Viva – A Vida é uma Festa: o resgate do inconsciente na família

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Viva é uma animação estadunidense de 2017, da Pixar. O filme retrata de forma poética a relação com a morte. A história se passa em Santa Cecilia, uma cidade do México, onde uma mulher Amelia Rivera, esposa de um músico, é abandonada, junto com sua filha, pelo esposo que decidiu seguir sua carreira musical.

Amelia se sente magoada pelo abandono e culpa a musica pelo ocorrido, banindo – a de sua vida. Assim, ela abre uma empresa de confecções de calçados e cria sua filha – Ines -, que se casa e tem a sua própria família. O tempo passa e o bisneto de Ines – Miguel – um garoto de 12 anos, sonha em ser musico e se espelha em seu ídolo Ernesto de La Cruz, um ator e cantor extremamente famoso na época em que Amelia foi abandonada pelo marido. Mas ele terá que lutar por esse sonho, pois sua família – onde todos são sapateiros – desaprova o trabalho de músico.

Com essa introdução vemos que o filme retrata uma jornada de resgate familiar, de algo reprimido no seio da família. E isso afeta diretamente a criança em seu desenvolvimento psíquico. Para Jung (1988) “Via de regra, o fator que atua psiquicamente de um modo mais intenso sobre a criança é a vida que os pais ou antepassados não viveram (pois se trata de fenômeno psicológico atávico do pecado original).”

Essa atuação da vida não vivida dos antepassados surge na criança como um destino, e que se situa além do que é possível à capacidade humana consciente. São compensações do destino, uma espécie de função da índole moral (ethos), que cuida de abaixar o que é alto demais e de levantar o que é demasiado baixo. Contra isso de nada adianta nem a educação nem a psicoterapia. (Jung, 1988).

Fonte: http://factoryiptv.link/VKlm7u

Miguel irá resgatar uma parte reprimida no contexto familiar que é a relação com a música. A música possui um simbolismo muito forte. Ela é uma manifestação artística, da beleza, da alma. Ela é presidida na Grécia por Apolo, deus da beleza, da perfeição, do equilíbrio e razão. Considerado um deus solar e da luz da verdade. Um deus da consciência que vence as forças obscuras do inconsciente.

A música como arte tem uma importância imensa como expressão do inconsciente para a consciência. A manifestação artística é uma forma de encontrarmos a sensação de significado, uma vez que em nossa sociedade – com o declínio da religião tradicional – vivemos um momento de alienação, com um sentimento disseminado de falta de sentido e significado para a vida humana (Edinger, 2012).

A musica traz o significado de forma subjetiva e viva. E não de forma objetiva, externa e racional. A família segue o oficio de sapateiro. O sapato tem um simbolismo de nos colocar em contato com o terreno, com o chão firme. Nos ajuda a pisar e a se colocar diante da realidade do mundo. O sapateiro está diante da realidade objetiva, tem os pés plantados no chão, vê a vida pelo prisma da objetividade. Sendo assim, a família de Miguel excluiu o elemento subjetivo, o elemento do sentir de forma viva a existência humana.

E Miguel através da música irá resgatar esses aspectos inconscientes da família. Enfrentando a morte de frente e trazendo luz a consciência. Muitos questionamentos se passam em Miguel, que com 12 anos, enfrenta o dilema de todo jovem com a família: como articular o amor a família e o amor pela arte que pulsa em si? Transgredir um acordo familiar inconsciente e seguir seu caminho/destino ou permanecer aceito no seio familiar?

Fonte: http://factoryiptv.link/xl7dE0

Como todo herói ele recebe o chamado a aventura e reluta a princípio, sabendo que isso custará seu conforto e aceitação familiar. Contudo, o filme mostra que a jornada de Miguel traz uma nova dinâmica e consciência para a família. Ele consegue trazer o que é reprimido e assim transforma a sua realidade e a da família. Bem típico do herói, que representa aquele que restaura a situação saudável da psique.

