Por Evandro Lopes, especialista em Marketing, Neurociência e CEO da SLComm
Nos encontramos em um paradoxo fascinante: nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, tão carentes de conexão. A tecnologia nos permite acessar qualquer informação em questão de segundos, mas, ironicamente, é justamente essa avalanche de dados que nos leva a buscar refúgio na simplicidade do passado. Um estudo da Cigna Health revelou que 61% dos adultos nos EUA relataram sentir solidão frequente. O uso excessivo das redes sociais foi identificado como um dos principais fatores. Além disso, o retorno a leitura de clássicos, o resgate das relações interpessoais e a necessidade de sentido em um mundo digitalizado mostram que, diante da aceleração do tempo, olhamos para trás em busca de equilíbrio.
A redescoberta de livros como ‘O Príncipe’, de Maquiavel, ‘Mais Esperto que o Diabo’, de Napoleon Hill e ‘Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas’, de Dale Carnegie, não é coincidência. Essas obras fornecem não apenas conhecimento atemporal, mas respostas para um mundo que se reinventa constantemente. De acordo com um relatório da WordsRated, a venda de livros de não ficção voltados para desenvolvimento pessoal e liderança cresceu 11% entre 2020 e 2023, e segundo a Amazon Books Trends Report, houve um crescimento de 34% na busca por livros de filosofia estoica, impulsionado pela necessidade de lidar com incertezas modernas.
O aumento da ansiedade e da solidão em meio à hiperconectividade demonstra que os seres humanos não querem apenas se comunicar, mas se conectar de verdade. Estudos apontam que relações sociais significativas são determinantes para o bem-estar e a longevidade, reforçando a importância do contato humano genuíno. O estudo de Harvard sobre felicidade, que acompanha participantes há mais de 80 anos, concluiu que relações sociais fortes são o maior preditor de felicidade e longevidade, mais do que dinheiro ou sucesso profissional.
No ambiente corporativo, líderes como Satya Nadella, da Microsoft, e Ed Catmull, da Pixar, têm mostrado que o sucesso empresarial está diretamente ligado à empatia e ao estímulo de conexões reais entre colaboradores. Enquanto isso, a cultura participativa e a inteligência coletiva transformam o mundo digital, mas também apresentam desafios, como a superficialidade da informação e a criação de bolhas de pensamento. O relatório da University of Southern California de 2023 mostrou que 66% dos usuários de redes sociais são expostos majoritariamente a conteúdos alinhados com suas opiniões, limitando o pensamento crítico e criando polarização.
Diante desse cenário, precisamos nos perguntar: estamos realmente evoluindo ou apenas nos adaptando ao caos? O avanço tecnológico pode e deve ser aliado das relações humanas, mas isso exige um esforço consciente para equilibrar a vida digital e a real. Resgatar o que há de mais essencial na humanidade – a troca significativa, a empatia e o aprendizado profundo – pode ser o caminho para um futuro onde a tecnologia não substitui, mas potencializa nossa essência.
A série animada “Rick and Morty” é conhecida por sua capacidade de abordar uma vasta gama de temas, muitas vezes com uma abordagem filosófica e crítica. Foi criada por Justin Roiland e Dan Harmon, dois criadores com trajetórias distintas, mas complementares, que se uniram para desenvolver uma das séries de animação mais influentes e populares dos últimos tempos. A série combina a estrutura da ficção científica clássica com um humor sórdido, explorando questões profundas sobre a existência, a moralidade e a condição humana. Tudo isso, envolta em enredos aparentemente absurdos e hilários.
Uma das principais características da série é a exploração do conceito de multiverso, em que inúmeras versões de realidades alternativas coexistem. Isso permite à série explorar questões sobre identidade, livre-arbítrio e o impacto de nossas escolhas. Em vários episódios, Rick e Morty encontram versões alternativas de si mesmos e lidam com as consequências de suas ações em diferentes realidades. A série frequentemente satiriza aspectos da sociedade moderna, incluindo consumismo, religião, política e o papel da ciência. Rick, com seu cinismo extremo, frequentemente faz críticas contundentes sobre o sentido da vida, questionando valores morais e instituições sociais. Essa abordagem filosófica lembra o niilismo, Rick demonstra uma visão de mundo onde nada tem importância intrínseca, o que contrasta com a tentativa de Morty de encontrar significado e propósito.
No centro de Rick and Morty está a dinâmica disfuncional da família Smith. As interações entre Rick, Morty, Summer (a irmã de Morty), Beth (a mãe) e Jerry (o pai) são uma fonte constante de conflito e drama. A série usa essas relações para explorar abandono, auto-estima, fracasso, e o impacto de traumas geracionais. Apesar do humor sombrio, a série frequentemente revela momentos de vulnerabilidade e afeição entre os personagens, no qual surpreende as expectativas do público sobre o que significa ser uma família.
