O simbolismo do filme “Ensaio Sobre a Cegueira”

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O filme ‘Ensaio sobre a cegueira’ mostra a contaminação da perda de visão que assola uma cidade. Adaptado da obra original “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (1995), a obra propõe uma situação onde uma cidade, sem nome definido pelo autor, é acometida subitamente por uma condição de cegueira, esta denominada de “mal branco”. A partir daí você acompanha diversos personagens, estes também sem nome definido, lidando com as consequências dessa endemia.

 A primeira vítima da cegueira é um motorista que procura um médico oftalmologista, no qual também se contamina. A única pessoa que não perde a visão é a esposa do médico, que em compensação, é quem fica responsável por gerenciar muitas decisões e situações práticas por ainda conseguir enxergar, pois todas as pessoas contaminadas foram levadas para um manicômio abandonado e passaram a ficar em isolamento.

A trama se desenvolve mostrando as tentativas de adaptação e sobrevivência das pessoas a partir da nova condição de cegueira, conforme os dias passam, os instintos primitivos como fome, sono, desejo sexual afloram nos personagens e tudo isso os leva a embates civilizatórios contundentes.

Assim, os aspectos levantados serão analisados através da abordagem psicológica psicanalítica interpretando a perda de visão como um processo psíquico de luto e suas possíveis formas de elaboração e buscando possíveis associações simbólicas psicanalíticas relacionadas ao mal branco que atinge os personagens.

Fonte: encurtador.com.br/uvRZ9

 Luto e Inclusão

            Ao observar o filme, o espectador pode compreender a importância de trabalhar a inclusão para a construção de uma nova mentalidade que exige mudança de todos indivíduos que convivem em uma sociedade, e não somente dos personagens; mas também dos próprios espectadores. De acordo com Mesquita (2017), a proposta da inclusão tem como parâmetro o princípio das diferenças, não  o princípio da igualdade; essa proposição exige muito mais que oferecer recursos para sanar diferenças e igualar os sujeitos.

Diante desse fato, a política da inclusão vai ao encontro do respeito das diferenças e pela construção de caminhos alternativos e criativos para proporcionar desenvolvimento humano e superações de todos os envolvidos no processo. Assim, quando o espectador analisa o contexto do filme, pode inferir que eles próprios se colocam nessa sociedade de exclusão. O filme utiliza como metáfora a cegueira em que as pessoas estão cegas para valores básicos da solidariedade social e que evidência é  uma sociedade que exclui as diferenças (MESQUITA, 2017).

Segundo Gomes (2012, p. 687 apud MESQUITA), a diversidade é “compreendida como construção histórica, social, cultural e política das diferenças, que se faz por intermédio das interações de poder e do aumento das desigualdades e da crise econômica”, assim, é importante articulação de políticas para o  reconhecimento das diferenças.

Diante do que foi supracitado em relação à inclusão,no filme, o espectador percebe essa falta de articulação dos membros da sociedade, chefes de estados, cientistas em conhecer as diferenças, e a falta de conhecimento, compreende-se o  que deixa a humanidade extremamente fragilizada é uma sociedade não inclusa e não a cegueira biológica. Essa análise pode ser observada no trecho do filme, quando a mulher do médico faz um jogo de palavra agnosia, agnosticismo, ela infere que pode estar interligada com a com ignorância e a descrença; também pode interligar com a desesperança, a tristeza. Daí, o filme pode sugerir porque a esposa do médico é a única não contaminada; uma vez que no decorrer do filme, a esta se mostra uma pessoa extremamente empática com o próximo.

Fonte: encurtador.com.br/hAJPU

Diante do contexto do filme, compreende que os personagens perderam a visão e, em seguida, passaram por um processo de luto. Dessa forma, pode ser entendido como um conjunto  de sentimentos e comportamentos que normalmente se verificam depois uma perda, como o indivíduo experiencia essa nova realidade. É primordial que a pessoa se ajuste a viver com a ausência para que se possa elaborar de forma adaptativa essa situação (WORDEN, 2003, apud NAZARÉ et al., 2010, p. 36).

Sobre aspectos do luto, Elisabeth Kübler-Ross (1969), ganhou grande destaque ao aprofundar seus estudos sobre o tema, pois ela definiu tal situação em estágios de negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação; sendo caracterizado como mecanismos de defesa psíquica para enfrentamento da situação dolorosa.

Em 1917, Sigmund Freud discute que o luto é uma experiência a partir da perda de vínculo emocional, físico e ou psíquico de alguma pessoa ou de uma ideia. Quando essa experiência é vivida através da melancolia, pode haver indícios de predisposição genética para tal desenvolvimento. Porém, o mesmo autor ainda afirma que o luto não deve ser compreendido como algo patológico, e que ao longo do tempo será vencido, e “achamos que perturbá-lo é inapropriado, até mesmo prejudicial” (FREUD, 1917, p. 128).

