Retrocesso nas políticas públicas de saúde – (En)Cena entrevista Sílvio Yasui

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Foto: Reprodução do Facebook

Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Silvio Yasui tem doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, e é um dos profissionais brasileiros que mais se destacam na atenção psicossocial. Psicólogo formado na década de 70, Yasui tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Mental, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental, reforma psiquiátrica, atenção psicossocial, oficinas terapêuticas e Política Nacional de Humanização.

Em entrevista exclusiva ao (En)Cena, Silvio Yasui disse que a indicação de Valencius Wurch Duarte Filho, que tem uma postura pró-manicômio, para administrar a Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde (MS) é um contracenso, pois não corresponde aos esforços que vem sendo feitos na área nos últimos 30 anos. “Como colocar alguém que não compactua com essa política (de humanização e atenção psicossocial) para responder pelo setor?”, questiona Yasui.

O profissional também faz um panorama das políticas de Saúde Mental no Brasil e rebate as acusações do ministro da Saúde de que o movimento anti-Valencius é de caráter meramente ideológico: se assim o fosse, “a Política de Saúde Mental do Brasil não seria reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) como referência mundial de reforma dos sistemas de saúde mental”. Além disso, Silvio Yasui diz que os atuais desafios nas políticas de Saúde Mental, por serem grandiosos, são promissores.

Por fim, Yasui sentencia ao dizer que, atualmente, “o projeto da Reforma Psiquiátrica está em risco” no Brasil, mas os profissionais atentos a este movimento e a sociedade em geral já estão se mobilizando politicamente para tentar barrar eventuais retrocessos. Confira estes e outros assuntos na entrevista a seguir.

(En)Cena – Qual o panorama, hoje, das políticas públicas nacionais no campo da “Saúde Mental”?

Sílvio Yasui – A política de saúde mental que vem sendo construída há mais de trinta anos apresenta muitos problemas e impasses que são consequência de sua grandeza e complexidade. Sua grandeza está no fato de estar presente em todos os municípios mais importantes do país, com uma rede de serviços que se amplia a cada dia.

E a sua complexidade evidencia-se, pois, a política propõe uma organização das ações nos âmbitos da prevenção e promoção da saúde; no cuidado com uma ampla e diversa rede de ações, na reabilitação e inclusão social, com uma gama de ofertas e experiências que vem se acumulando ao longo dos anos.

Isso faz com que os desafios estejam à altura do que propomos transformar. Temos dificuldades e gargalos no financiamento que é sempre inferior as necessidades; temos de enfrentar a questão de uma atenção mais efetiva e rápida aos momentos de crise; também ao um cuidado a questão das dependências que seja ampla, abrangente e diversa; os modos de cuidar da infância e adolescência ainda carecem de um avanço, especialmente no que se refere a articulação com outras redes; precisamos encarar urgentemente o desafio de fazer projetos de trabalho e geração de renda que de fato gerem renda aos usuários.

Enfim, ampliamos, com a política de saúde mental, a oferta dos cuidados em muitos âmbitos. Desta ampliação surgem, por consequência, os desafios.

Mas é importante frisar que eu vejo estes desafios como bastantes promissores pois colocam na agenda de nossa política de saúde mental um precioso momento de reflexão e mudança.

(En)Cena – Como o senhor vê a indicação de Valencius Wurch Duarte Filho, que claramente tem uma postura pró-manicômio, para administrar a Área Técnica de Saúde Mental do MS?

Sílvio Yasui – Considerando o que expus acima, vejo com uma grande preocupação. Pois o momento exige da gestão da política uma percepção muito clara dos imensos desafios que esta mesma política gerou. Alguém que nunca participou disso e, muito pelo contrário, posicionou-se contrário, não tem, a meu ver, condições de ser gestor desta política.

(En)Cena – Que ação o senhor e outros ativistas brasileiros neste campo irão realizar para tentar se contrapor a este atual momento?