Além disso, o filme tem como inspiração o feriado mexicano do Dia dos Mortos, onde se festeja os antepassados. Nesse festejo é celebrada a vida dos ancestrais e trata-se de uma festa mexicana bastante animada. Acredita-se que os mortos vêm visitar seus parentes, por isso a festa é recheada de comida, bolos, festa, música e doces preferidos dos mortos. Ou seja, vemos na animação uma forma completamente diferente de encarar a morte. Nossa sociedade encara a morte de forma muito puritana, chegando a despreza-la. A morte é um tabu em nossa sociedade!

Jung (2009) aponta o quanto não sabemos lidar com a morte e o quanto ela ainda nos assombra:

“Temos, naturalmente, um repertório de conceitos apropriados a respeito da vida, que ocasionalmente ministramos aos outros, tais como: “Todo mundo um dia vai morrer”, “ninguém e eterno” etc., mas quando estamos sozinhos e é noite, e a escuridão e o silencio são tão densos, que não escutamos e não vemos senão os pensamentos que somam e subtraem os anos da vida, e a longa serie daqueles fatos desagradáveis que impiedosamente nos mostram até onde os ponteiros do redigiu já chegaram, e a aproximação lenta e irresistível do muro de trevas que finalmente tragarão tudo o que eu amo, desejo, possuo, espero e procuro; então toda a nossa sabedoria de vida se esgueirara para um esconderijo impossível de descobrir, e o medo envolvera o insone como um cobertor sufocante.”

Porém a vida é um processo que segue seu curso para o repouso. A vida humana em seu crescimento, expansão e declínio. Jung (2009) diz que da mesma forma que a trajetória de um projétil termina quando ele atinge o alvo, assim também a vida termina na morte, que é, portanto, o alvo para o qual tende a vida inteira. Mas nos esquecemos dessa trajetória e dessa meta. Estamos fixados nos impulsos da primeira metade da vida e não aceitamos o declínio. Cultuar os mortos e os ancestrais nos lembra do nosso destino e nossa meta.

Fonte: http://factoryiptv.link/Ivc3h

Temos a celebração atual do dia de finados, porém trata-se de uma celebração triste e vivida muitas vezes de forma banal. O dia de los muertos, no México, é uma celebração viva e alegre, que abarca a morte na vida Jung coloca que só́ permanece realmente vivo quem estiver disposto a morrer com vida. Então, psiquicamente quando não aceitamos a morte – tanto a real quanto as simbólicas – não aceitamos a vida. Com isso, não conseguimos deixar que as coisas “morram”, e assim nos mantemos presos em estados infantis, apegos já desnecessários, crenças que não fazem mais sentido.

Miguel acredita que é descendente de seu ídolo Ernesto de La Cruz e ele vai ao museu de La Cruz para pegar emprestado o seu violão. Ao tocar o primeiro acorde, ele se torna invisível para todos os presentes na praça da vila. Porém, ele pode ver e ser visto por Dante, um cão de rua de raça que acolheu às escondidas, e por seus parentes falecidos em forma de esqueleto que saíram do Mundo dos Mortos para visitar seus familiares nesse feriado. Os familiares levam Miguel ao Mundo dos Mortos após descobrirem que Amelia não pode visitar os familiares vivos porque Miguel removeu sua foto da oferenda.

A ida de Miguel ao mundo dos mortos, pode ser comparada a uma regressão de libido. Onde os conteúdos arcaicos do inconsciente para uma adaptação ao mundo da psique (Jung, 2008). A família do menino possuía uma atitude unilateral frente a vida. A adaptação unilateral é falha e por isso é necessária a regressão para resgatar os aspectos excluídos da consciência. Um aspecto está desaparecendo no mundo dos mortos, que é Amélia, que é justamente a entrada do conflito e a saída dele.

Vemos o movimento da regressão no herói. O famoso ventre da baleia, ou seja, o alheamento completo do herói com relação ao mundo exterior (Jung, 2008). Na jornada do herói (Campbell, 1997), é uma passagem para uma esfera de renascimento. O herói, em lugar de conquistar ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu. O herói vai para dentro, para nascer de novo.

