de investir na felicidade, pois na vida existem coisas que não tem preço. Em Roma, curtiram todos os lugares possíveis, visitando principalmente a Fontana di Trevi e ela o encorajou a entrar na fonte, e disse a ele que o amava mais do que nunca.

O filme termina com ele indo ao cemitério com o neto, levando flores para o túmulo dela, vivendo de maneira diferente da primeira esposa. Dessa vez entendendo os processos, não havendo tristeza, mas guardando apenas as boas recordações vidas juntos. O neto de Fred ao ler a data do nascimento que estava no túmulo, ele sorri e a chama de “caloteira” por ter o enganado.  

O filme relata através dos personagens a maneira que escolhemos para viver e demonstram através dos arquétipos quais podem definir a vivência das pessoas. Fred com o seu modelo limitador e repleto de proibições do velho senil, ou Elsa seguindo um modelo criativo e evolutivo, demonstrando que possui domínio sobre a sua vida, apesar de estar vivendo na maturidade, não perdeu o brilho, a alegria, disposição, que fazem parte das características do puer, mostrando uma imensa virtude para deixar as coisas no passado e ir à busca do novo, 

De acordo com Hillman, (2001), que ao envelhecer as pessoas consigam manter o vigor, criatividade, habilidade, vivendo dentro dos limites possíveis que a vida pode proporcionar. Entendendo que as pessoas são periódicas, cada um possuindo seu ritmo e vivenciando seus processos. 

REFERÊNCIAS

Elsa & Fred (2005). Filme. Direção de Marcos Carnevale. Espanha/Argentina: Imagens Filmes.

HILLMAN,J. (2001). A força do caráter e a poética de uma vida longa. Rio de Janeiro: Objetiva.

JUNG, C. G. [s.d.] A energia psíquica. In: Obras completas de C. G. Jung, vol. VIII/1. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

MONTEIRO, Dulcinéia Da Mata Ribeiro (Org.). Puer-Senex: dinâmicas relacionais. 2ª edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

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Márcia Tiburi – A melancolia é uma das genitoras da sabedoria

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A maior sabedoria é ter o presente como objeto maior da vida, pois ele é a única realidade, tudo o mais é imaginação. Mas poderíamos também considerar isso nossa maior maluquice, pois aquilo que existe só por um instante e some como sonho não merece um esforço sério – Schopenhauer

Uma das palestras mais marcantes da filósofa gaúcha Márcia Tiburi para o programa Café Filosófico, da CPFL Cultura (transmitido pela TV Cultura), é sobre a tristeza. Definida no dicionário Houaiss como um “estado afetivo caracterizado pela falta de alegria, pela melancolia”, a tristeza é “dissecada” por Tiburi, que faz uma ampla “viagem” pela filosofia para situar este fenômeno que parece ser algo fruto das dinâmicas contemporâneas, mas que já era alvo de análise por parte dos antigos gregos – como Heráclito (535 aEC a 475 aEC), Demócrito (460 aEC a 370 aEC) e Aristóteles (384 aEC a 322 aEC). Esta remota abordagem influenciou (e ainda influencia) vários pensadores ocidentais, de diferentes momentos históricos, a exemplo DescartesShakespeare, Benjamin, Schopenhauer e Nietzsche, só para citar alguns. Estes dois últimos, inclusive, são conhecidos por traços de melancolia impressos não apenas nas obras, mas nas suas próprias vidas.

Márcia Tiburi lembra que a tristeza pode ser decorrente da contingência humana, naquele período mesmo em que o homem (mulher) se vê submetido ao presente e, já “no momento seguinte, está impossibilitado de retornar a este mesmo presente”. O melancólico, portanto, é aquele ser entristecido por perceber a frugalidade nas variações do tempo, cujos instantes, antes de serem “tocados”, já passam a compor uma representação da memória. Isto causa uma constante sensação de “finitude”, uma percepção de abandono, “num total vazio de sentido”.

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De acordo com a filósofa gaúcha, que também é professora do programa de pós-graduação da Universidade Mackenzie (SP), há um núcleo atemporal para o conceito de tristeza. “Enquanto sentimento de abatimento, de pesar, de dificuldade com a vida e que nos prostra, a tristeza vai estar sempre acompanhada do luto”. Mas é sob o viés da melancolia que Tiburi se debruça, sem, com isso, deixar de traçar um paralelo com a depressão e com os processos criativos, a arte propriamente dita.