De acordo com Souza e Pontes (2016), através de seus estudos sobre Freud, durante o estado de melancolia, é percebido um comportamento de repreender-se que pode estar interligado a queda na autoestima caracterizado como o diferencial nesta situação. Isso se dá porque a pessoa não quer repreender a si mesma, mas o objetivo de amor que foi perdido. Então, o “empobrecimento do Eu” pode ser compreendido por uma identificação do sujeito com o objeto perdido, uma vez que o investimento objetal não foi forte o suficiente para deslocar-se para outro objeto, retornando, então, ao próprio sujeito.

O filme mostra que o médico mesmo possuindo muito conhecimento sobre oftalmologia não consegue solucionar certas situações que surgem ao longo do filme. Por exemplo, quando uma das vítimas pela cegueira bate a perna e tem um ferimento na perna que pode evoluir para uma infecção, pelo fato do médico também estar acometido pela doença, ele pede ajuda e orientação à esposa para que juntos possam acompanhar e intervir sobre o ferimento do rapaz. Assim, percebe-se que o médico tem recursos psíquicos e científicos para resolução de problemas, e nessa situação, controle emocional para tomada de decisão diante de um fator delicado.

Fonte: encurtador.com.br/xyBLM

Simbologia no Filme

A maneira como o filme conta a história levanta questionamentos acerca da origem da cegueira que assola a população daquela cidade. Na obra original Saramago (1995) e o diretor Fernando Meirelles em sua adaptação trazem ao público uma doença de causas misteriosas e de sintomática bastante simbólica. A cegueira é chamada no universo do filme de “mal branco” e em sua essência atinge os indivíduos cegando-os como uma luz que excede os limites da visão humana.

Numa visão simbólica, a cegueira poderia ser uma analogia ao excesso de informações e pela rotina aos quais somos expostos, o que inibiria a psique do acesso a subjetividade e a formas de pensamento mais complexas. Saramago é brasileiro, e é interessante as minúcias na sua obra quando este demonstra a primeira pessoa a ser acometida com a cegueira a um indivíduo no trânsito. O ato de dirigir em grandes metrópoles, estar preso em uma caixa de metal, alheio aos rostos dos pedestres e dos motoristas ao seu redor, é tudo muito significativo ao estado final de cegueira proposto.

“Por isso, supomos, a cegueira branca indica não uma cegueira, mas um excesso de visão. Encontramos um homem que perde seu anteparo criado pelo recalque e que se desorienta quando passa a ver demais, jogando por terra todos os construtos que mantêm sua estrutura social de pé. Ele vislumbra as consequências do fim do recalque e a explicitação desordenada das pulsões. Saramago não cegou o homem; ele o fez ver algo insuportável, abriu seus olhos e o fez ver demais: fez o homem ver a si mesmo.” (CAMARGOS, 2008, p.132).

No livro, o médico explica a cegueira para um personagem, e esclarece que é como se as vias que levam as imagens dos olhos para o cérebro tivessem ficado congestionadas. Para a psicanálise são essenciais para a sobrevivência da espécie as funções que produzem os sonhos, através da digestão das nossas emoções e do conteúdo sensorial enviado para nosso cérebro, como fica claro em texto de Freud (1914, p. 145-157).

Fonte: encurtador.com.br/bOW78

O indivíduo deve ser capaz de fazer a elaboração adequada para digerir adequadamente conteúdos psíquicos, e as imagens e a capacidade visual são parte fundamental desse processo. Ou seja, os indivíduos ali estariam sujeitos a uma distorcida representação da realidade, onde sem a função da visão estes teriam de rearranjar a maneira como abstraem o mundo a sua volta, com diversas funções psíquicas prejudicadas devido a  situação atípica.

A cegueira pode também ser uma maneira de se observar a natureza do ser humano para além do véu da civilização. O filme propõe essa reflexão à medida que te põe em companhia de uma personagem que de maneira misteriosa não é afetada pelo mal em questão, e ela, como um último bastião de qualquer noção de civilização, observa toda a jornada a sua volta, sendo muitas vezes obrigada a ceder a barbárie.

“Desde Sófocles e a cegueira de Édipo, o olho foi simbolizado como órgão máximo para o deslocamento da castração genital concreta. Talvez não apenas porque, diante da consumação real do drama edípico, o Tyrannos de Tebas tenha furado seus olhos como punição pela culpa por ter concretamente satisfeito o desejo incestuoso. A cegueira também é mais que uma metáfora da prévia incapacidade de Édipo de ver sua origem e a causa de seus atos.” (LOPES, 2019, p. 25-46)

Mesmo desejando não ser capaz de ver muitas coisas nesses momentos, a personagem esposa do médico (Julianne Moore) embarca em uma jornada desagradável em um mundo incapaz de ver a razão do mal que o atinge, ou mesmo uma solução para este problema.

