Despencados de voos cansativos
Complicados e pensativos
Machucados após tantos crivos
Blindados com nossos motivos
Amuados, reflexivos
E dá-lhe antidepressivos
Acanhados entre discos e livros
Inofensivos
Será que o Sol sai prum voo melhor?
Eu vou esperar
Talvez na primavera
O céu clareia, vem calor, vê só
O que sobrou de nós e o que já era Em colapso o planetagira
Tanta mentira aumenta a ira de quem sofre mudo
A página vira, o são delira
Então a gente pira e, no meio disso tudo, tamo tipo
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
A Babilônia é cinza e neon, eu sei
Meu melhor amigo tem sido o som, okay
Tanto carma lembra Armagedom, orei
Busco vida nova tipo ultrassom, achei
Cidades são aldeias mortas, desafio nonsense
Competição em vão, que ninguém vence
Pense num formigueiro, vai mal
Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus
No pé que as coisas vão, jão, doideira
Daqui a pouco resta madeira nem pro caixão
Era neblina, hoje é poluição
Asfalto quente queima os pé no chão
Carros em profusão, confusão
Água em escassez, bem na nossa vez
Assim não resta nem as barata (é memo)
Injustos fazem leis e o que resta procês?
Escolher qual veneno te mata
Pois somos tipo
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho (dois, três, quatro)
Nem que seja no peito um do outro
Fonte: Desenho para Colorir
Quem diria que uma música lançada lá em 2015 faria tanto sentido ainda em 2024? Como ele revela na letra de “Passarinhos”: “E dá-lhe antidepressivos / o são delira / Então a gente pira / Cidades são aldeias mortas / Competição em vão, que ninguém vence”. Estes refrões carregados de significado simbólico, marcam uma angústia muito contemporânea, na qual o homem vive de anestesiar suas emoções, em uma vida de competições, que acaba por ser sem sentido, dito que a linha de chegada é inalcançável, e a evidente perda do senso coletivo, de um pertencimento comunitário resultando em uma aldeia morta, então o que resta a nós, a não ser pirar? E ouso dizer que pirar é o mais perto que chegamos da lucidez.
Nos tensiona a uma reflexão acerca de como temos sofrido um deslocamento de valores, na perda de processos de significâncias, que postulam tanto o homem, quanta a terra em objetos:“Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus”/“No pé que as coisas vão, jão, doideira Daqui a pouco resta madeira nem pro caixão”. Simbolizando aqui a nossa perda e desencantamento do mundo, de onde se desloca o sagrado do corpo e território, transformando-os em matéria, que podem ser exploradas, vendidas e subjugadas, dada a essa perda de significado e sentido, e a um processo de racionalização que retira o sentido mágico que transforma tudo em apenas “coisas e objetos”.
“Quanto mais o intelectualismo repele a crença na magia, e com isso os processos do mundo ficam ‘desencantados’, perdem seu sentido mágico e doravante apenas ‘são’ e ‘acontecem’, mas não ‘significam’ mais nada, tanto mais urgente resulta a exigência, em relação ao mundo e à ‘conduta de vida’ como um todo, de que sejam postos em uma ordem significativa e plena de sentido” (WEBER, 1991, p. 344).
Em uma rápida busca no google, em 2024, esses são os títulos de algumas manchetes : “Seca ‘sem precedentes’ faz lago no AM definhar” (Uol, 2024); “Inmet publica alerta laranja” (Agora RS, 2024); “Cerrado tem alta de 19% nos alertas de desmatamento” (Agência Brasil, 2024); “Focos de incêndio na área amazônica em 2024 superam os números do ano anterior” (CNN Brasil,2024); E lá em 2015 já cantava Emicida: “Era neblina, hoje é poluição/Asfalto quente queima os pé no chão /Carros em profusão, confusão/ Água em escassez, bem na nossa vez/ Assim não resta nem as barata (é memo)/ Injustos fazem leis e o que resta procês? Escolher qual veneno te mata”/ No pé que as coisas vão, jão, doideira/ Daqui a pouco resta madeira nem pro caixão” com muita sensibilidade esse refrão me toca, pois todos os dias as notícias e manchetes pronunciam, a chegada desse dia, em que não teremos madeira nem pra caixões, e sentir a iminência desses versos, nós despertam indignação e desesperança, com o descaso por crises humanitárias que são recorrentes de anos, me faz pensar no que disse Alanis Obomsawin “Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver sido poluído, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que dinheiro não se come.” É urgente rever nossas formas de existir, é urgente que se dê nome aos grandes “produtores” dessas crises os “Injustos fazem leis”, que sejam taxadas as desigualdades, que imperam na criação de calamidades humanitárias e ambientais.
Mas apesar de: “Despencados de voos cansativos/ Complicados e pensativos/ Machucados após tantos crivos/ Blindados com nossos motivos/ Amuados, reflexivos.” Podemos então acreditar que “Será que o Sol sai prum voo melhor” Emicida traz aqui uma metáfora “soltos a voar, dispostos a achar um ninho/ Nem que seja no peito um do outro” que eu traduzo como uma tecnologia revolucionária o procurar o outro, o formar um ninho, o encantar o mundo, o resgatar simbolismos, e quem sabe assim voltar a criar dias melhores.
Referências
CAPRIOLI, Victor. Agora RS. O retorno da chuva. Inmet publica alerta laranja de tempestade para o RS. Rio Grande-Sul. Disponível em: <link>. Acessado em: 03 Out, 2024.
UOL. Seca ‘sem precedentes’ faz lago no AM definhar. São Paulo,2024. Disponível em: <link>. Acesso em 03 Out, 2024.
BONDE, Letycia. Agência Brasil.Cerrado tem alta de 19% nos alertas de desmatamento em fevereiro. São Paulo, 2024. Disponível em: <link>. Acesso em 03 Out, 2024.
CARDOSO, Alan. CNN Brasil. Focos de incêndio na área amazônica em 2024 superam os números do ano anterior. São Paulo, 2024. Disponível em: <link>. Acessado em 03 Out, 2024.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. vol. I. Brasília: Ed. Univ. Brasília, 1991.
Compartilhe este conteúdo:
Implicações da Covid-19 na população negra brasileira
O novo coronavírus, denominado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de SARS-CoV-2, responsável pela doença Covid-19, emergiu e foi identificada em Wuhan, na China, em dezembro de 2019 (LANA et al. 2020). Em 11 de março de 2020, em virtude ao acelerado ritmo de disseminação do vírus, a OMS declarou a pandemia de Covid-19. Conforme dados da Organização Pan-Americana de Saúde (2020), foram ratificados, em nível mundial, 789.197 óbitos até 21 de agosto de 2020, ademais 22.536.278 casos de infecção foram confirmados.
As dores e inquietações provenientes das epidemias, além de serem condições de saúde, também estão associadas a problemas políticos e culturais, pois essas experiências são contextuais e relacionais, visto que o ser humano compreende dimensões biológicas, psicológicas e sociais. Diante disso, à vista dos dados consolidados e expostos pelos veículos de imprensa e informação, constata-se que, conforme Cunha (2020), há populações que se encontram mais sujeitas a contaminação e, consequentemente, a letalidade do vírus. Haja vista que alguns indivíduos configuram maior exposição e, por esse motivo, estão mais suscetíveis a serem atingidos e vitimados em razão de suas circunstâncias sociais, econômicas e de saúde. No cenário brasileiro, a pandemia do novo coronavírus atinge e afeta de modo desigual a população negra, periférica e vulnerável (AMPARO, 2020).
Acontecimentos lastimáveis como esse, além de deixarem rastros de mortes, sofrimento e muita dor, evidenciam um enorme abismo social. A constância da desigualdade presente neste país produz, no imaginário social, uma naturalização da mesma, o que “resulta de um acordo social excludente, que não reconhece a cidadania para todos, onde a cidadania dos incluídos é distinta da dos excluídos e, em decorrência, também são distintos os direitos, as oportunidades e os horizontes.” (HENRIQUES, 2001, p. 1).