Para a filósofa, “a tristeza começa a se tornar algo suportável na medida em que aprendemos que ela pertence/permeia a todos, que ela não diz respeito apenas à vivência pessoal (ontogenética, termo que o Freud usa bastante)”. No entanto, lembra Tiburi, para o processo de entendimento ocorrer de forma mais “suave”, há de se ater ao alerta de Heráclito para a impossibilidade de “reviver” um dado espaço de tempo, afinal “nunca se pode tomar banho duas vezes na mesma água e no mesmo rio”. Lidar com essa submissão e também impotência em relação ao presente requer maestria, para que a vida não se transforme num eterno “anticlímax”, onde o que resta é apenas a experiência da dor, com o caráter passageiro e transitório da existência.

“[Tal percepção de impermanência] pode causar uma vertigem, uma sensação de que a pessoa não está em lugar nenhum”, nem no passado, nem no presente, e muito menos no futuro. Márcia Tiburi vai além e diz que, no fundo,

“ficar triste, neste contexto, é justamente se deparar com a dor de morrer, de não existir mais daqui a pouco. E de morrer a conta gotas, a cada momento, a cada instante…”. (TIBURI, 2013 – CPFL)

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Tiburi lembra que, na visão de outro filósofo, desta vez Demócrito, “rir também é uma maneira de chorar”. Haveria a relação de codependência entre o trágico e o cômico. Demócrito foi fruto de investigação do padre Antônio Vieira, cujo livro “As Lágrimas de Heráclito” aponta para o riso como uma “maneira de chorar das mais absurdas”. Tiburi prossegue ao dizer que isso ocorre

quando extrapolamos a possibilidade de chorar, quando já não têm mais lágrimas, quando não se pode fazer mais nada, quando a dor nos secou de tal maneira que só sobra mesmo um riso. E este riso não é do gozo, cômico, mas um riso que ultrapassa até mesmo o escárnio, e atinge a condição de sabedoria em relação à nossa miséria. (TIBURI, 2013 – CPFL)

Desta forma, Demócrito ri pelo mesmo motivo do qual chora Heráclito: “somos entes miseráveis dentro do nosso tempo”. Os seres humanos, no entanto e de maneira geral, estão totalmente alheios a esta condição. O que sobra disso tudo? “Sobra rir. E, neste aspecto, rir da secura, por não ter nem mais lágrimas para chorar”.

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Aristóteles

É Aristóteles, de acordo Tiburi, que faz uma abordagem mais ampla para explicar este tipo de sentimento, “uma espécie de aprofundamento extremo dentro da sensação da dor”, como se o indivíduo estivesse prestes a cair num abismo. Para o estagirita, apenas quem vive profundamente tanto a dor quanto a alegria, ciente de sua efemeridade e transitoriedade, é apto a ser caracterizado como o suprassumo da humanidade, o “ser filósofo, homem de exceção, que é aquela pessoa que vive na oscilação entre sentir-se tudo e sentir-se nada”, discorre Tiburi, ao destacar que Aristóteles apontava a melancolia e a tragédia como uma alternativa para transcender a mesmice.

“O homem se sente tudo e nada, justamente porque ele está à flor da pele com a sua existência. Então ele vai experimentar o mais nobre dos sentimentos, que é o sentimento relacionado ao trágico, na teoria do Aristóteles, e também sem esquecer-se da sensação de ‘falta de chão’, onde se agrega a ideia do ‘cômico” (TIBURI, 2013 – CPFL).

Desta forma, o homem de exceção é aquele que desenvolve a relação entre o rés-do-chão (o solo, o térreo) e as alturas. “O filósofo, então, é especialista (mas também condenado) a viver este tipo de sentimento […]”. E por filósofo tomemos a definição bem mais abrangente dada por Heidegger. A tristeza, neste ínterim, acaba por se transformar num movimento de resignificação (ou de transvaloração), cuja compreensão só é possível através do esvaziamento (da negação do ego, como pregam algumas abordagens orientais), para à frente acercar-se da “própria condição insipiente da existência (uma das representações da comédia)”. É daí, do bojo destas inquietações, diz Márcia Tiburi, que pode surgir um homem disposto à criação.

Fonte: http://fc04.deviantart.net/fs40/i/2009/017/b/0/When_My_Sadness_Born_by_j3ff3rson.jpg

Medievo

Isso tudo, na teoria de Aristóteles, vai reverberar, tempos depois, nas ideias defendidas pelos filósofos medievais, onde a tristeza é apresentada de dois modos.

“De um lado, encaram-na como pecado, porque se sente triste aquele ser humano que abandonou Deus. Então a tristeza passou a ser algo proibido pela igreja; por outro lado, para os monges/ascetas, ela é uma virtude, já que ela nos faz voltarmos para dentro de nós mesmos, e procurar então uma compreensão da nossa própria interioridade” (TIBURI, 2013 – CPFL).