Fonte: encurtador.com.br/hpqOT

Conclusão

É notável que a personagem principal passa por uma mudança significativa na vida e, na metáfora do filme, ela precisa se adaptar a um contexto totalmente diferente, onde sua condição de pessoa capaz de enxergar a obriga a buscar maneiras de se incluir nessa nova configuração social.

O grande ponto da obra é a perda da visão generalizada, então esta perda gera um estado de luto coletivo, a personagem de Moore observa os indivíduos em sua jornada em estado de negação, enraivecidos, barganhando com o mundo, depressivos com tudo aquilo e por fim, se reorganizando num estado social primitivo, regido pelas pulsões do ser humano e por líderes déspotas, enquanto a esposa do médico assiste a tudo embasbacada.

Tudo é muito simbólico no filme, José Saramago põe nas páginas do livro muitos significados e Fernando Meirelles adapta com primazia para a mídia audiovisual; a perda da visão se dando como um “mal branco”, onde a visão não escurece mas sim é tomada a uma situação análoga a uma luz muito forte, que cega.

Os indivíduos afetados pela cegueira serem isoladas em um manicômio é uma prévia dos horrores que viriam a seguir, as pessoas se rendendo a suas pulsões primitivas enquanto organizam de maneira rudimentar, a personagem de Moore assiste, como uma mera testemunha de um mundo civilizado acompanhando a morte da civilização.

O esforço que a personagem faz para se incluir nesse mundo novo acaba por custar muito a ela. E no final da obra, os personagens mesmo voltando a enxergar, ficam com um gosto amargo após toda a experiência vivida, como o homem que Platão tira da caverna, a visão retorna de repente para que tudo aquilo seja ressignificado.

Conclui-se que, na analogia proposta, o luto mal elaborado pela perda de algo tão precioso no dia-a-dia somado a incapacidade de enxergar e ressignificar os processos, aliados a toda a simbologia por trás do mal branco culminam na ruína daquela sociedade, um provável alerta de Saramago a quem quer que se aventure por sua obra original.

FICHA TÉCNICA

Ensaio sobre a cegueira

Título original: Blindness

País: EUA

Ano: 2008

Gênero: Thriller/Ficção científica

Direção: Fernando Meirelles

Elenco: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga

REFERÊNCIAS

CAMARGOS, Liliane. A psicanálise do olhar: do ver ao perder de vista nos sonhos, na pulsão escópica e na técnica psicanalítica. 2008.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad., introdução e notas /Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. Obras completas, v. 12, 1914.

KUBLER-ROSS, Elisabeth, 1926. Sobre a morte e o morrer; o que os doentes têm para ensinar a médicos, enfermeiros, religiosos e aos seus próprios parentes. 7ª ed.- São Paulo: Martins Fontes, 1996.

LOPES, Anchyses Jobim. Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan-sobre pintura e psicanálise. Estudos de Psicanálise, n. 51, 2019.

MESQUITA, Raquel. Inclusão na impossibilidade da educação: Uma proposta de intervenção psicanalítica. UFMG, 2017.

NAZARÉ, Bárbara; FONSECA, Ana; PEDROSA, Anabela Araújo. CANAVARRO, Maria Cristina.  Avaliação e Intervenção Psicológica na Perda Gestacional.  Peritia | Edição Especial: Psicologia e Perda Gestacional 2010.

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O Homem Duplicado: modernidade x perda de identidade

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Certamente você já assistiu muitos filmes que são adaptações de grandes obras literárias, isso porque essa prática é muito comum dentro do cenário cinematográfico, principalmente quando se tratam de obras que ganharam grandes destaques e foram, de certa forma, ovacionadas por aqueles que as leram.

No entanto, é comum, também, que as pessoas façam comparações entre o livro e a adaptação cinematográfica. Raramente as adaptações atingem as expectativas ou a mesma emoção que os livros provocaram. Não podemos nos esquecer que se trata de uma adaptação, como já mencionado, isso implica que não será fielmente a tradução do livro, que terá cortes e algumas mudanças, o que, ainda assim, não muda o assunto do livro ou o seu sentido.

Dito isto, essa análise pretende traçar um paralelo entre livro e filme, juntamente com algumas considerações sob o ponto de vista da psicologia. A obra em questão trata-se do romance de José Saramago, O Homem Duplicado, escrita em 2002  e adaptada para o cinema em 2013, com direção de Denis Villeneuve.

José de Sousa Saramago (1922-2010) foi um escritor, mundialmente conhecido, romancista e poeta português. Publicou diversos romances e em 1998 foi galardoado com o Nobel de Literatura. Algumas de suas obras foram adaptadas para o cinema, dando ainda mais destaque para seu grande talento, dentre essas obras temos: Ensaio Sobre a Cegueira (2008) dirigido por Fernando Meirelles, Embargo (2010) com direção de Antônio Ferreira e o mais recente O Homem Duplicado (2013) sob a direção de Denis Villeneuve.