Sílvio Yasui – Isso é um alento. Desde que a notícia da indicação do Valencius tornou-se pública imediatamente iniciou um amplo movimento de resistência e contestação. Primeiro pelas redes sociais e depois ocupando as ruas, Assembleia Legislativas, Câmaras Municipais. Apoios internacionais começaram a chegar desde os primeiros momentos. Isso culminou na ocupação do andar no Ministério da Saúde, onde encontra-se a Coordenação de Saúde Mental, por participantes dos diferentes movimentos sociais que apoiam de modo irrestrito a Política de Saúde Mental. De minha parte, tenho contribuído ajudando a divulgar todas as movimentações nos diferentes locais do país, tenho realizado discussões com os alunos da universidade, colaborado na elaboração de moções de protesto, enfim, tudo o que está ao meu alcance fazer estou mobilizando forças para contrapor e tentar reverter esta situação.

(En)Cena – Nestes anos todos de ativismo, quais as suas principais ações na área de atenção psicossocial? Estas ações estão sob risco?

Sílvio Yasui – Poderia dizer que minha vida profissional desde o inicio está vinculada a área da atenção psicossocial. Desde o momento em que, estudante do segundo ano de psicologia entrei em um manicômio para um estágio voluntário, passando por meu ingresso na saúde pública, trabalhando no Projeto dos Lares Abrigados do Juqueri, depois como integrante da primeira equipe do primeiro Centro de Atenção Psicossocial, o CAPS Luís da Rocha Cerqueira. Depois como gestor regional de saúde mental em Assis, no interior de São Paulo. Depois como supervisor clínico-institucional de alguns CAPS. Tenho um mestrado e um doutorado com o tema da Reforma Psiquiátrica e, por fim, tenho dedicado os últimos 20 anos na formação de psicólogos para o campo da Atenção Psicossocial. Acho que o projeto da Reforma Psiquiátrica está em risco. Não há uma ou outra ação em risco. São as suas bases que podem sofrer ataques que poderão tornar este nosso projeto mais frágil.

(En)Cena – O principal argumento na indicação Wurch Duarte Filho contra as vozes antimanicomiais é que estas são mais ideológicas e menos científicas. Haveria, com isso, o uso de uma falácia para tentar constranger um movimento que, também, tem bases científicas?

Sílvio Yasui – A referência a ser o movimento da Reforma Psiquiátrica ideológica e pouco científica foi feita pelo ministro ao indicar o Valencius. Esta é uma posição conhecida da Associação Brasileira de Psiquiatria, que tenta desqualificar todo o avanço e o reconhecimento da política de saúde mental com este argumento frágil e falso. Fosse apenas um movimento ideológico e pouco cientifica a Política de Saúde Mental do Brasil não seria reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) como referência mundial de reforma dos sistemas de saúde mental. E nem teríamos tantos artigos publicados em revistas qualificadas nacionais e internacionais, nem tantos livros e coletâneas. Não teríamos tantos grupos de pesquisas nos principais programas de Pós-Graduação de Saúde Coletiva, Psicologia, Medicina, Enfermagem, Serviço Social, Filosofia dentre outros, todos validados e credenciados pelo CNPq.

É interessante que, apesar desta posição, o ministro indica uma pessoa que não tem uma única publicação em seu Curriculum Lattes. Quem é pouco científico e ideológico então?

(En)Cena – Como a comunidade internacional de psicólogos vem encarando esta nomeação de Wurch?

Sílvio Yasui – A posição de uma boa parte da comunidade internacional da saúde mental, e não apenas da psicologia, é contrária a esta indicação. Por exemplo, Benedeto Saraceno, ex-diretor de Saúde Mental da OMS já se posicionou publicamente contra e conclamou outras lideranças a fazerem o mesmo. Em um evento internacional em Trieste na Itália, pesquisadores de diferentes países produziram uma nota de repúdio a nomeação do Valencius solicitando a sua imediata revogação. Como somos um país com uma política de saúde mental exemplar, as manifestações chegaram de muitos lugares.

(En)Cena – A temática da saúde mental anda lado a lado com a defesa dos Direitos Humanos. Estamos atravessando tempos obscuros, com o atual cenário político nacional? Em que medida as práticas coercitivas e com menos ênfase no aspecto humanista impactam as políticas públicas para o setor?