Fonte: encurtador.com.br/fESV7
Racismo individual, institucional, estrutural
Silvio de Almeida, grande intelectual jurista, filósofo e professor, evidencia, em seu livro denominado Racismo Estrutural, que o racismo é sempre estrutural. O movimento histórico que aconteceu no século XVI com a ampliação da economia mercantilista junto ao descobrimento do chamado novo mundo, e logo após o iluminismo que contribuiu de forma significativa e projetou ferramentas que se constituíam dos fatores biológicos, psicológico, econômico e linguístico, para classificar grupos de humanos, serviu basicamente de ponto de partida do que seria o modelo de “homem universal”, baseado no homem europeu.
O positivismo já no século XX, com suas técnicas mensuráveis, foi manejado de tal forma a contribuir com a disseminação do racismo científico. Através das concepções deterministas da época, defendeu-se então a superioridade do homem branco europeu sobre as demais raças, se utilizando de parâmetros da biologia e da física para afirmar que as características físicas, biológicas e ambientais eram capazes de explicitar “as diferenças morais, psicológicas e intelectuais entre as diferentes raças” (ALMEIDA, 2019, p. 25).
Numa perspectiva do racismo individual, o fenômeno é visto como um comportamento patologizado/anormal de um sujeito ou grupo isolado, assim, não havendo uma sociedade ou instituição racista, mas pessoas e grupos racistas. Este horizonte se mostra superficial sobre a análise de que o racismo não nasce e se desenvolve isoladamente, mas é um construto que a todo momento se modifica em prol de uma manutenção do poder de determinados grupos raciais em detrimento de outro, o que não quer dizer que sujeitos que cometem atos discriminatórios não devam ser julgados.
O termo racismo institucional traz em sua concepção que o racismo se reverbera da sociedade para as instituições e das instituições para a sociedade refletindo-se nas normas, padrões de funcionamento e comportamento, influenciando as nossas decisões, preferências e sentimentos. Portanto, levando em consideração que são os homens brancos que ocupam esse lugar de poder nas instituições, a manutenção e a formulação desses padrões sociais, são feitos para privilegiar pessoas brancas.
Este processo se configura sistematicamente, numa estrutura que acaba por normalizar o racismo no âmbito de esferas importantes e que norteiam a sociedade como nas áreas política, jurídica, econômica e social, ou seja, ele é estrutural. Portanto, é necessária uma agenda política que de fato trabalhe na desconstrução desse sistema, dessa estrutura que privilegia pessoas brancas em detrimento de pessoas negras.
Fonte: encurtador.com.br/iACIS
Racismo no Brasil
O Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888, não propiciou de nenhuma maneira aos negros que, supostamente, tinham recebido de volta sua liberdade após receberem as cartas de alforria, políticas que fizessem com que fossem inseridos socialmente e economicamente na sociedade. Além do governo brasileiro não construir estratégias de emancipação econômica para a população negra, promoveu a imigração europeia ao Brasil, com o intuito de embranquecer a população. A esse respeito tem-se que:
A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos sem que o estado a igreja ou qualquer instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objetos prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto se viu, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva. (FERNANDES, 2008, p. 29).
Petrônio Domingues (2007) diz que ao longo do período republicano o movimento negro, por meio de diversas modalidades de protesto e mobilização, buscou a inclusão social do negro e a superação do racismo na sociedade brasileira. Seguindo essa mesma ideia Gay e Quintans (s/d) afirmam que durante a redemocratização do Brasil o movimento negro assume “novos contornos, e passa a reivindicar uma série de direitos e políticas públicas capazes de combater o racismo e reduzir as desigualdades” (GAY; QUINTAS, s/d, p. 3). Pode se dizer que estas lutas possibilitaram alguns progressos tais como: acesso à educação, à saúde, participação política, igualdade perante a lei conforme está garantido na Constituição Brasileira de 1988 inspirada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Contudo, na prática muitos desafios ainda precisam ser superados.
Nesse sentido, para Silva (2013) a educação tem sido um trampolim de ascensão para que os negros consigam vencer os obstáculos impostos pelos dispositivos de poder e seleção para chegar ao ensino superior, embora ela sozinha não consiga vencer o racismo estrutural. De modo que, mesmo entre os negros com os melhores níveis de escolaridade, os salários são inferiores aos dos brancos. Nesse aspecto a mulher negra é a mais atingida, mesmo aquelas com mais anos de estudo ganham menos que os homens brancos, mulheres brancas e homens negros. Portanto, fica claro que “a desigualdade se mostra articulada não apenas com a categoria raça, mas também com a categoria gênero” (SILVA, 2013, p. 101).
Fonte: encurtador.com.br/hqFY3
Racismo no âmbito do mercado de trabalho
O racismo estrutural, faz parte de todas as esferas da sociedade de modo a impedir intergeracionalmente a ascensão econômica e social do povo negro de forma violenta e voraz. Nesse processo, a mulher negra foi estuprada cotidianamente, obrigada a trabalhar na cozinha da família branca, enquanto outras trabalhavam nas lavouras, executando o mesmo trabalho dos homens. Angela Davis (2016, p. 17), em seu livro intitulado Mulheres, raça e classe, explicita que as mulheres negras eram vistas apenas como “unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de escravos elas poderiam ser desprovidas de gênero.” Mesmo após a Lei Áurea a situação não mudou muito para a maioria, que continuou a trabalhar como empregada doméstica na casa das famílias aristocratas e burguesas, possibilitando a emancipação da mulher branca que pôde investir no campo intelectual e profissional.
“A história de privação das mulheres negras, se as tornam invisíveis também as desumaniza, daí a naturalização de sua pobreza e exploração, daí também a sua presença majoritária nas funções de pior remuneração”. (SILVA, 2013, p. 102). Exemplo disso é que um dos primeiros casos de coronavírus no país, no estado do Rio de Janeiro no Alto Leblon, um bairro da zona sul, foi o de uma empregada doméstica de 63 anos que trabalhava há dez anos na casa da família da patroa que a contaminou e que acabara de chegar da Itália, país que se mostrou um dos epicentros da doença no início da pandemia. A vítima veio a óbito no dia seguinte ao apresentar os sintomas da Covid-19.
Em depoimento ao site UOL (2020), a cunhada da vítima relatou que “ela era muito trabalhadora. Pegava três conduções para chegar ao trabalho. Para voltar, era a mesma coisa: dois ônibus e um trem. Ela saía de casa no domingo e só voltava na quinta”. Essa é a realidade de trabalho de muitos negros no Brasil, com jornada de trabalho extensa e com baixa remuneração, tendo que enfrentar as dificuldades de mobilidade, já que as cidades são projetadas para separar as classes mais “altas” de classes mais “baixas”. Muitas vezes, por não conseguirem trabalhos formais de carteira assinada, precisam trabalhar na informalidade para tentar garantir o mínimo para o sustento de suas famílias. Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2003, 27% das mulheres negras trabalham como empregadas domésticas e apenas 23% possuem carteira assinada, enquanto 12% das mulheres brancas que são empregadas domésticas, 30% tem registro na carteira.
Este dado supramencionado mostra o impacto direto em questões como a aposentadoria, pois para receber o benefício é necessário um tempo de contribuição, sendo no caso das mulheres, 30 anos, e, dos homens, 35 anos, conforme evidencia o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em 2019. Devido ao processo histórico, conforme expõe Goes, Ramos e Ferreira (2020, p. 1), a população negra encontra-se, majoritariamente, presente nos indicadores negativos, tais como “atividade no mercado de trabalho informal, que limita o acesso a direitos básicos como a remuneração pelo salário mínimo e a aposentadoria.” Acresce-se ainda que a pandemia desvela a desigualdade do Brasil e salienta o quão pouco este país avançou na superação do racismo, dado que, como já supracitado, esta configura um dos fatores determinantes para este cenário de altas taxas de mortalidade.