Segundo Alves (s/d) os inúmeros romances publicados por José Saramago podem ser divididos em dois grupos: os de temática histórica (aqueles que misturam personalidades e lugares reais do passado com fatos e personagens ficcionais) como é o caso de Memorial do Convento (1982) e os de temática universal (aqueles em que entra os problemas da contemporaneidade, individualismo, perda da identidade, e todas ocorrem em uma grande metrópole) este é o caso de Ensaio Sobre a Cegueira (1995) e o Homem Duplicado (2002).

Para alguns estudiosos, Saramago trazia em seus romances descrições bem detalhadas de seus personagens, fazendo com que suas estruturas fossem trabalhadas de forma profunda e não somente superficialmente.  Sobre isso Marilise Vaz Bridi (Bridi, 2005, apud Alves, s/d) ressalta que:

(…) o escritor (José Saramago) elabora uma pertinente crítica aos modelos sociais convencionais. Essa inquietante postura ideológica do autor lusitano é marcada pela crítica aos excessos da contemporaneidade numa construção narrativa fabular (Bridi, 2005, p.1)

É dentro deste conjunto de obras com temática universal que, também, encontramos O Homem Duplicado, que aborda principalmente a perda de identidade de um indivíduo.

Adam (Jake Gyllenhall) é um professor de história, que leva uma vida monótona. Repete todos os dias os mesmos comportamentos. Nada é diferente, desde o assunto trabalhado em sala de aula até o momento em que vai dormir, ao lado de sua namorada Mary (Mélanie Laurent). É tudo automático e preparado, o que parece ser reflexo da modernidade. Institucionalizado pela sua rotina, programado e mecânico, desanimado, solitário e desmotivado.

Em um dia comum aos outros, Adam recebe de um colega de trabalho uma indicação de filme. Ainda receoso, ou não querendo curvar-se a quebra de rotina, Adam decide aceitar a indicação do colega. Durante a sessão, algo lhe chama a atenção. Um dos atores coadjuvantes do filme é igual a ele. Praticamente idêntico. O mundo de Adam começa, agora, a girar de forma contrária. Tudo está desorganizado, em conflito. Quem seria aquele sósia? Tão igual e desconhecido? Adam, que antes vivia escravo de uma rotina sem grandes surpresas -ou nenhuma-, começa uma busca incansável para saber a identidade daquele homem igual a ele.

Anthony é o outro homem – aquele que parece um reflexo vivo de Adam – é ator, casado e sua esposa, Helen (Sarah Gadon), está grávida de 7 meses. E que também, ao ser procurado por Adam, começa a entrar num mundo conflituoso e desesperador.

Embora semelhantes fisicamente, Adam e Anthony possuem gritantes diferenças comportamentais e psicológicas. São iguais e diferentes ao mesmo tempo, o que faz despertar em ambos a vontade de um viver a vida do outro, principalmente em tratando de relacionamentos extra-conjugais, o desejo por outras mulheres.

O filme não tem guinadas ou impulsos que deem uma empolgação a mais no telespectador, por vezes ele parece até mesmo se arrastar pelo o roteiro. É como se houvessem detalhes a esmo, sem muita importância. A exemplo disso tem-se a aranha no começo do filme e não encontramos nada, durante a trama, que explique essa aparição. Já o livro, trabalha mais detalhadamente a vida de Adam, no que se refere ao seu cotidiano, minuciosamente repetitivo. Levantando questões até mesmo laborais: toda essa vida monótona seria por conta do seu trabalho desmotivador?

Veja: no livro, Tertuliano (Adam) está vivendo sob um conflito entre sua vida e sua profissão. O narrador nos apresenta um indivíduo que levanta diversas críticas à todas as coisas que lhe cercam: vida solitária, monotonia, o próprio nome, e por fim o trabalho.

Desse mal, na suposição de que realmente o seja, todos nos queixamos, também eu quereria que me conhecessem como um gênio (…) em lugar do medíocre e resignado professor de um estabelecimento de ensino secundário que não terei outro remédio que continuar a ser, Não gosto de mim mesmo, provavelmente é esse o problema. (Saramago, 2012-p.14)

Tertuliano é um personagem mais carregado de falta de coragem, de iniciativa, para mudar o rumo da própria vida, embora cheio de pesares, recusa-se a abandonar a causa de seus sofrimentos, continuando, assim, com sua vida pacata.  Com a indicação de um filme, feita pelo companheiro de trabalho, ele resolve se refugiar, outra vez, na sua rotina. É daí, que tudo se transforma.