Fonte: http://factoryiptv.link/H1SBoU

Nosso herói vai nada mais nada menos do que o próprio reino dos mortos. La ele enfrentará a própria morte. Miguel deve retornar antes do nascer do sol, senão ele ficará no Mundo dos Mortos para sempre. Mostrando os perigos da regressão da libido, ou seja, o perigo de dissociar completamente da realidade. Para retornar para o mundo dos vivos, ele precisa receber a benção de um membro de sua família. Amelia oferece sua benção a Miguel, mas sob a condição de que ele abandone seu sonho de ser músico quando retornar. Miguel recusa a condição e tenta procurar a benção de Ernesto. No caminho conhece Héctor, um esqueleto tolo que o acompanha nessa jornada.

Miguel se torna o herói na trama, pois o herói é aquele que vem restabelecer a condição saudável da psique (Von Franz, 2005). Ele empreende uma jornada ruma a transformação dessa maldição em benção. A benção corresponde ao elixir, que o herói recebe em sua jornada (Campbell, 1997). Mas essa benção não pode impedi-lo de ser quem ele é, pois nesse caso se transforma em maldição. O herói busca, por meio do seu intercurso com os deuses, não propriamente a eles, mas a sua graça, isto é, o poder de sua substância sustentadora. Essa miraculosa energia/substância, e só ela, é o Imperecível; os nomes e formas das divindades que, em todos os lugares, a encarnam distribuem e representam, vêm e vão (Campbell, 1997).

Projetamos esse imperecível no pedido de benção para os nossos ancestrais. Projetando assim, a proteção e a benção dos arquétipos divinos de forma simbólica. A aventura se passa toda no mundo dos mortos, ou seja, no mundo do inconsciente. No mundo magico das imagens arquetípicas.

Nesse mundo Miguel e Héctor se dão conta de que são tataraneto e tataravô, respectivamente. Mas a medida que o sol nasce, Héctor corre o risco de ser esquecido e de desaparecer. Amelia enfim abençoa Miguel, permitindo que ele siga em frente com o sonho de ser um músico, e ele retorna ao Mundo dos Vivos. Ele se reconcilia com Abuelita, que por sua vez enfim o aceita de volta na família e encerra o banimento à música na família.

Fonte: http://factoryiptv.link/bWAENJ

Miguel consegue fazer com que o espírito de Hector, seu tataravô seja salvo do esquecimento iminente. A verdadeira morte, onde o espírito da música desapareceria totalmente dessa família. A alma não pode se expressar. Resgatar a memória de Hector é resgatar algo que foi perdido e que deve ser resgatado.

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, J. O herói de mil faces. 10. ed. Cultrix, São Paulo, 1997.

EDINGER, E.F. Ego e arquétipo – Individuação e função religiosa da psique. 4ª Ed. Cultrix, São Paulo, 2012.

JUNG, C. G. A Natureza da Psique. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

__________O desenvolvimento da personalidade. 4 ed.Vozes. Petrópolis: 1988.

__________ Energia Psíquica. 10 ed.Vozes. Petrópolis: 2008.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

________________. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

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Uma viagem pelos sentidos

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Sim, muitos jovens tem a oportunidade de estudar em outro país e, afortunadamente, eu estou inserida nesse grupo. Daí, um dos primeiros impactos: quanta gente diferente tem por aqui (e porque não dizer quanta gente esquisita, pois, na maioria das vezes é esse estranhamento que predomina, particularmente em mim)! E mesmo sabendo que não é preciso se deslocar para tão longe para se impactar desse jeito, constando a diversidade cultural, racial, econômica e étnica que há em nosso próprio país, digo que esse impacto, de fato, se redimensiona aqui, d’outro lado do Oceano Atlântico, onde as pessoas costumam falar outra língua, comer muita batata e preservar, como podem, os resquícios do que um dia foi uma importante civilização, a celta.