Neste cenário atual de pandemia pode-se ressaltar também que atender a necessidade de exercer o isolamento social sem que haja comprometimento do trabalho de onde advém a renda, representa um grande desafio, tendo em vista que muitos ocupam cargos informais, ou ofícios considerados essenciais durante a pandemia, que demandam presença física e trabalho manual, e não estão amparados por benefícios ou direitos trabalhistas.
Fonte: encurtador.com.br/iCE56
Impacto do racismo na saúde dos negros
A saúde, conforme prevê a Constituição Federal de 1988, Art. 196, visa alcançar o bem-estar e a justiça social, além de ser reconhecida como direito de todos e dever do Estado, por intermédio de políticas públicas e econômicas que objetivem reduzir riscos e agravos, bem como acesso universal e igualitário às ações e serviços para prevenção, promoção, proteção e recuperação. Outrossim, a mesma ainda estatui a respeito de direitos sociais fundamentais como trabalho, segurança, lazer, previdência social e proteção à maternidade e à infância.
Nesta perspectiva, averígua-se que as desigualdades de saúde presentes nos países, bem como a maioria das enfermidades, decorrem de questões socioeconômicos, raciais, étnicas e de gênero, assim como circunstâncias de nascimento, moradia, trabalho e renda, isto é, Determinantes Sociais da Saúde (DDS), que, em um contexto racista, restringe o acesso à informações e serviços disponíveis, visto que as condições de vida dos indivíduos estão diretamente relacionadas a sua situação de saúde (BUSS; FILHO, 2017).
À vista disso, faz-se necessário ampliar debates sobre o fato de que o racismo se configura como determinante social da saúde, uma vez que grande parcela da comunidade negra está exposta e vulnerável a conjunturas de padecimento, violência, enfermidades e morte, em bairros excludentes, com maior poluição e sem acesso a serviços fundamentais. (GOES; RAMOS; FERREIRA, 2020).
Institucionalmente, as desigualdades e injustiças sociais estorvam e engendram o acesso a serviços essenciais, bem como a oportunidades, em consequência do racismo estruturado. Desta forma, verifica-se o intenso sofrimento, negligenciado pelo Estado, que negras e negros vivenciam em suas realidades, assim como o padecimento devido aos impactos da pandemia da Covid-19 e seus múltiplos desdobramentos negativos. No começo da pandemia os casos de infectados não eram divulgados por cor. Segundo o site globo.com (2020) “os boletins só passaram a incluir tais números a partir do dia 11 de abril, quase 1 mês e meio depois da confirmação do primeiro caso de Covid-19, e graças a pressão da coalizão negra por direitos”, dado este que demonstra a tentativa de invisibilização da população negra.
Neste ínterim, cabe ressaltar que, segundo Santos (2013), às condições insalubres de moradia, a falta ou precariedade na infraestrutura de saneamento básico historicamente negligenciada pelas políticas públicas à população negra submete-a a diversas mazelas socioambientais como: utilizar água não potável, conviver com lixo e esgoto a céu aberto, falta de limpeza urbana, enchentes, desmoronamentos de encostas, estas e outras situações causadoras de diversas doenças. Assim, a discriminação fundamentada em fatores raciais/étnicos, de gênero, socioeconômicos contribui decisivamente para dificultar o acesso dos negros a direitos básicos e os submete a um tratamento desigual geradores de condições de vida degradantes levando-os ao adoecimento físico e mental podendo chegar a comorbidades e mortalidade graves.
Sob essa luz se justifica a afirmação feita por Thiago Amparo no site Folha de São Paulo (2020): “Mede-se racismo por quão descartável é o corpo negro. Se a Covid-19 desnuda as feridas do racismo que estrutura nossa desigualdade, curar esta pandemia pressupõe, antes de tudo, expô-las.” À vista do que foi exposto, conclui-se que condições sociais possuem forte influência no processo saúde-doença e, posto isso, entende-se a necessidade de implementar-se ações que envolvam todos os setores visando a promoção do bem-estar. Destarte, observa-se que a atual esfera exige procedimentos específicos para o combate ao racismo e suas consequências.
Fonte: encurtador.com.br/rACG1
O papel da Psicologia frente ao racismo
A psicologia, enquanto ciência e profissão, tem sua ação fundamentada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, conforme explicita o Código de Ética Profissional de Psicologia. Além disso, é uma ciência aplicada nos processos coletivos e atua na “promoção, prevenção e reabilitação na esfera psíquica do ser humano. Portanto nas esferas social, econômica, política, cultural, biológica” (RIBEIRO, 2017, p.175). Nesse sentido, a psicologia social vislumbra o indivíduo como biopsicossocial, ou seja, considera-o de maneira integral tendo em vista sua história de vida.
O Conselho Federal de psicologia (CFP), lançou referências técnicas em torno da atuação dos psicólogos referentes a questões raciais. Neste documento, entre as várias pautas abordadas, a discussão sobre a formação do profissional de psicologia é necessária e urgente, visto que a grade curricular tem certa carência sobre racialidade. Assim o texto traz que
A formação da(o) psicóloga(o) é um momento privilegiado para a construção de conhecimento, de saberes e de práticas sobre diversos assuntos vividos no cotidiano dos sujeitos. Portanto, é nesse momento que se faz necessário apresentar aos estudantes temas relevantes, para despertar o interesse na busca do conhecimento e possibilitar o reconhecimento dos aspectos que envolvem as relações raciais e seus efeitos psíquicos presentes no cotidiano em nossa sociedade. (CFP, 2017, p. 105).
Portanto, os profissionais que se encontram no exercício da profissão, bem como os acadêmicos de Psicologia necessitam compreender a amplitude e especificidade de como se processam as relações raciais no contato social “e principalmente que há um sofrimento psíquico peculiar sutil ou explícito presentes no cotidiano das pessoas negras”, conforme apresenta a referência técnica (CFP, 2017, p. 107).
Na atuação deste profissional, é apropriado aplicar em seu cotidiano os princípios fundamentais propostos, visando extinguir quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão dos direitos, visto que é dever deste atuar com responsabilidade social de forma crítica, considerando as diversas realidades.
Dessa forma, o racismo deve ser um tema trabalhado não só pela Psicologia Social, mas também pelas outras abordagens de forma transversal para que as consequências psicossociais do racismo sejam entendidas como um aspecto que compõe a subjetividade dos sujeitos brancos e negros, indo para além de uma conceitualização superficial, reconhecendo, compreendendo, problematizando e combatendo ações racistas e suas diversas consequências, prevenindo e evitando sua eventualidade. Sendo assim, a Psicologia deve unir-se a outros campos do conhecimento, posto que o racismo ataca por múltiplas frentes (ESPINHA, 2017).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Flávio Aparecido de. A psicologia social e o papel do psicólogo na sociedade contemporânea. 2018
ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. 1 ed. São Paulo: Polén, 2019.
AMPARO, Thiago. Por que a Covid-19 é tão letal entre os negros? Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2020/04/por-que-a-covid- 19-e-tao-letal-entre-os-negros.shtml>. Acesso em: 01 de jul. de 2020.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988, 292 p.
BUSS, P. M. ; PELLEGRINI FILHO, Alberto. A saúde e seus determinantes sociais. Physis: revista de saúde coletiva, v. 17, p. 77-93, 2007.
Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia, Brasília, agosto de 2005.
CUNHA, L. R. da. População negra como vítima da covid-19 e os deveres do estado, medidas necessárias e não efetivas. 2020
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe.1 ed. São Paulo; tradução Heci Regina Candiani: Boitempo, 2016.
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. In: Tempo, 2007.
FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008.
FOLHA informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Organização Pan-Americana de Saúde, 2020. Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875>. Acesso em: 29 de jun. de 2020.
ESPINHA, T. G.. A temática racial na formação em psicologia a partir da análise de projetos político-pedagógicos: silêncio e ocupação. 2017.
GAY, Antonia, QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Disponível em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=7d7733c8d01b7352>. Acesso em: 23 de ago. de 2020.
GOES, E. F.; RAMOS, Dandara de Oliveira; FERREIRA, Andrea Jacqueline Fortes. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.3, 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462020000300301#aff>.Acesso em: 03 de jul. de 2020.