Existe uma diferença importante nos inícios de cada história – livro e filme- enquanto Tertuliano é um professor, casado -casamento esse que está em ruínas, lotado de frustrações e crises-, tem um relacionamento extra-conjugal com uma mulher mais jovem -que o mantém devido a insistência da jovem, e não por vontade própria-, não faz amizades, mantém-se isolado a maior parte do tempo e não interage com os colegas de trabalho.  Já Adam, personagem baseado em Tertuliano, é, de acordo com o que percebemos, apenas um professor, com uma vida monótona, que vive ao lado da bela namorada -embora também apresente alguns indícios de desafetos, pouco convívio, falta de diálogo-, o que encontramos em comum entre eles é o fato de isolarem-se e manterem-se submissos à monotonia.

Ao menos foi essa a impressão que pude ter de uma mesma história. No entanto, o filme nos toma a atenção novamente quando somos, de fato, apresentados ao sósia, ou suposto sósia. Antony apresenta características físicas semelhantes a Adam, mas as comportamentais, psicológicas e sociais são completamente o oposto. O que me fez recordar, em alguns aspectos, Tertuliano; Antony vive em um casamento que por algum motivo sofreu uma ruptura, uma quebra de confiança, e que agora marido e mulher tentam retomar suas vidas. Antony também demonstra ser um sonhador e conquistador.

Algumas cenas do filme nos deixam com um ponto de interrogação enorme pairando sobre a cabeça, porque algumas vezes recebemos informações que nos faz pensar que, de fato, existe outro Adam, e por outro lado, devido alguns diálogos, temos a nítida impressão que tudo não passa de uma segunda identidade, de uma realidade inventada por Adam, para fugir da vida real, da mesmice, do tédio que ela é. E isso é um dos pontos positivos do filme, pois o diretor consegue nos deixar tão confusos, perdidos e inquietos quanto o próprio Adam.

Mas o que realmente a história desses “dois” – entre aspas porque o filme é subjetivo, levantando questões que nos fazem mudar de ideia diversas vezes: é imaginação, é real- quer nos passar? Qual a reação intenção do autor?

 

Como dito no início desta análise, O Homem Duplicado traz uma reflexão acerca da influência da contemporaneidade na vida das pessoas e com isso a perda da identidade. Sobre isso, precisa-se saber: O termo identidade vem do latim Identitas. Trata-se de um conjunto de características e traços próprios que um indivíduo ou uma comunidade possuem. Tais características diferem o sujeito perante os demais. Além disso Identidade também é a consciência que um indivíduo tem de si mesmo e que o torna diferente das demais ou seja é autoconsciência. Sobre isso Vigotski diz que é devido ao fato do homem ter consciência sobre si mesmo como indivíduo, de suas possibilidades, capacidades e limites, também abre espaço para que ele compreenda a universalidade do gênero humano. Sobre identidade, Silva (2009) ressalta que no processo de constituição da identidade, os papéis que o indivíduo assume ao longo de sua vida fazem parte de sua construção, partindo de uma identidade pressuposta (o que o outro ou a própria pessoa idealizava em relação ao desempenho daquele papel), a vivida e a que será vivida enquanto projeto de vida.

É daí, então, que podemos levantar questões importantes acerca dos acontecimentos ao longo da trama: Adam exerce um comodismo e conduz uma vida sem grandes excitações, mudanças e novidades, se arrasta pelos os dias e não procura formas de sair desse marasmo. Antony é atleta, conquistador, eufórico, busca sempre formas de mudar a rotina, transparecer felicidade e euforia. Ambos têm mulheres lindas, embora levam vidas conjugais diferentes, como em todas as outras áreas da vida. A proposta, entrelinhas, era de um viver a vida do outro, uma troca, um alívio, uma mudança, experimentação.

Mas e se, na verdade, Antony fosse o segundo mundo de Adam? Uma criação, para satisfazer e alcançar a vida que realmente ele sempre desejou, mas lutou contra esse desejo? Quem é Adam de verdade?

Não se trata apenas de saber quem é, ou que significa para o mundo, O Homem Duplicado traz em seu roteiro a importância de descobrir sobre o mundo à sua volta, o outro lado da moeda, o famoso “sair do sofá”, parar de ver a vida passar pela janela. Vivemos em uma modernidade narcisista. Uma sociedade individualista onde pregamos a política de olharmos somente para o próprio nariz; defender nossas opiniões, crenças, esquivando-se sempre que pode de indivíduos que estão em desacordo com tais opiniões e crenças, estão do outro lado do nosso terreno.

A nossa reação diante daquele que é diferente de nós reflete muito sobre quem realmente somos. E quando estamos de frente a alguém que pensa da mesma maneira como nós? Reagimos diferentes ou não damos tanta importância assim, não nos afeta, não nós causa inquietação? Como já mencionamos; a história trata-se, também, da vontade imensa de mudar a situação, transformar a vida no que deseja mas ter medo de ir atrás de soluções capazes de fazer com que essas mudanças ocorram. É mais difícil lidar com o comodismo ou com o diferente?