Sílvio Yasui – São tempos de maior expressão do conservadorismo em muitos campos. De certo modo já sabíamos, quando elegeu-se o Congresso mais conservador desde o golpe militar de 1964. A conta desta composição está sendo apresentada para a sociedade. Não é apenas um movimento do neoliberalismo. Em minha opinião, trata-se de uma exacerbação de um fascismo macro e micro-político muito, mas muito preocupante. O fascismo ignora a existência das diferenças e da diversidade. Só entende o que é supostamente e narcisicamente igual a si mesmo. Cabe a verdadeira sociedade que não está representada no Congresso que é hegemonicamente branco, masculino, heterossexual e empresário, contrapor-se a este movimento, mais além do conservadorismo, fascista. As políticas públicas nascem da construção de valores sociais tais como a solidariedade, a generosidade e o respeito às diferenças. Valores que são estranhos ao modo de ser do conservador. Neste sentido, temo que, se nada fizermos, as políticas públicas poderão se transformar em políticas da exclusão e da violência, como neste exato momento, setores populares estão sofrendo. Há um extermínio promovido pelo aparato repressivo estatal de eliminação de jovens negros e pobres.

(En)Cena – Quais os desafios futuros – e mesmo emergentes – para a rede de atenção psicossocial, levando-se em conta que tais estruturas são, antes de tudo, fruto de diálogo e de múltiplos posicionamentos?

Sílvio Yasui – Fortalecer-se não só como uma política de saúde, mas como um processo civilizador que aposta em uma nova sociabilidade. Na construção de relações sociais permeadas por valores como os que sinalizei acima.

(En)Cena – O que os estudantes e profissionais de Psicologia vêm fazendo para evitar que antigas práticas, com a ênfase manicomial, voltem a rondar o cotidiano profissional?

Sílvio Yasui – O que eles fazem é um pouco reflexo do que nós docentes proporcionamos como ofertas de formação. Se apenas ofertamos estágios em instituições totais e asilares, como os estudantes irão conhecer outros modos e outros serviços? Neste sentido, acho que é uma responsabilidade dos órgãos formadores e dos docentes, ampliar o campo de ofertas de estágios, projetos de extensão universitária dentre outros, para que os alunos possam vivenciar outros modos de atuar a psicologia. Aqui na Unesp de Assis, por exemplo, temos projetos de extensão em CAPS e na Atenção Básica, PET- Saúde, estágios obrigatórios em serviços substitutivos, disciplinas que abordam o tema das políticas públicas, da atenção psicossocial. Isso contribui de modo decisivo para uma formação do aluno de psicologia mas atenta e congruente com os movimentos da reforma sanitária e psiquiátrica.

(En)Cena – O país corre o risco de dar uma virada para o lado da “higienização” de tipos humanos que não considera adequados? Isso, de alguma maneira, pode ser considerado uma forma de eugenia, já praticada por governos autoritários ao redor do mundo?

Sílvio Yasui – Isso, de certo modo, já está acontecendo. Por exemplo, quando algumas cidades adotam estratégias de internação involuntária em massa para os usuários e dependentes de crack que habitam as ruas das grandes cidades, isso é uma clara evidência de uma política de higienização das cidades. A questão a ser temida, é esta prática tornar-se um modo prevalente e hegemônico, e ser adotado como uma política ministerial.

(En)Cena – O que fazer diante de um ministro que já demonstrou tratar com desdém a demanda dos ativistas? Neste processo, será necessário fazer um maior esforço e engajamento político, como expressão de cidadania? Como isso ocorrerá, diante do atual enfraquecimento das esquerdas políticas?

Sílvio Yasui – O cenário político que produziu a troca de ministros, em especial o da saúde, saindo um sanitarista histórico que era o Ministro Arthur Chioro e assumindo o deputado Federal Marcelo Castro, sem nenhuma vinculação com o movimento sanitário, permanece o mesmo. O que significa dizer que há questões políticas mais amplas que envolvem a sustentação e a governabilidade. Neste sentido, acho que é o momento dos movimentos sociais, dos diferentes partidos políticos da esquerda, enfim, de todos os que estejam implicados na construção de uma sociedade mais justa, humana e solidária a produzir uma grande onda de contestação não apenas ao Ministro, mas a este movimento conservador que produzirá efeitos perniciosos às conquistas sociais, duramente construídas e conquistadas nos últimos anos.