HENRIQUES, Ricard, (2001). Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90. Rio de Janeiro: IPEA (Texto para discussão, nº 807).
HERINGER, Rosana. Desigualdades raciais no Brasil: síntese de indicadores e desafios no campo das políticas públicas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 18, . p. 57-65, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2002000700007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 02 de jul. de 2020.
LANA, R. M. et al. Emergência do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e o papel de uma vigilância nacional em saúde oportuna e efetiva. Cadernos de Saúde Pública, [S.l.], v. 36, n. 3, 2020.
LIBBY, D. C. ; PAIVA, E. F.. A escravidão no Brasil: relações sociais, acordos e conflitos. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 2009.
MARASCIULO, M.. Na pandemia de Covid-19, negros morrem mais do que brancos. Por quê?. Revista Galileu, 2020. Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/05/na-pandemia-de-covid-19-negros-morrem-mais-do-que-brancos-por-que.html> Acesso em: 10 de jul. de 2020.
MELO, Maria Luisa de. UOL: Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon, 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm>. Acesso em: 09 de jul. de 2020.
PEREIRA, Neuton Damásio. A trajetória histórica dos negros brasileiros: da escravidão a aplicação da lei 10.639 no espaço escolar. 109 f. (Especialização em educação das relações étnicos-raciais) Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2015. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/52792/R%20-%20E%20-%20NEUTON%20DAMASIO%20PEREIRA.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 04 de jul. 2020.
REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL. Quilombos: escravos desafiam o poder. Ano 3, n. 27, dezembro, 2007.
REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL. Abolição: a ascensão dos negros antes da Lei Áurea. Ano 2, n. 19, maio, 2005.
RIBEIRO, Emanuele Oliveira. Psicologia, racismo e saúde mental: formas de intervenção no trabalho do psicólogo. Odeere: Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade. Bahia, v. 2, n. 4, 2017.
SILVA, René Marc da Costa. História dos trabalhadores negros no Brasil e desigualdade racial. Universitas JUS, v 24, n. 3, p. 93-107, 2013. Disponível em: https://www.google.com/search?q=SILVA%2C+Ren%C3%A9+Marc+da+Costa.+Hist%C3%B3ria+dos+trabalhadores+negros+no+Brasil+e+desigualdade+racial.+Universitas+JUS%2C Acesso em: 09 jul. de 2020.
SONIA, Santos Beatriz. Famílias Negras, Desigualdade e Saneamento Básico no Brasil. Rev Tempus Actas Saúde Col, 2013. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/302452785_Familias_Negras_Desigualdades_Saude_e_Saneamento_Basico_no_Brasil Acesso em: 04 de jul. 2020.
Compartilhe este conteúdo:
Publicitária investe em projeto social no Jardim Taquari
Iniciativa idealizada por Neyla Rodrigues ganhou nome de “Meninas de Deus” – Foto: Divulgação
Neyla Rodrigues não acredita em preconceito racial, e sim, em preconceito com pessoas menos favorecidas economicamente. Diante de injustiças e até do abandono deste grupo social, por parte dos governos e da própria sociedade, a publicitária decidiu dedicar grande parte do tempo para atender necessidades de crianças carentes que passam por abuso sexual e, em alguns casos, a indiferença da própria família.
O En(Cena) entrevistou a publicitária Neyla Rodrigues, 35, empresária e idealizadora do Projeto Social “Meninas de Deus”, no setor Taquari, bairro da cidade de Palmas-TO. A iniciativa nasceu de um apelo social, mas também de uma visão prática de que é possível fazer mais, cobrando ação: “Se puder ajudar uma criança hoje, não terá que restaurar um adulto amanhã”, alerta o slogan do projeto.
Há mais de 10 anos o trabalho voluntário entrou na agenda de Neyla Rodrigues. Mas um episódio, em 2013, fez uma reviravolta na vida dela. O caso de estupro ocorrido no setor Taquari, envolvendo uma adolescente, lhe deixou comovida e a fez tomar decisão de se dedicar ainda mais, para ajudar famílias e, principalmente, crianças e adolescentes em situação de risco social. Neyla estava na sala de espera de um consultório médico quando ficou sabendo da história de uma menina de 12 anos que foi estuprada, esfaqueada e deixada como morta no local do crime. “Quando fiquei sabendo dessa história, imediatamente procurei informações e descobri que, até mesmo a equipe médica do Hospital Geral de Palmas, chorou quando recebeu a adolescente para atendimento de urgência”. A publicitária relembra que, a menina chegou a ficar 90 dias em coma. “Atualmente, mesmo com as marcas de agressões no rosto, ela já está estudando e fico orgulhosa, pois, ela busca referências minhas para o futuro”, diz.
Com visitas de rotina ao setor Taquari, a publicitária conheceu de perto a realidade de cerca de 400 famílias no bairro. “Eu uso método individual para cada caso, não tenho uma formula mágica, minha fórmula não é dar cesta básica”. Neyla acredita que cesta básica é apenas uma tentativa para distrair a pessoa da situação em que ela vive. “Confronto as meninas para tentarem mudar a situação de suas vidas, ensino a não dependerem de ninguém e a terem o controle de suas ações”, explica.
Neyla Rodrigues – Foto: Arquivo Pessoal
Para tornar de conhecimento público, sensibilizar e conscientizar sociedade, a publicitária criou uma página na rede social Facebook, para as postagens diárias. O conteúdo publicado conta com vídeos, imagens e textos contando um pouco da realidade e histórias que acontecem no Taquari. Neyla dá detalhes do projeto na entrevista para o En(Cena).
En(Cena) – O que a motivou começar o projeto “Meninas de Deus”, no Taquari?
Neyla Rodrigues – O caso de uma menina de 12 anos que foi estuprada e deixada como morta. Por já desenvolver um projeto social há dez anos, os piores casos sempre chegam até mim. Os moradores de Taquari já estavam há algum tempo pedindo que eu começasse o meu trabalho lá com as crianças e adolescentes, principalmente porque é grande o uso de crack em Taquari.
En(Cena) – Quais os principais problemas que você atende no Taquari?
Neyla Rodrigues – O meu foco são as crianças e adolescentes, não trabalho muito com adultos (risos…), eu gosto da espontaneidade e verdade das crianças. São casos de miséria, drogas, violência e prostituição, tento resolver qualquer coisa, não posso me prender a uma fórmula.As pessoas confundem muito, pedem pra visitar achando que é um abrigo, mas se fosse, eu estaria presa a resolver apenas um tipo de problema. Em certos casos, para ajudar uma criança eu procuro a fundo pesquisar todo o problema familiar, até que, tudo esteja resolvido e essa família tenha condições de ter uma vida digna sem precisar de ajuda. Eles confiam em mim e não gostam de receber visitas como se eles fossem atração de um circo, e eu respeito isso. Enfim, busco evitar que as crianças se envolvam com as drogas ou a criminalidade, temos encontros semanais em praças, quadras, casas emprestadas. Além disso, buscamos internações para usuários e empregos para os pais, todo mundo tem um talento para fazer algo bem feito, buscamos isso nas pessoas, capacitamos, fazemos “vaquinhas”, enfrentamos a burocracia. Não é tudo lindo como nas redes sociais, (página do facebook criada para buscar apoio voluntário), tem todo um desgaste burocrático e que toma muito tempo. Por exemplo, temos casos de meninas com tendências a prostituição, devido a mãe ser prostituta e influenciar a elas que também fossem. Diante disso tudo,não sou a favor de enviar alguém para abrigo, pois, penso eu, gera uma situação de abandono.
Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação
En(Cena) – Você teve que abandonar projetos da sua vida para se dedicar a outras pessoas?
Neyla Rodrigues – Sim. Os piores problemas chegam até mim 24h, tenho que acordar de madrugada todos os dias, ou trabalhar até tarde pra conseguir conciliar tudo. Mas, estou acostumada, sempre trabalhei sem horário de almoço, sem final de semana ou férias. Fico infeliz se não estou ajudando, é mais forte do que eu.