Arquivo pessoal

Hoje moro num país que é uma ilha. Moro numa cidade costeira, húmida e extremamente chuvosa. Salva-me engano, em 275 dias do ano chove. Estou encerrando a minha segunda semana na Irlanda com uma efusão de sensações que ainda não encontrou todas as válvulas de escape necessárias. No entanto, sei que escrever sobre essa efusão é um caminho bastante saudável para mim. Vim para cá de avião. Vim para cá com uma tremenda sensação de suspensão que ainda não passa (ainda bem que a gripe e a dor de ouvido passaram). Aterrissei, mas meus pés ainda não sentiram o chão. E mesmo tendo levado uma queda de bicicleta em meu terceiro dia, onde pedaços de minha pele se misturaram ao asfalto, e vice-versa, o sentido do tato afeta-me, agora, de forma bastante diferente. Falta abraço, sobra mímica. Sobra vento e frio, falta abraço. Em quesito de gesticulação e interpretação, o corpo reaprende seus limites naquela velha história de dançar conforme a música. Ainda falando do tato, a pele começa a se acostumar com a textura das coisas e com a diferença que há em muitas das coisas que tocamos e que, obviamente, nos tocam.

Arquivo pessoal

Só ratificando, a palavra “sentido” (não como verbo no particípio, mas sim como substantivo masculino) corresponde, em seu simplificado significado, a um conjunto de faculdades que usamospara processar (não sei se essa seria a palavra correta a usar) as sensações e percepções que temos do mundo. Didaticamente, dizemos do tato, do olfato, da audição, do paladar e da visão que, trabalhando conjuntamente, ajudam e compõe o que é chamado de processo cognitivo, embora eu prefira dizer que, quando os sentidos trabalham conjuntamente, faz mais sentido. Acredito que exploramos nossos sentidos de acordo com as vivências que temos, ou, as vivências que temos aguçam mais uns sentidos do que outros. Talvez seja só questão de explorar. Disso, compus meu texto viajando pelas sensações e percepções que tive nesses 13 dias.

Viajo agora pelo sentido da audição, que tem sido bastante usado nessa nova experiência. Escutar, ouvir. Ouvir e escutar. De novo. Mais uma vez. Quantas vezes forem necessárias para o entendimento. Quando você não sabe um idioma, a escuta é como uma pescaria: sorte a sua quando pega um peixe, ou melhor, sorte a sua quando entende uma palavra dentre as inúmeras que escuta. O bom disso tudo é que, embora pareça ter dias em que o mar não está para peixe, não há dias em que sua cesta volta vazia. Definitivamente não há. E a audição vai sendo explorada, amplificada, expandida. E de repente é possível distinguir vários idiomas, e é possível até saber que aquela pessoa que está falando em inglês é, na verdade, um brasileiro. Bom, mas como eu disse, os sentidos costumam trabalhar conjuntamente e, desse trabalho, imensa é a importância da visão.

É difícil fazer essa divisão didática para falar das impressões, mas digo asseguradamente sobre o quanto a visão tem me ajudado nessa orientação. Como muitos devem saber, a orientação do tráfego é inversa à nossa. Os volantes dos carros ficam no lado direito. A via de ida é a da esquerda e a de volta da direita. Perante o movimento do centro de Galway, olhar para todos os lados tem me livrado de alguns atropelos. E sendo a configuração da vida irlandesa bastante diferente da que eu estou acostumada, olhar me orienta, ver me fascina, ler me ajuda, e observar me ensina muito. Novos olhares são propulsores de novas imaginações e outras criatividades. Os inúmeros olhares se cruzam, se misturam. Olhares azuis, castanhos, maquiados, cansados, alegres, jovens, chorosos. Olhares diversos que guardam toda uma vida de riquezas. Além disso, diante de tanto impacto, o olhar pede, quase implora, pelo registro de tanta peculiaridade.

Arquivo pessoal

Falar do olfato, assim como do paladar, é falar de uma amplidão sem fim. Mesmo no verão, para mim, o cheiro da vida aqui é cheiro de mofo. Ao falar isso, não pejoro os ares irlandeses, muito pelo contrário, os considero milenarmente abençoados e talvez por isso tenham cheiro de mofo. Mas não sufocam, abrem os pulmões. Na beira do mar, o vento dança e se renova sem parar. Há o cheiro das lindas e diversas flores, dos diversos perfumes, da grama molhada, das interessantíssimas comidas dos restaurantes. Há o cheiro dos peixes, assim como o gosto deles. Falando em gostos… ahhh… quantos gostos diferentes! Quantos temperos, quantos sabores! Quanta mistura. Não digo melhor ou pior, apenas diferentes.