 

 

O desfecho do filme traz ainda mais situações conflitantes para aqueles que o assiste, deixando uma espécie de lacuna que o diretor não fez questão de completar. Mas essa é uma das características desse filme denso; existem situações em que não teremos nenhuma resposta do porquê delas terem ocorrido. Assim como existem cenas que parecem nos pregar uma peça e nos deixar perdidos sobre a realidade da trama. Volto a falar, é sufocante, além das metáforas que o autor usa com frequência e que aumentam nossas incertezas em relação ao que está, de fato, acontecendo. Particularmente preferi abandonar as metáforas e buscar enxergar o óbvio, às vezes, o óbvio nos engana também. “O caos é uma ordem por decifrar” (José Saramago, 2002).

 

FICHA TÉCNICA

O HOMEM DUPLICADO

Título Original: Enemy
Direção: Denis Villeneuve
Duração: 90 minutos
Música composta por: Daniel Bensi, Saunder Jurriaans
Ano: 2014

Inspirado na obra homônima de José Saramago

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As Intermitências da Morte

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O livro “As intermitências da morte”, de José Saramago, brinca (acredito ser esse o verbo mais adequado a esse contexto), de forma irônica e romântica, com uma temática aparentemente pesada e complexa. A morte é, ao mesmo tempo, o tema e a personagem principal do livro. E a história começa quando, em um pequeno país, depois da comemoração do final de mais um ano, acontece o seguinte fato:

“No dia seguinte ninguém morreu.” (p. 11)

Foto do site: Worlds Beyond Rittman

E o fato de ninguém morrer dá início a uma espécie de caos no mundo, ao menos no pequeno mundo formado por aquele distante (?) país.  Mas, como assim? Por que o desejo mais antigo da humanidade, o da vida eterna, pode causar tanto horror, medo e desassossego?  Talvez porque um dos poucos sentidos da vida seja a certeza da sua brevidade. Sem essa certeza, o que temos? Sem a morte, o que somos? Por que motivo teríamos a necessidade de perpetuar nossos genes gerando mais crianças para superlotar um mundo de imortais?

Com o fim da morte, algumas instituições foram afetadas:

– As companhias de seguros precisavam se reinventar, criando uma nova forma de seguro de vida, já que a vida não tinha mais fim.
– Os agentes funerários perderam sua única fonte de renda.
– Os asilos teriam que ser multiplicados em todo o país, dado o fato de que as pessoas envelheciam, ficavam doentes e inválidas, ainda que não morressem.
– Os hospitais passaram a existir como depósito de moribundos.
– E a Igreja perdeu sua principal premissa de sustentação: a promessa da ressurreição.

Naqueles dias que ninguém morria, a manchete que perdurava nos principais jornais era:

“E Agora Que Irá Ser De Nós” (p. 23)

Foto: Tiquetonne2067

A ironia estava em entender que aquilo que pareceu ser nosso maior mal era também o nosso único norte. Parece que a morte nos direciona ou, simplesmente, estamos acostumados demais à brevidade para suportar uma existência sem fim. Assim, uma angústia perpassava o coração daqueles que participavam da reunião dos delegados das religiões:

“a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfêmia como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido.” (p. 35)

E um novo axioma parecia se formar na mente das pessoas, ainda que a maioria tentasse ignorá-lo: “se os seres humanos não morressem tudo passaria a ser permitido” (p. 36).

Com esse condicional, Saramago trouxe à tona a tormenta vivida por Raskólnikov, personagem de Dostoiévski em Crime e Castigo, que começou a ter delírios de grandeza e a imaginar-se um Napoleão, alguém que tudo podia, pois não fazia parte da maioria ordinária cuja sina não era relevante e que tanto fazia existir ou não existir. Assim, em meio a possibilidade da vivência de um aglomerado de pessoas sem leis morais, o medo começava a se alastrar em cada lar do pequeno país.

Em um futuro sem morte, mas repleto por um presente de doenças e de gente presa na linha tênue entre o existir e o não existir, começaram os clamores pelo direito de morrer.

(velho doente): “Não quero água, quero morrer.”(filha): “Lembre-se de que a morte acabou”, (velho doente): “desde que o mundo começou a ser mundo sempre houve uma hora e um lugar para morrer”. (p. 39)

Esse dilema provocou o início de uma jornada rumo à fronteira do país para depositar (do lado de lá) os corpos quase sem vida de seus entes queridos, porém doentes demais para terem alguma existência digna. O velho doente apresentado anteriormente foi o primeiro a atravessar a fronteira, carregado pelos filhos. Nesse outro país, o velho conseguiu, enfim, descansar da vida, que a ele já parecia ser um fardo imenso, como também o era para sua família. Quando os filhos voltaram ao seu país, à sua casa (sem o pai que agora jazia enterrado depois da fronteira), a família tinha dúvida se tal ato seria encarado como um crime ou como um suicídio.