En(Cena) – Amigos e familiares, qual a opinião sobre sua dedicação com o Projeto?
Neyla Rodrigues – A minha filha entende bem, ela sabe que na verdade é a vontade de Deus e então ela me apoia. O resto da família tem medo porque envolve estupro, pedofilia, drogas, criminosos.
En(Cena) – O contato com usuários de drogas, você teme pela sua segurança?
Neyla Rodrigues – Não temo pelo contato com os usuários em si, eles me veem como a última esperança deles, eles temem por mim mais do que eu mesma, eles se preocupam comigo. Mas, já recebi muitas ameaças. Trabalhar com projetos voluntários requer cuidados e critérios de segurança pessoal. Já estive em situações que me ofereceram riscos de morte. Eu enfrento problemas com pedofilia, pessoas usuárias de crack, tento tirar essas pessoas dessa vida e já aconteceu de eu ser ameaçada.
Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação
En(Cena) – No seu pensamento, qual seria a formula para melhorar a qualidade de vida dos menos favorecidos?
Neyla Rodrigues – Eu costumo dizer que se você puder ajudar uma criança hoje você não terá que restaurar um adulto amanhã. Tudo começa na infância, ensinar a criança a seguir princípios, ser correta, ensinar a sonhar, porque se você pode sonhar você pode realizar. A maioria cresce sem a companhia das mães, os pais têm que trabalhar e não têm tempo pra educar, esses pais, estão sempre preocupados com a fome, então, não sabem nem o que ensinar. Eles precisam conhecer Deus, saber que são amados e que podem ser quem eles quiserem ser. Trabalho! Trabalho bem remunerado melhora a vida das pessoas. Sempre que damos presentes pra crianças pobres acreditamos que pode ser qualquer coisa. Mas, quando o presente é para pessoas de classe rica, sempre procuramos o melhor, sendo que, os ricos já tem contato com o que é de melhor, devemos mudar essa forma de pensar na sociedade.
En(Cena) – Conta com parcerias e ajuda de classes sociais e do governo?
Neyla Rodrigues – Não tenho ajuda do governo, algumas pessoas tem nos ajudado com doações de roupas, alimentos e brinquedos. Pouquíssimas pessoas ajudam financeiramente. Temos muitas crianças com problemas graves de saúde, que precisam viajar para tratamento, uma delas morreu semana passada de leucemia, pois, necessitava de atendimento em Goiânia. As pessoas, em certos casos, querem doar amor, mas, entendemos que, amor sem obras, não chega a solucionar o problema. Enfim, casos como esses dependem de investimentos, até mesmo para as internações dos usuários de drogas. Enfim, recebo mais ajuda das pessoas que quase nada tem e que moram em Taquari, do que pessoas que possuem recursos para investimentos voluntários.
Neyla Rodrigues em atividade do Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação
En(Cena) – O que pretende fazer para o Natal dessas famílias nesse final de ano?
Neyla Rodrigues – Vou fazer só para uma parte deles, cerca de 1.000 crianças. São mais de 4.000. Haverá entrega de brinquedos e lanches, pretendo conseguir chocotone, pois eles comentam muito e sonham com isso, mas acho que esse ano não vai dar.
En(Cena) – Como você resumiria sua historia de vida?
Neyla Rodrigues – É parecida com a deles! Claro, em contextos diferentes. Eu já me vi assim desamparada, sem ter com quem contar, e eu sou uma pessoa dedicada e perfeccionista, não tenho preguiça de trabalhar, mas qualquer pessoa pode passar por momentos assim onde tudo pode dar errado. Deus sempre realizou muitos milagres na minha vida, e por incrível que pareça Ele (Deus), sempre usou desconhecidos para me oferecer oportunidades, e eu aproveitei todas elas. Eu tento repetir isso com as pessoas que estão em contato comigo, e funciona, já são vários os casos “perdidos” que agora são casos de sucesso.
Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação
Tenho testemunho de muitas meninas fazendo faculdade, ou trabalhando e ajudando os pais. Eu não suporto ver ninguém sofrendo, porque eu já sofri demais, ver a alegria das pessoas me faz feliz. Saber que as crianças estão seguras, alimentadas, brincando, que não será um futuro marginal.. Ver usuários de drogas restabelecidos, trabalhando, me ajudando a ensinar contra o uso de drogas… isso me realiza!
“O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato;
é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção.
Representa uma atitude de ocupação, preocupação,
de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.”
Leonardo Boff
Como o homem produz sua existência na contemporaneidade, tendo consciência de que ele também se produz nessa relação?
Questões como Humanidade, Cuidado, Responsabilidade Ambiental, Fraternidade e Vida, foram conceitos centrais e que nortearam a fala do Teólogo Leonardo Boff na última quarta-feira (04/06/2014), no Centro Universitário Integrado de Ciência, Cultura e Arte (CUICA), na abertura da Semana do Meio Ambiente de Palmas, promovido pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas/TO.
Na conferência intitulada “Meio Ambiente e Cidade – AS 4 Ecologias: Ambiental, Política e Social, Mental e Integral” Boff trouxe um panorama histórico e cultural do olhar do homem para o meio ambiente, enquanto tecia críticas ao modelo de organização social. O mundo no qual vivemos é fruto da ação desse homem concebido pós-capitalismo, e que, frente às revoluções cientificas e tecnológicas, iniciadas no século XVIII, e que ainda se propagam o homem começa a repensar sua inserção posição dicotômica: (ser)humano versus (uni)verso, e assim, produz novos saberes.
Em rápida analise, podemos entender que as transformações históricas e culturais acontecem em nível micro e macro, sempre alinhavada pelo modo como homem se relaciona com o meio ambiente (ecossistema) – de modo direto e indireto – e com seus iguais, aqui abrimos aspas para um tópico importante: a qualidade de nossas relações interpessoais, que também englobam: a promoção/construção de saúde e os processos de adoecimento e organização do modo de trabalho. Nesse aspecto, considero que a psicologia, assim como várias áreas das ciências da saúde e humanas, parece exercer um papel mais efetivo. É nesse cenário que ela encontra elementos para uma intervenção significativa.
Ainda falando de psicologia, acredito que o contexto central é – e parece-me que sempre será – a qualidade das/nas relações humanas, ou seja, o modo de implicação do ser (homem) nessas relações, num cenário de (co)responsabilidades e tomada de consciência/decisão. O resultado de toda e qualquer relação é, portanto, o homem, na produção de sua humanidade. Essa construção do ser não acontece isolada. Mas em nível grupal (relacional), intra e interinstitucional.
Na conjuntura social vigente, vê-se a necessidade de uma transformação no modelo institucional, cientifico, legislativo, cultural, religioso etc. A palavra chave é o Cuidado, não apenas do homem para com o homem, ou do homem para com o meio, mas sim, do homem com o todo, e como parte total desse todo.
É destaque um crescente movimento contrário ao regime social vigente, e que busca acordar nos Seres, habilidades que foram se perdendo, nesse modelo artificial e mecanicista de produção de vida que está posto, e que pauta-se em interesses particulares, muitas vezes de cunho egoísta.
Ao final da conferencia, passei a ver com mais clareza, que os seres são, todavia, resultado direto da qualidade de suas relações (diretas e indiretas), o que implica diretamente na necessidade de uma produção de cuidado. O processo de adoecimento instaura-se numa conjuntura: intra/inter/sujeitos, com o meio e, de volta, consigo mesmo. E não há como se isentar de nossa responsabilidade com o meio ambiente, que é o todo, sistematicamente interligado.
Compartilhe este conteúdo:
Minha experiência em trabalhos para Inclusão Digital de Idosos
“A inclusão propõe uma ruptura dos paradigmas que já existem, a construção de um novo trabalho, um novo lazer, uma nova escola.” (Cláudia Werneck)
O projeto de extensão “Informática e Sociedade” dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA atua no processo de “inclusão digital”, tendo como base a integração do aluno com a comunidade, de forma a criar uma contexto que propicie ações de responsabilidade social. Nele, os futuros profissionais têm a oportunidade de orientar e ensinar, tendo contato direto com uma diversidade de pessoas.