Arquivo pessoal

E de toda essa profusão de sentidos (agora já me refiro aos sentidos como o significado de algo), onde paradigmas vão sendo estraçalhados e reconstruídos rotineiramente, talvez uma das únicas certezas que prevaleça seja a de que eu sou apenas mais uma diferença diante de tantas outras. Hoje, sou diferença. Sou diferente. E assim vou me sentindo a cada dia: desterritorializada, ainda incomodada (faz parte), mas também animada com (e por) isso.

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Ninguém pode viver sem Estamira

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Eu quero compartilhar com vocês a minha visão do mundo, das coisas”
Estamira

Estamira é uma falecida senhora brasileira que viveu por 70 anos.  Sua trajetória de vida foi retratada no documentário “ESTAMIRA” dirigido pelo fotógrafo Marcos Prado que também dirigiu “Os Carvoeiros” e produziu o filme “Ônibus 174”. Existe uma temática que é transversal nesses três filmes de Marcos Prado: pessoas em condições de vida extremas, imersas numa sociedade que, há tempos, exporta, cada vez mais, o senso de justiça e importa, cada vez mais, a desigualdade social e a exploração do homem pelo homem.

No documentário “Os Carvoeiros” Prado retrata a vida de famílias do interior do Brasil, em especial dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Pará, na produção de carvão vegetal que alimenta multinacionais do aço e de automóveis. Retrata o regime de trabalho dessas pessoas e nos mostra que a escravidão é uma prática que atravessa sociedade até os dias de hoje, mesmo nos países que possuem leis de abolição à escravidão, como o Brasil.

Marcos Prado parece querer dar voz às pessoas do dia-a-dia, pessoas cujas vozes não se ouvem, anônimas da sociedade. Ele busca retratar as condições de vida dos milhares de anônimos brasileiros, desde os explorados em sua força de trabalho até aqueles que, em meio às dificuldades de viver, praticam seqüestros, de forma desesperada, como foi no episódio do Ônibus 174. Ou seja, Prado trata em seus documentários, da injustiça, da exclusão, das desigualdades sociais com a tentativa de retratar o ponto de vista das pessoas que se submetem-são submetidas à injustiça, à exclusão e às desigualdades sociais.

O mesmo ocorre à Estamira. Marcos busca essa senhora, em seus 63 anos, e lhe oferece um meio de falar de suas condições de vida, aliás, um meio de viver, nas telas, as condições de vida que vivia há mais de 20 anos. E Estamira diz que sim, que tem algo a falar para o mundo. Ao longo do documentário, ela, no poder do microfone, tece sua concepção de vida e seu ponto de vista acerca do homem. “Assim falou Estamira” é um link do sítio oficial do documentário onde se encontram frases de Estamira. É interessante notar a relação que o sítio quer fazer com o filósofo Nietsche, autor de “Assim falou Zaratustra”. E isso se deve simplesmente pelo fato de Estamira praticar, ao longo das gravações do documentário, de pensamento filosofia, tecendo críticas pertinentes, atuais e ácidas quando à sociedade que a circunda. Estamira foi uma filósofa.

Vivendo e trabalhando no Aterro Sanitário Jardim Gramacho, a desconfiança e decepção com o homem são imanentes em seu viver, transbordam em suas falas, em seu pensamento, em seu andar, em seu habitat e na relação com a família. “Eu transbordei de raiva… transbordei de ficar invisível… com tanta hipocrisia, com tanta mentira, com tanta perversidade, com tanto trocadilo.”