Assim, em meio a “uma sociedade dividida entre a esperança de viver sempre e o temor de não morrer nunca.” (p. 71) começavam a surgir os mais metafísicos argumentos:

“Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer, Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe.” (o espírito que paira sobre a água do aquário, p. 73)

“As mortes de cada um são mortes por assim dizer de vida limitada, subalternas, morrem com aquele a quem mataram, mas acima delas haverá outra morte maior, aquela que se ocupa do conjunto dos seres humanos desde o alvorecer da espécie.” (aprendiz de filósofo, p. 73).

E nada é mais Saramago do que a discussão entre um espírito que paira sobre a água do aquário e um aprendiz de filósofo. A morte de cada um parece ser o reflexo de uma morte maior, aquela que existe enquanto existir o universo. Porém, talvez ainda haja uma maior que essa, mas vou parar por aqui, porque esse é um típico argumento ad eternum, longo demais para minha brevidade.

“o quase e o zero, que é a maneira plebeia de dizer o ser e o nada” (p. 78)

Os economistas também se juntaram à discussão da problemática que era viver em um mundo sem morte. Com suas tabelas e gráficos, fizeram estudos prospectivos apocalípticos sobre como o país iria sucumbir, em pouquíssimo tempo, aos perigos da eternidade. Não haveria, logicamente e matematicamente, espaço para tantos e tantos eternos. Os países fronteiriços também tinham se armado de forma a resistirem à invasão dos seus vizinhos sedentos de morte. A máfia, pois sempre há quem se beneficia em meio à desgraça, estava com toda uma ação orquestrada para vender morte na obscuridade, ainda que isso também fosse um acordo silencioso com o Primeiro Ministro. Os políticos (desde sempre) fazem acordos com o crime organizado na tentativa de perpetuarem um suposto poder.

“se não voltarmos a morrer não temos futuro.” (primeiro ministro, p. 86)

Assim, finaliza a primeira parte do livro, em que a temática girava em torno da morte, e inicia-se a fase da morte como personagem de carne e osso (em princípio, só osso).

“A morte, em todos os seus traços, atributos e características, era, inconfundivelmente, uma mulher.” (p. 128)

Fonte: Getty Images

A morte mesmo anunciou seu retorno de forma esfuziante no principal jornal do país. E, enquanto todos festejavam o retorno da finitude do corpo, o presidente de um grupo, que estava mais animado que a maioria, discursava sobre tão apoteótica notícia. Mas, a morte (como a vida) também é feita de estranhas ironias:

“Às vinte e três horas e cinquenta minutos o presidente teve um infarto do miocárdio. Morreu com a última badalada da meia-noite” (presidente da associação das funerárias, p. 105)

E, assim, conhecemos a morte (em minúsculo mesmo porque ela tem ímpetos de ira se escrevemos seu nome de outra forma) e começamos a acompanhar sua complexa trajetória em existir como morte em um mundo de vivos, em ser tão temida, ainda que, aparentemente, seja tão necessária, e ser tão silenciosa perante toda a dor que a sua existência provoca.

“porque a morte nunca responde, e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há-de-dizer diante da maior dor humana.” (p. 126).

A morte de Saramago é uma figura angustiada, repleta de dúvidas, com vaidades e remorsos extremos e que pouco sabe sobre o sentido das coisas (como muitos de nós).

Pintura: Vincent Van Gogh

“não há nada no mundo mais nu do que um esqueleto” (p.146)

Essa morte, tão despida e só, que cria um sistema de cartas de aviso ao futuro defunto, na inocência de apaziguar a dor de quem parte, achando que, com isso, a pessoa teria tempo para pedir perdão, perdoar, pagar dívidas, redimir-se, vê-se presa a um estranho acontecimento: certo dia, uma carta não chega ao destinatário e quem devia morrer, não morre.

E inicia-se uma série de dúvidas (tão humanas) diante de uma morte tão frágil, por exemplo, “… quando nos perguntamos se somos realmente aqueles que fomos, ou se algum gênio da lâmpada não nos irá substituindo por outra pessoa a cada hora que passa.” (p. 151). Quem nunca?

E, então, a morte começou a observar mais de perto esse homem que não morria, a quem o bilhete avisando seu fim breve não conseguia alcançar. Deixou seus afazeres de morte nas mãos de sua gadanha silenciosa e pôs-se a segui-lo. Afinal, por que um violoncelista, de 50 anos (que deveria ter morrido aos 49 anos), que vivia com um cão, em uma casa simplória, desafiava a ordem natural das coisas? Tirava o pouco do sentido que tinha a morte (e a vida).