Chamo-me Leandro Andrade e tive esta oportunidade. Junto às minhas práticas de estudos no meu curso de Sistemas de Informação, dediquei parte do meu tempo para uma nova experiência: a inclusão digital para idosos.
Com o início dos trabalhos, comecei a perceber o real sentido de ensinar e aprender e os diferentes impactos que o conhecimento causa na sociedade. Quando você interage com outro ser, visando retirar suas dúvidas sobre um determinado assunto, você se conhece. Neste momento você trabalha e descobre o que sabe e o que domina. Dependendo do caso, conhece mais os seus limites.
Nos trabalhos de ensino para idosos, o coração enche de emoção. Em muitos casos, trata-se de alguém que não teve a oportunidade de aprender determinados conteúdos mais cedo, seja por questões econômicas ou por falta de apoio ou incentivo de amigos e familiares. O instrutor é quem passa a fazer parte da vida daquela pessoa, exponencializando o desejo (já latente) da busca por novos conhecimentos. Fica notável uma boa mudança na autoestima, um sorriso que nasce.
“Sempre tive vontade de aprender, mas nunca tiveram paciência pra me ensinar. Agora eu posso usar um computador só, já sei usar. Já vou poder fazer algum trabalho meu, na minha responsabilidade, agora eu mesma faço. Está abrindo a minha mente. Dá força, dá muita força pra gente, quero aprender muito mais ainda. Estou muito feliz.” Diz Maria Vicentina, de 73 anos.
O ensino da informática contribui para um maior acesso à informação e para uma maior autonomia. Aprendi que há várias formas de compartilhar esse conhecimento e que, muitas vezes, as limitações que observei nesse processo foram minhas.
O comprometimento e a seriedade do trabalho do instrutor com os alunos contribuem para o processo de formação. Isto gera confiança, esperança, interesse e tranquilidade por parte deles. Com o passar das fases, percebe-se que a prática do aluno com o computador, incentiva e gera estímulos que viabilizam o aperfeiçoamento de aspectos cognitivos, como atenção, percepção e coordenação motora.
O instrutor ganha um desafio novo, pois cada aluno forma um universo diferenciado, assim é preciso que as metodologias de ensino também estejam em constante movimento, sejam flexíveis. Se já não há mais lugar para o trabalho executado sempre da mesma forma, assim como mostra a crítica de Charles Chaplin em Tempos Modernos, então precisamos rever inclusive o processo de ensino e aprendizagem.
Hoje consigo entender melhor as barreiras e os desafios para o processo de aprendizagem. Sei que sempre é possível compartilhar o conhecimento, apesar das dificuldades da cada um. Entendo que podemos buscar novas formas de ensinar, há a possibilidade de encontrar métodos mais adequados a determinadas situações, conforme o ritmo de cada aluno.
Traz satisfação ver a alegria daquele que aprendeu algo novo. É muito bom saber que valeu a pena aprender. Não existe uma palavra que define tudo isto. É uma lição de vida, foi uma troca de experiência compensadora. Eles aprenderam comigo e eu também aprendi muito com eles.
“O conhecimento torna a alma jovem.” – Leonardo da Vinci
Agradecimentos:
Extensão do CEULP/ULBRA
Cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA
Programa de Extensão “Informática e Sociedade”
Centro de Convivência dos Idosos
Compartilhe este conteúdo:
Um ano de Psicologia Social Comunitária: comemorações e reflexões
19 de agosto de 2013 Hareli Fernanda Garcia Cecchin
Relato
Compartilhe este conteúdo:
Ao completar um ano de atuação como psicóloga do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) neste mês de agosto, reflito sobre o trabalho do psicólogo nas políticas públicas, em especial, no SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Meu ingresso na política de Assistência Social não foi uma mera coincidência, visto que os psicólogos estão atuando cada vez mais em políticas públicas (BOTARELLI, 2008).
Embora minha formação tenha buscado ser o mais generalista possível, ela não me ofereceu uma boa compreensão sobre a atuação do psicólogo no SUAS. Isto fez com que eu tivesse que absorver muita informação em um curto período de tempo, já que diversas demandas chegavam a todo tempo, e havia a necessidade de dar uma resposta a elas. As publicações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e as Referências Técnicas do Conselho Federal de Psicologia (CFP) foram minhas principais fontes de consulta no início. No entanto, posteriormente percebi que, ainda que elas trouxessem diversas orientações, não explicitavam com clareza uma metodologia de trabalho.
Deste modo, recorri a colegas de profissão, grupos de estudo, e a um congresso de Psicologia. Percebi que existem diversas Psicologias Sociais Comunitárias. Algumas mais ligadas ao trabalho com famílias e grupos. E outras mais voltadas a comunidade e ao desenvolvimento social. Ainda não sei por qual delas estou enveredando.
Para além das questões cognitivas, existem ainda as emoções e a saúde mental no trabalho, pois um profissional é um ser global. No início, a estranheza foi grande com o público, bem diferente daquele com quem eu estava acostumada a conviver nos meus diferentes espaços sociais. Uma classe social bem diferente da minha, com sua própria ideologia, cultura, e modo de existência. Foi um trabalho árduo de me despir de meus conceitos e pré-conceitos, para, numa atitude dialógica, construir junto, sem uma atitude de superioridade ou pretensão.
Descobri, entretanto, que outros também tinham chegado a essa conclusão e estavam buscando soluções para elas. Costa (1989), Boltanski (1989) e outros autores, falam sobre as peculiaridades da clientela atendida nas unidades governamentais. A maioria da população que busca o atendimento na rede pública é constituída por pessoas inseridas num universo sócio-cultural diferente daquele vivido por quem os atende. O que implica que, se dando conta disso, o profissional adote uma postura de valorização da diversidade.
Hoje, soprando as velinhas do bolo, percebo que muito ainda há por fazer. Encontrar um ponto de contato entre o que exige o MDS e as premissas da Psicologia Comunitária, de forma coletiva. A construção do conhecimento não pode ser solitária. Busco espaços de trocas de experiências e participações múltiplas, para, junto com os demais psicólogos do estado, que também buscam saber o que fazer, construir uma Psicologia Social Comunitária. Entre as tantas que já existem, talvez uma com tempero tocantinense.
Referências:
BOTARELLI, A. (2008). O psicólogo nas políticas de proteção social:uma análise dos sentidos e da práxis. Tese de Doutorado, Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de, São Paulo, São Paulo.
BOLTANSKY,L., 1989. As Classes Sociais e o Corpo. 3.ed., Rio de Janeiro: Graal.
COSTA,J.F., 1989. Psicanálise e Contexto Cultural. Imaginário Psicanalítico,Grupos e Psicoterapias. 2. ed., Rio de Janeiro: Campus.
Carlos Rivoredo, no Seminário Norte da Política Nacional de Humanização (PNH), ocorrido em Manaus, nos dias 20 e 21 de março, dá uma chamada a todos nós no momento da abertura do evento. Pede para nos indignarmos com os desvios de verba pública e diz que toda a rede de hospitais privados foi financiada pelo Fundo da Assistência Social da época da ditadura. Afeto marcado, emoção expressa e um contágio silencioso. As pessoas ficaram caladas, bateram palmas e passaram a outro assunto como se uma brisa apenas tivesse passado antes de alguém fechar a janela. Aquele homem num repente foi ele todo, humano, pois lembrava de fatos, por todos os seus sentidos, com um foco atento ao que falava, afetado, indignado com a fraqueza humana, com nossa passividade.
A chamada de Carlos Rivoredo é para usarmos nossa atenção e nossa memória ao que fazemos em busca de uma vida coletiva sem vistas grossas à corrupção, aos fascismos que se encontram na relação entre governo e população. A comunicação deve ser ampliada, gerando clínicas ampliadas. A comunicação deve gerar protagonismo, movimentar nossa atenção para pontos em comum, que, se mudados, se geridos de outras maneiras, a vida pode ficar mais fácil, mais produtiva, mais criativa, menos sofrida, menos queixosa.