Aterro sanitário Jardim Gramacho. Foto: Marcos Prado

Para Estamira, o homem que explora outro homem (a exploração em todas as suas formas: econômica, sexual, afetiva etc.) é trocadilo. “Trocadilo é Deus ao contrário!” E mesmo que trocadilo seja outras coisas para ela, é também sinônimo de “amaldiçoado, excomungado, hipócrita, safado, canalha, indigno, incompetente…”, pois “o trocadilo fez de uma tal maneira, que quanto menos as pessoas têm, mais eles menosprezam, mais eles jogam fora, quanto menos eles têm!…”

Suas falas são auto-referenciais, aliás, o seu sistema filosófico de concepção de mundo é auto-referencial. “Eu Estamira sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. E eu me sinto orgulho e tristeza por isso.” A meu ver, de outra maneira talvez não poderia ser, pois todas as referências que teve na vida a traíram: seus esposos a traíram, os cientistas mataram sua mãe num hospital psiquiátrico, seu filho e neto insistem em catequizá-la, mesmo depois de Deus a ter traído. Sobre deus, Estamira fala: “Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem andou com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!” 

Estamira gesticula e diz sua concepção de mundo: “Tudo que é imaginário, tem, existe, é.”. Foto: Marcos Prado

O mundo de traição em que Estamira viveu não poderia, em minha concepção, ser-lhe a principal referência de sentido e de produção de vida… a ideia de solidariedade, de sentido de vida e de inteligência não cabem num sistema referencial embasado na traição. A meu ver, a auto-referência como fundamento do mundo é a única relação em que ela pôde identificar vida depois de ter perdido a fé em seu próprio Criador. E a ciência vai chamar isso de psicose, de esquizofrenia, de narcisismo, de projeção, de formação reativa, de delírio, de discurso desconexo – Ah, não dá!!!

Estamira, a meu ver, possui a chave para o maior mal da humanidade, maior que a própria morte: tem a chave para a solidão – suporta a solidão como poucos; está no mundo, está no universo, sozinha – não vive em função de discursos, não vive em função de ninguém. Vive na Terra, pega-lhe uma carona e cuida dela transformando o lixo utilidades. “A Terra disse, ela falava, agora que ela já tá morta, ela disse que então ela não seria testemunha de nada. Olha o quê que aconteceu com ela. Eu fiquei de mal com ela uma porção de tempo, e falei pra ela que até que ela provasse o contrário. Ela me provou o contrário, a Terra. Ela me provou o contrário porque ela é indefesa. A Terra é indefesa.”

Estamira, em conversa numa língua desconhecida pelo homem trocadilo. Foto: Marcos Prado

É contra a exploração que ela passa a explorar, não as pessoas, mas o Aterro Sanitário Jardim Gramacho. É do lixo e no lixo que ela passa a viver. É no lixo, com todo o seu mal-cheiro e possibilidades de doenças, que ela encontra seu habitat, suas referências pessoais, amigos e colegas, seu trabalho, sua educação, seu lazer, sua vida. É naqueles que reconhecem a própria responsabilidade do próprio lixo que ela se reconhece. E quem assim não o faz é hipócrita. Por isso não só vive com o objetivo de transformar o lixo material, mas também ao lixo abstrato, à hipocrisia. Ela mesma diz: “A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não.”

Estamira denuncia a ciência como já o fizeram Boaventura de Souza Santos e outros autores críticos do epistemicídio. Revela a classe dos copiadores e dos dopantes, independente se a burocracia acadêmica e da sociedade formalizada pelos contratos aceita sua fala ou a divulga como formadora de opiniões. Tão pouco Estamira procura tal reconhecimento.

Enfim, Estamira se apresenta no documentário de Marcos Prado e nos vínculos que deixou após sua morte. Ela foi uma mulher que morreu aos 70 anos, no dia 28 de agosto de 2011, por conta de uma infecção que se generalizou na espera de seu atendimento no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Zona Sul da cidade do rio de Janeiro. E é, hoje, uma personagem que se destacou pela forma brilhante de fazer de sua vida um fluxo de transformação, disruptivo, denunciante, instituinte.

Saiba mais:

FICHA TÉCNICA DO FILME

ESTAMIRA

Diretor: Marcos Prado
Produção: Marcos Prado, José Padilha
Roteiro: Marcos Prado
Fotografia: Marcos Prado
Trilha Sonora: Décio Rocha
Duração: 127 min.
Ano: 2004
País: Brasil
Gênero: Documentário
Cor: Preto e Branco
Distribuidora: Não definida
Classificação: 10 anos

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