Pintura: Vincent Van Gogh

“Este homem está morto, pensou, todo aquele que tiver de morrer já vem morto de antes” (morte, p. 153)

“é como se fosse imortal porque esta morte que o olha não sabe como o há-de matar” (p. 154)

“ele se move e agita em todas as direções sem perceber que todas elas vão dar ao mesmo destino, que um passo atrás o aproximará tanto da morte como um passo em frente, que tudo é igual a tudo porque tudo terá um único fim, esse em que uma parte de ti sempre terá de pensar e que é a marca escura da tua irremediável humanidade.” (a morte, p. 163)

Ela (a morte) nunca entendeu bem as pessoas, sabia que sua existência dependia da existência delas. Que o fim delas significaria seu fim. Como muitos de nós, ela também tinha dúvidas sobre as instâncias superiores que deveriam direcionar todas as coisas. Alguns conceitos humanos, como a liberdade, a esperança e a caridade, escapavam-lhe, pareciam ser apenas artifícios criados para que a vida, aparentemente tão cara para a maioria, pudesse ter algum tipo de sentido.

E, enquanto buscava compreender a existência sem fim do violoncelista, “a morte foi, mais do que a sombra, o próprio ar que o músico respirava.” (p. 169). Com ele (mas sem que ele a visse), ouviu pela primeira vez, o brevíssimo estudo de Chopin, opus 28, número nove, (http://www.youtube.com/watch?v=cKeley78hM4).

“o que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma coisa ainda tivesse ficado por dizer.” (reflexão da morte, p. 171)

Há em consultórios psiquiátricos, em clínicas terapêuticas, em palestras filosóficas, em ensaios antropológicos e sociológicos, uma busca constante do sentido da felicidade. Esse sentido, muitas vezes, vem camuflado como pílulas mágicas, às vezes, como respostas rasas, outras, como argumentações profundas. Mas a morte, justo ela, alcançou em algum nível essa sensação ao ouvir Chopin, numa casa velha, diante de um homem solitário e de um cão adormecido.

“À morte pareceu-lhe sentir um brusco aperto…, uma agitação súbita dos nervos, podia ser o frémito do caçador ao avistar a presa, quando a tem na mira da espingarda, podia ser uma espécie de obscuro temor, como se começasse a ter medo de si mesma.” (p. 188)

A morte, agora com corpo e rosto de mulher (uma necessidade que adveio da sua pesquisa sobre a real natureza do violoncelista), passou de observadora a observada:

“bonita de um modo indefinível, particular, não explicável por palavras, como um verso cujo sentido último, se é que tal coisa existe num verso, continuamente escapa ao tradutor. E finalmente porque sua figura isolada, ali no camarote, rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se habitasse um nada, parecia ser a expressão da solidão mais absoluta.” (violoncelista ao ver a morte, p. 191).

E poucas vezes alguém descreveu tão bem a solidão de uma mulher, ainda que essa mulher fosse a morte. Talvez nessa época, cercados de tantos apetrechos eletrônicos e de tantas possibilidades de criar vínculos virtuais, haja uma quantidade maior de pessoas habitando o nada, rodeada de vazio. Aqueles cujas causas primeiras de suas lutas (ou discursos) não são a temática da luta em si, mas a possibilidade de serem “curtidos”, “compartilhados”, “reblogados” ou, simplesmente, “vistos”.

Mas, um livro que começa com essa dedicatória – “a Pilar, minha casa” (Pilar é esposa do Saramago), – teria que ter um romance à altura. A morte e o violoncelista não conversam apenas, têm um embate cheio de segundas e terceiras intenções, como são os embates entre homens e mulheres desde que o mundo é mundo:

“Tem medo de mim, perguntou a morte, Inquieta-me, nada mais, E é pouca coisa sentir-se inquieto na minha presença, Inquietar-me não significa forçosamente ter medo, poderá ser apenas o alerta da prudência, A prudência só serve para adiar o inevitável, mais cedo ou mais tarde acaba por se render, Espero que não seja o meu caso, E eu tenho certeza de que o será.” (diálogo – morte e violoncelista, p. 194 – aos que não estão acostumados com a escrita do Saramago, a separação do diálogo é feita pela vírgula e a letra maiúscula no início de cada sentença mostra que a fala passa de um personagem para o outro)

Para a morte do Saramago, apegar-se a alguém teve como consequência ficar ainda mais exposta, parece mesmo que, apesar de um corpo e um rosto, ela ficou mais despida do que quando era um esqueleto nu. Parece que não há muita diferença entre aqueles que são pedaços de vidas e esses outros, que são pedaços de morte.

“No seu quarto do hotel, a morte, despida, está parada diante do espelho. Não sabe quem é.” (p. 200)

Esse ainda não é o fim da morte (ou para a morte). Há algumas páginas a mais para a compreensão de alguns dilemas: se existe morte nesse ser que não sabe mais quem é; se há vida no violoncelista que construiu sua rotina no comodismo ou na sina de ser para sempre só. Aquele que não morreu com aquela que desaprendeu a matar.

Saudades do Saramago. Sua morte tão humana nos faz repensar nossa vida tão breve.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE

Autor: SARAMAGO, José
Ano: 2005

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