É pela comunicação que fazemos nossas próprias revoluções, o humanizar inicia-se por ela, com ela e para ela. O que queremos comunicar quando falamos de um exercício político e ético? O que se quer comunicar quando se capilariza a humanização como política nacional? A PNH visa exercitar a atuação política em torno das redes de assistência, começando pela rede de saúde.
Exercitar a atuação política na e da rede de saúde significa transformar uma prática despolitizada numa politizada, ou seja, transformar uma prática reprodutora em prática criadora, descartável em cultivada, sem sentido em projetada, corrupta em gerida.
A PNH é uma política de saúde de educação, de cultura, de gestão, de trabalho, de questões e não de respostas. Questiona a pólis, na pólis, com a pólis, mas não para a pólis. Sua ação é capilar. As políticas de respostas prescrevem, a PNH processa, compõe, agencia. Busca agenciar os afetos e a formação integral das pessoas, o desenvolvimento do fazer do humano ligado a uma ética coletiva, que cultiva filhos, cultiva laços, cultiva nossas percepções, nossos talentos, nossas potencialidades, nosso tempo, nosso desenvolvimento, não em números de PIB, mas em territórios de existências solidárias, o que não é o mesmo que assistencialistas, e ético-praticantes, o que não é o mesmo que caretas.
E o Fundo de Assistência Social continua a financiar hospitais privados. Se comunicação é o que fundamenta a humanização, nosso silêncio é um analisador. Talvez por que ainda buscamos humanizar os outros, e não a nós mesmos. Processo de trabalho nenhum é condição suficiente para manter tantos desencontros nas práticas de cuidado e da formação ao estilo ainda, eminentemente, bancário. Os processos de trabalho são raízes podadas de um tronco que mais cedo ou mais tarde vai cair. Se as raízes não crescerem, a árvore vai cair; se não desenvolvermos nossos processos de trabalho, não desenvolveremos nossa humanidade. Não me refiro aqui ao trabalho assalariado, mas ao trabalho como constituinte da humanização. O trabalho que cria culturas, ao invés de descartáveis, junto à educação; que trabalha os sentidos, a língua, a fala, a escrita, a lógica, o corpo, o sexo, as percepções, a arte e o esporte. Desenvolver seres humanos, na concepção que sustenta esse texto, não significa direcionar o homem para um rumo evolutivo-progressivo…desenvolver não é direcionar; o homem não precisa de direção, ele traça direções. O desenvolvimento deve se dar na apropriação de nossa capacidade criativa, gestora da vida e das coisas. Sem isso, nossa coletividade vai ruir, nossa humanização será a insistência de uma rede que se constitui quase sempre com dificuldades.
A formação da rede de serviços públicos não pode se sustentar na diferenciação entre usuário, gestor e técnicos de serviços. Não importa essa diferenciação, quando a questão é a gestão do coletivo. Isso não quer dizer que as funções-trabalho necessariamente devem ser banidas, mas a forma de trabalhar deve mudar. Os processos de trabalho possuem sua cota de importância nas características de nossa sociabilidade. Portanto, aqueles devem visar essa última. Fazer os Conselhos de saúde funcionar com potência é função de todos, não por que todos devem estar presentes nos conselhos, mas sim pelo fato de ser função de todos contagiar nossas relações com o bem público com transparência, solidariedade e co-gestão.
Carla Bressan (2002) faz uma análise política em seu artigo intitulado “Fundo de Assistência Social” parte integrante dos Anais do Seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”. Seu trabalho retrata a maneira como os equipamentos do controle social funcionam aquém de sua real função que é estratégica na política pública da saúde, no SUS.
O Conselho é propositivo, avaliativo, deliberativo sobre os recursos, mas a execução não está na instância do Conselho. A gestão do Fundo não é do Conselho, mas do órgão público responsável pela assistência. No entanto, a proposta orçamentária deverá ser aprovada pelo Conselho e sua aplicação fica sob acompanhamento e controle do Conselho. Eis aqui um dos pontos centrais: o Conselho precisa discutir e analisar a proposta e o que se percebe é que, normalmente, a proposta orçamentária vem do gestor e muitas vezes, os conselheiros sequer têm elementos para discuti-la. Ou ainda a proposta vem com a referência explícita de que não seja discutida por falta de tempo porque “é perda de tempo discutir”, pois o recurso é muito pouco frente às necessidades. É muito comum acontecer isso, o gestor encaminhar para que o Conselho apenas aprove. O que quero chamar a atenção é que nossa função não está em meramente aprovar, pois existe uma responsabilidade nessa atitude – não é apenas uma formalidade eque muitas vezes, acabamos aprovando questões que nem sempre receberam o tratamento de debate e análise que demandariam. Isso não quer dizer que a proposta que vem do gestor seja ruim, mas a referência está na operacionalização do Plano e suas prioridades. Se a proposta é boa, não se tem que ter medo de que seja discutida.” (BRESSAN, 2012, p.16)
O sítio www.portaltransparência.gov.br/# apresenta as despesas e as receitas geradas nos Fundos Municipais de Saúde. Essas despesas e receitas precisam ser geridas pelos Conselhos. Os participantes do Conselho são os que diretamente podem ligar o orçamento municipal a um planejamento amplo. Como é planejado o uso desses recursos? Eu não sei.
Mas vejamos um exemplo de como a verba pública é administrada. O sítio da “Conexão Tocantins” mostra um projeto de lei que visa instituir auxílio-moradia para procuradores e promotores do Ministério Público Estadual. Os promotores e os procuradores recebem em torno de 25 mil reais como salário e pedem, das verbas públicas, mais 2 mil reais como auxílio-moradia. Para quê? Gostaria realmente de saber! O custo desse pequeno adicional (maior do que o salário bruto da maioria da população), por ano, para os 12 procuradores e para os 100 promotores, girará em torno de 2.900.000 reais (dois milhões e novecentos mil reais) A soma dos salários dessas 112 pessoas, juntamente com a soma do possível auxílio, resulta em cerca de 32 milhões de reais o que corresponde a um décimo dos recursos oriundos do governo federal para o município de Palmas que girou em torno de 290 milhões de reais. Isso quer dizer que 112 pessoas que trabalham para e no Estado recebem, como salário, um décimo do que o município recebe para criar políticas públicas para em torno de 220 mil pessoas, se pensarmos apenas no município de Palmas, sem contar as demais pessoas que, mesmo que parcamente, beneficiam-se com o retorno federal ao Estado do Tocantins. Não consigo compreender o exercício ético que sustenta uma realidade dessa. Vejamos a justificativa apresentada na reportagem do “Conexão Tocantins”:
“O projeto é apresentado após polêmica causada com a decisão dos deputados de também receberem auxílio-moradia, mesmo maioria deles tendo residência própria na capital. O valor que os parlamentares vão receber é de R$ 3.429,50.”
Ou seja, o argumento gira em torno de uma birra, como de crianças diante de um saco de pirulitos: o outro tem, quero ter também. Esse é o argumento apresentado na reportagem. Desconheço o real argumento, mas não creio ser diferente desse. A ética que sustenta uma realidade dessa é iníqua, não poupa vidas para se manter desigual assim. O bolsa-família gira em torno de, no máximo, 306 reais, por família. Analisemos bem, 306 reais por família, para todas as despesas, contra 2000 reais para deputados que já possuem casas e recursos para terem mais casas. Palmas possui em torno de 6500 famílias contempladas pelo programa bolsa família, ou seja, Palmas recebe em torno de 1 milhão e novecentos mil reais, por mês, para melhorar as condições de vida de mais ou menos 30 mil pessoas que moram em Palmas. Enquanto o salário de 112 pessoas contabilizam 32 milhões de reais por ano, o bolsa família atinge, com 24 milhões, 30 mil pessoas ao ano. Existe uma massa imensa de trabalhadores das universidades e dos serviços públicos, nós todos, eu inclusive, que sabem disso e se organizam apenas por sindicatos burocráticos e datas base que mais parecem um jogo histérico do qualquer outra coisa. Santa psicose, dai-nos forças contra as perversões, contra as fantasias e contra as depressões.