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Silvio Yasui relata experiências em entrevista para o (En)Cena

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(En)Cena entrevistou Silvio Yasui, que possui graduação (Universidade de Mogi das Cruzes – 1979) e mestrado (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – 1999) em Psicologia, além de  doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (2006). É professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Mental, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental reforma psiquiátrica, atenção psicossocial, atividades expressivas e oficinas terapêuticas. É autor do livro Rupturas e Desencontros, publicado em 2010, pela Fundação Oswaldo Cruz .

A conversa foi logo depois da participação do professor no programa Diálogos Culturais na Rádio Ullbra Palmas, no dia 17 de maio.  Silvio Yasui brincou com o calor palmense mas se disse muito contente por voltar à Palmas e ver as mudanças no espaço urbano da cidade. Ele veio à capital do Estado do Tocantins para participar justamente do evento de lançamento do (En)Cena.  Com fala leve e pausada fez diversos comentários sobre o contexto da saúde mental, evidenciando que falar sobre o tema é falar sobre o processo civilizatório.

Foto: Samuel Maciel

(En)Cena – Historicamente, o individuo com problemas mentais, recebeu o status de cidadão de segunda-classe, status este atribuído também (com considerações diferenciadas) a diversos outros grupos marginalizados, entretanto, em que difere o tratamento que, ao longo da história, foi dado aos “loucos”?

Silvio Yasui – De semelhante, o mesmo processo de estigma e exclusão social. De diferente, a motivação para tal processo. Os leprosos exibiam em seus corpos as marcas que produziam o estigma. Havia uma exterioridade. No caso dos loucos a exclusão referia-se a uma interioridade. São os afetos, os pensamentos, as convicções, as motivações para a exclusão. Outro aspecto que marca uma importante diferença: a um determinado momento, surge uma autoridade que percebe, determina e promove a exclusão/tratamento. É o médico psiquiatra o encarregado de produzir as provas que classificam o doente mental.

(En)Cena – Quando se aborda a questão do território, do espaço social, por que debate-se (ou debateu-se) tanto a necessidade de integrar o tratamento psiquiátrico a uma dimensão social? O manicômio como “lugar pra louco” foi uma tentativa eugênica de lidar com esse problema?

Silvio Yasui – O surgimento do hospital psiquiátrico é um fenômeno que podemos localizar historicamente no mesmo momento de organização do espaço urbano no final do século XVIII. O louco incomoda nas ruas das cidades quando estas começam a ganhar importância econômica, social e política. No Brasil isso é evidente especialmente quando se pensa que o primeiro hospital psiquiátrico inaugurado em 1852, teve como uma de suas motivações a remoção do lixo humano que se acumulava nas ruas. No inicio do século XX, o psiquiatra Franco da Rocha, também apontava para o hospital psiquiátrico como uma instituição para limpar a cidade.

Um pouco mais adiante, a Liga Brasileira de Higiene Mental nos anos 30 do século passado, propunha várias medidas para a esterilização dos loucos para a purificação da raça brasileira.

Ou seja, não é possível pensar na história da loucura sem articulá-la ao lugar e ao tempo histórico em que ela foi construída.

Neste sentido, não é possível pensar uma mudança da atenção em saúde mental, sem pensar no papel que o território e o tempo histórico cumprem neste processo.

(En)Cena – Professor, quando o tema ‘território’ aparece na discussão sobre saúde mental, qual sentido é referido? Como entender esse território?

Silvio Yasui – Quando falamos de território nos referimos bem mais ao conceito apresentado por Milton Santos, geógrafo, que explica esse conceito a partir de uma observação diferenciada. Neste sentido o território é entendido como um espaço das vivências, das atividades, da experiência de cada individuo, esta é a contribuição que emprestamos para falar sobre o tratamento aliado ao conceito de território, pois percebemos que o indivíduo que passa pela experiência do transtorno mental precisa manter essa relação com o seu território.

(En)Cena – Ainda persiste a idéia de que existe um lugar para o louco?