Nesta acepção aparentemente contraditória, a tristeza pode ser um veículo

“que nos leva a um conhecimento verdadeiro, que naquela época não se referia ao conhecimento do mundo, e sim à aproximação com Deus, do qual o mundo só podia ser uma manifestação” (TIBURI, 2013 – CPFL).

Bem mais tarde Goethe vai dizer que a melancolia é uma doença do pensamento. Então, os filósofos e intelectuais de toda ordem, “que são pensadores e que gastam o seu tempo elaborando conceitos, como diria o Hegel, eles sofrem de uma doença do pensar”. De acordo com Tiburi, quando Freud escreve o artigo “Luto e Melancolia”, vai levantar justamente a mesma questão do Goethe: “como alguém pode ficar doente de tanto pensar?”. No entanto, lembra a filósofa, a visão de Aristóteles parece ser a mais equânime. Afinal, defende, antes de ser uma patologia, a melancolia “é uma determinada relação com a própria existência”. Assim, ao mesmo tempo em que o sujeito pode pensar em se livrar dela [da tristeza/melancolia] – seja pelo uso de medicamentos, pelo consumo de álcool ou outras drogas, ou fazendo alguma coisa que altere o estado de humor – “ele pode simplesmente acostumar-se a ela e, quem sabe, desta ‘relação’ surjam coisas boas”. “É compreender como a vida se dá, e ir criando dentro dela as saídas necessárias”, pontua Tiburi, ao lembrar a relação desta maneira de ver o mundo com a abordagem nietzschiana do “amor fati”, cuja investida só pode ser abraçada por “um espírito superior”, capaz de perceber a vida em todas as suas nuances.

Desta forma,

O trágico é aquele que levanta a cabeça acima das demais pessoas e tem a coragem de observar, de ‘cima’, o que está acontecendo. [Trata-se de alguém] que aprende a conhecer os mecanismos da sociedade na qual ele vive, e desenvolve um significado mais próprio, mais original para a reflexão (TIBURI, 2013 – CPFL).

Fonte: http://detechter.com/wp-content/uploads/2013/09/sadness.jpg

Depressão

De acordo com Márcia Tiburi, a grande diferença que há entre a depressão e a melancolia, “é que na primeira a pessoa fica abatida, submetida a grande tristeza, cujo desenrolar pode levar ao suicídio”. Na depressão não haveria qualquer possibilidade de se criar um elo e/ou laço com o mundo (um exemplo citado pela filósofa é Hamlet, de Shakespeare, que acaba morrendo no final da peça); Já “na melancolia há a ideia de que é possível reconstituir o campo da representação, da criação, seja na obra de arte, seja na escrita (literatura)”. No entanto, associar a melancolia à escrita só é possível se esta [escrita] “brotar de dentro da própria melancolia […]. Eu só posso construir a minha obra em cima daquilo que em mim é mais doloroso e mais profundo”.

O segredo para “beneficiar-se da tristeza”, alerta Tiburi, é reconhecer-se como a metamorfose ambulante de que fala Raul Seixas.

“O melancólico, então, assume a vida porque ele assume a tragédia. Quem não assume a vida é o deprimido. Este último foge da responsabilidade do que a noção da consciência revela”. (TIBURI, 2013 – CPFL)

O melancólico, no entanto, vai perceber que pode haver uma aceitação daquilo que está dado, “mesmo que isso que foi dado seja um absurdo”.

Já que o jogo é esse [o jogo da vida], vamos aproveitar e rir disso tudo. Esse riso, no entanto, tem duas facetas, pois é o riso de alguém que percebe a limitação da existência, mas reconhece nela a única experiência possível, naquele momento (TIBURI, 2013 – CPFL).

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A melancolia, por fim, pode proporcionar ao ente um vislumbre da transitoriedade e da artificialidade da vida. Se, no fundo, tal vida se resume ao efêmero, ela não deixa de ser majestosa, já que o efêmero “é a própria beleza, como diria Benjamin”. E o melancólico é aquele que tem a oportunidade de perceber toda esta grandiosidade. É alguém que, pela dor e pela recusa do convencional, está apto a acessar as diretivas da sabedoria. Esta certamente é uma nova maneira de se encarar a introspecção. Que se mude, então, a visão geral e enviesada acerca da melancolia.

 

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. 4. ed. São Paulo, SP: Editora Manole, 2006;

Café Filosófico: Tristeza, por Márcia Tiburi. Programa disponível em <http://www.cpflcultura.com.br/wp/2013/07/29/tristeza-marcia-tiburi/ > – Acessado em 08/01/2015;

Minibiografia de Márcia Tiburi. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rcia_Tiburi > – Acessado em 10/01/2015;

Definição de “tristeza”de acordo com o dicionário Houaiss. Disponível em <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=tristeza > – Acesso com senha em 11/01/2015;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

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