O ser humano é um manancial de vida e se deprime pelo fato de não saber onde deve atuar para injetar vida nessa pólis com marasmo, na qual sempre estamos em dívida. Devemos sempre…devemos dinheiro, devemos técnica, devemos conhecimento, devemos, devemos, devemos. Devemos fazer mais, devemos votar, devemos trabalhar, devemos deveres, devemos dever. Quando se deve, sempre se está num tempo que não o livre… a vida gira em torno da dívida. Quem deve, paga…quem paga trabalha à força.
Assim financiamos o Fundo da Assistência Social, mas não o gerimos. Estamos atarefados demais para conseguirmos pagar pelo o que fazemos. E quando fazemos nos sentimos, constantemente, em dívida. Trabalhamos mais e o ciclo se fecha assim, numa escrita sem fim.
Referência:
BRESSAN, Carla. Fundo de Assistência Social. In: Fundos Públicos e Políticas Sociais.MAGALHÃES JÚNIOR, José César; TEIXEIRA, Ana Claudia C. (Org.) Fundos Públicos. — São Paulo: Instituto, Pólis, 2004.. (Publicações Pólis, 45) Anais do Seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”; São Paulo, Agosto de 2002.
Compartilhe este conteúdo:
A Disciplina e o Controle na atualidade
1 de dezembro de 2011 Jonatha Rospide Nunes
Insight
Compartilhe este conteúdo:
Este texto tem como objetivo fazer um sobrevôo nos conceitos de Disciplina em Michel Foucault e Controle em Gilles Deleuze. Além de realizar uma articulação destes Dispositivos com o Processo de Produção de Subjetividade na Atualidade.
Os dispositivos disciplinares e de controle têm um papel fundamental na produção e reprodução da paisagem social na atualidade, sendo eles mesmos produção e produto. Por exemplo, geralmente nascemos no seio de uma família que, em alguns aspectos, nos moldará, assim como muitas outras instituições nos moldarão ao longo da existência. Entretanto, a família é determinada pelo tecido social no qual ela emerge; determinada pela composição de forças e pelas articulações entre os diferentes movimentos existentes no campo social. Pensemos, no século XVIII seria possível uma família composta por dois homens e uma criança adotada (sendo ou não através de vias legais)? Claro que não, pois o contexto social da época não possibilitava o surgimento deste tipo de configuração familiar.
Ao longo da vida passamos por dispositivos disciplinares, fechados e formatadores; estamos imersos em dispositivos de controle, abertos e moduladores. Nos dispositivos fechados, o poder de afetação se exerce, segundo Deleuze (1988):
[…] pela pura função de impor uma tarefa ou um comportamento quaisquer a uma multiplicidade qualquer de indivíduos, sob a única condição de que a multiplicidade seja pouco numerosa e o espaço limitado, pouco extenso. (p. 80).
Exemplo de tais dispositivos são creches, escolas, fábricas (empresas), quartéis, hospitais, asilos, presídios, universidades. Todos produzindo, a partir da disciplina, corpos“economicamente úteis e politicamente dóceis” (FOUCAULT, 2004). Passamos da família para a creche/maternal, desta para a escola regular, adiante para faculdade, trabalho… Cada uma destas instituições com sua lógica específica, mas todas operando através de uma anatomopolítica [1].
Ao mesmo tempo em que passamos por esta “via sacra”, temos os dispositivos de controle que, ao invés de moldes procedem por modulações; novas relações familiares, novas relações de amizade, de trabalho, novas percepções, novas pedagogias. Todas estas modulações se atualizando constantemente a partir dos movimentos delineados pela Lógica do Mundo Global. Nestes dispositivos, a função do poder seria, segundo Deleuze (1988): “[…] gerir e controlar a vida numa multiplicidade qualquer, desde que a multiplicidade seja numerosa (população), e o espaço extenso ou aberto” (p. 80).
A ciência, os diversos campos do saber, os meios de comunicação social, o marketing e os organismos internacionais são exemplos desses dispositivos. Todos produzindo modulações que são assimiladas e colocadas em prática. Assim sendo, podemos dizer que as lógicas dos dispositivos disciplinares são diluídas no campo social e intensificadas, continuamente, pelas modulações dos dispositivos de controle. No Mundo Global, onde a comunicação é instantânea em qualquer parte do planeta, cada vez mais a ciência (humana e exata), juntamente com estratégias de marketing e a atual conformação político-econômica do mundo, constituem as formas de ser e de viver hegemônicas na atualidade.
É como se os muros das instituições se tornassem permeáveis e as lógicas que anteriormente estavam restritas aos espaços fechados agora estivessem generalizadas no campo social. Vemos cada vez mais o atravessamento de lógicas diversas na mesma instituição. Antigamente os discursos que circulavam na instituição escolar diziam respeito somente ao registro das políticas públicas na área da educação; estando totalmente fechado a outros registros como, por exemplo, a justiça, a assistência social, os direitos humanos, etc. Atualmente, a escola, assim como outras instituições, está sendo atravessada por discursos de registros diversos, sendo modulada pelos mesmos. Um exemplo disso seriam as práticas [2] de criminalização (falta de moral e/ou educação), de medicalização (falta de saúde e/ou sanidade), judicialização (falta de recursos para gerir conflitos e/ou educação) e pedagogização (falta de educação e/ou irresponsabilidade), que acontecem nas mais diversas instituições (escola, hospital, empresa, justiça…).
A partir do momento em que os processos de constituição de modos de ser e estar são produzidos no campo social, a modulação contínua deste produz – ao mesmo tempo – uma modulação nos modos de ser e estar. A velocidade dessa modulação e a fugacidade dos territórios consumidos geram sofrimento através da fragilidade da consistência subjetiva que estes elementos proporcionam. Quanto mais fragilidade mais sofrimento e maior vulnerabilidade à captura pelas centrais de distribuição de sentido e de valor [3] do sistema (ROLNIK 1989).
Percebemos as lógicas disciplinares e de controle, disseminadas pelos seus respectivos dispositivos, como coexistentes na atualidade. Quando afirmamos que os muros das instituições se tornaram permeáveis, estávamos indicando que as lógicas disciplinares ainda existem, mas que são sistematicamente moduladas pelas lógicas de controle. Isto tem como efeitos, além da fragilidade subjetiva citada, a declarada crise permanente das instituições. Esta “dita” crise justifica a atualização sistemática das lógicas disciplinares pelos dispositivos de controle.
Na medida em que as instituições estão em “crise permanente” são criadas uma série de modulações para dar conta desta crise (DELEUZE, 1992, p. 221). Há reformas constantes no papel da escola, da família, das universidades, do sistema judiciário, etc. Se proliferam cursos de capacitação para preparar professores, pais, operadores do direito, conselheiros tutelares e outros. Nestas capacitações entra em cena a interferência de lógicas diversas na mesma instituição, resultado da diluição das lógicas disciplinares e da permeabilidade dos muros das instituições. O sistema judiciário cria escola de pais, a escola vira palco para a implementação da metodologia de resolução de conflitos chamada “justiça restaurativa” , e assim por diante.
REFERÊNCIAS:
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro, Petrópolis, Vozes, 2004.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
[1] Termo utilizado por Foucault para se referir ao exercício do poder no corpo humano, constituindo uma política específica, caracterizada pela disciplina (FOUCAULT, 2004)
[2] Estas são práticas de controle da vida, uma vez que são produzidas quando se supõe que “falta” algo para que as pessoas consigam ter as rédeas de sua existência, restando somente tutela e controle por parte do Estado.
[3] Rolnik utiliza este termo para se referir à mídia em geral como forma de captura, através da modulação contínua nas formas de ser e estar no mundo.
Nota: Texto extraido da dissertação de Mestrado intitulada Produção de Práticas e Projetos Sociais de Jonatha Rospide Nunes.