Silvio Yasui – Olha, se você sair agora por aquela porta (aponta a porta do estúdio de rádio) e perguntar para as pessoas que encontrar no corredor qual é o lugar do louco, posso lhe garantir que a maioria responderá que é um manicômio ou um hospital psiquiátrico, ou seja, a visão do local de internação, de segregação.

(En)CenaA partir disto podemos dizer que o CAPS deve ser então um ‘não-lugar’?

Silvio Yasui – Olha esta é a idéia que tenho sobre o CAPS: ele cada vez mais deve se tornar uma estratégia e cada vez menos um local, um espaço. Isso justamente para lidarmos com essa conotação do território. É importante frisar que são 20 e poucos anos de história do CAPS, que começa como um serviço idealizado criado no estado de São Paulo e que só depois vira o modelo que se espalhou pelo Brasil, e muitos séculos de uma mentalidade que diz que tratamento em saúde mental é: remédio, internação etc.

(En)Cena – As décadas de 60 e 70 do século XX foram marcadas por diversos fenômenos sociais, políticos, econômicos. A trajetória do cuidado psicossocial também tem seu curso afetado por esses acontecimentos?

Silvio Yasui – A resposta anterior já contempla esta. Não é possível pensar a Reforma Psiquiátrica brasileira sem se referir ao processo de redemocratização do país, aos movimentos sociais, a luta contra a ditadura, enfim ao tempo histórico que produziu uma profunda reforma no Estado brasileiro que possibilitou a formulação e a implantação, nos anos pós-constituição de 1988, de várias políticas públicas, dentre elas a da saúde e da saúde mental.

(En)Cena – Professor, 24 anos depois do encontro em que se criou o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, em 1987, e 10 anos depois da Lei 10216/2001, como se encontra o cenário nacional relativo à saúde mental?

Silvio Yasui – Muita coisa foi feita e falta ainda muito a fazer. Esta frase sintetiza um pouco minha sensação de militante que esteve presente ativamente no Encontro de 1987. O fato de nossos projetos e ideais terem se transformado em política pública nos colocou uma imensa responsabilidade. Por outro lado, vivemos um tempo histórico de um certo retorno conservador, especialmente em algumas prefeituras. Isso leva a um cenário de intensos conflitos no campo da saúde, não apenas da saúde mental. Uma proposta de mudança tão importante como a da saúde não pode ser gerida por amadores ou por interesses políticos/pessoais mesquinhos. Não se muda uma realidade assistencial de décadas, sem que haja uma profunda e verdadeira implicação dos gestores, trabalhadores e usuários neste processo. E gestores e trabalhadores implicados e protagonistas de mudanças têm sido difícil de encontrar neste atual cenário.

(En)Cena – A respeito do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, quais as considerações que devem ser feitas?  Mudou-se a maneira de pensar inclusive o próprio movimento?

Silvio Yasui – Um pouco respondi na questão anterior. Mudaram-se as estratégias. Antes tínhamos experiências pontuais, inspiradas em ideais. Hoje, elas se transformaram em política ministerial. Com regras, financiamento e etc. Embora os ideais estejam contidos nas portarias, resoluções ministeriais, a sua concretização ficou esvaziada daquilo que mais se destacava no movimento: a paixão. Em certo sentido, tudo ficou um pouco mais burocrático. Neste sentido, acho que o movimento deve retornar no reencantamento de trabalhadores, usuários e gestores, a essa paixão pela mudança, pela invenção, pela ousadia que foram as marcas iniciais da Reforma Psiquiátrica.

(En)Cena – Professor, na sua visão com esse esforço em prol da mudança de mentalidade, chegaremos em um estágio aonde o indivíduo considerado louco vai deixar de ser encarado como sujeito que tem de ser separado do meio social?

Silvio Yasui – Eu tenho que acreditar que isso vai acontecer não só com o louco, mas com o negro, com o homossexual, enfim… com as parcelas da população que sofrem algum tipo de preconceito. Toda essa discussão nos leva, na verdade, à uma discussão maior que fatalmente requer que encaremos o processo civilizatório de uma forma mais ampla. Mas é esse horizonte ético que devemos percorrer, e é isso que mantém as constantes transformações em curso.

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