A série também mergulha em questões de psicologia e existencialismo. Rick, em particular, é um personagem complexo que luta com depressão, alcoolismo e uma visão niilista da vida. Ele é uma representação do “herói trágico” moderno, cuja genialidade é também sua maldição. A série aborda como o intelecto superior: “O Criador”. Este fato o isola dos outros e o deixa preso em um ciclo de autodestruição e vazio existencial.
Embora trate de temas significantemente pesados, Rick and Morty é, acima de tudo, uma comédia. O humor da série é frequentemente absurdo, misturando elementos de cultura pop, ciência e paródias de outros gêneros. A série não tem medo de ser provocativa ou bizarra, utilizando desde piadas simples até referências intelectuais complexas, muitas vezes desafiando o espectador a refletir sobre o significado por trás da comédia.
O que indaga muitas vezes as pessoas se identificarem com essa série, com isso é perceptível que são personagens multifacetados. Dito isso, Rick é um gênio alcoólatra com uma visão cínica da vida, enquanto Morty é um adolescente inseguro lutando para encontrar seu lugar no mundo. Essa complexidade permite que os espectadores se vejam em diferentes aspectos de suas personalidades e lutas.
Apesar do cenário e do humor, a série explora temas universais como o propósito da vida, a busca por significado e a complexidade das relações familiares. Essas questões são abordadas de uma forma que, embora muitas vezes exagerada, compartilha com as experiências e sentimentos do público. Rick and Morty, frequentemente faz comentários sobre a sociedade e a cultura de forma crítica e irônica. Essa crítica, muitas vezes disfarçada de humor, pode fazer os espectadores refletirem sobre suas próprias vidas e o mundo ao seu redor.
Rick: Entre Amor e Controle
No episódio “Auto Erotic Assimilation” de Rick and Morty, a relação entre Rick Sanchez e Unity ilustra complexas dinâmicas de controle e poder dentro dos relacionamentos. Unity, uma entidade coletiva que inicialmente parece ser a solução perfeita para as necessidades emocionais e intelectuais de Rick, acaba se tornando uma metáfora poderosa para explorar o controle narcisista e os impactos sobre a identidade pessoal.
Rick, como uma figura narcisista, utiliza seu relacionamento com Unity para atender suas próprias necessidades de validação e controle. Ele manipula Unity para moldar um mundo ao seu redor que se ajuste às suas próprias expectativas e desejos. Essa dinâmica é analisada por Daniel Martins de Barros em seu livro “O Lado Bom do Lado Ruim”, onde ele explora como situações difíceis podem revelar aspectos de crescimento pessoal e autodeterminação. Barros destaca que “a capacidade de manter a autonomia, mesmo em cenários desafiadores, é essencial para o bem-estar emocional” (Barros, 2020, p.127). Essa afirmação ecoa a luta de Unity ao tentar manter sua própria identidade, enquanto Rick tenta controlá-la.
Unity, por outro lado, enfrenta um dilema emocional significativo. Inicialmente, a assimilação de outras consciências e a adaptação ao desejo de Rick parecem oferecer uma forma de felicidade e integração. No entanto, à medida que Unity começa a recuperar sua própria identidade e questionar o controle de Rick, ela se depara com um conflito interno sobre manter sua integridade ou se submeter novamente ao controle de Rick. Segundo Barros, “a preservação da identidade em contextos de pressão emocional é fundamental para a saúde mental e para a realização pessoal” (BARROS, 2020, p. 128). A decisão de Unity de se afastar de Rick é um reflexo direto dessa necessidade de preservar sua autonomia e evitar a manipulação emocional.
Fonte: br.pinterest.com
Esse episódio demonstra como o controle narcisista pode corromper a autenticidade e a saúde emocional dos relacionamentos, ilustrando a importância de manter a integridade pessoal e a autonomia, mesmo em face de uma conexão emocional intensa. A luta de Unity para manter sua identidade é um exemplo claro da necessidade de proteger a própria autonomia em qualquer relação que envolva controle e manipulação.
O episódio “Auto Erotic Assimilation” também ilustra o conceito de ciclo de abuso, conforme discutido pela psiquiatra brasileira Ana Beatriz Barbosa Silva em seu livro “Mentes Perigosas: O Psicopata Mora ao Lado”. Silva descreve como, em muitos relacionamentos abusivos, existe um padrão recorrente de tensão crescente, seguido por um incidente de abuso, e posteriormente uma fase de reconciliação ou “lua de mel”, onde o abusador promete mudar ou se arrepende (Silva, 2008).
No episódio, vemos uma variação desse ciclo. A presença de Rick inicialmente “liberta” Unity, levando-a a excessos que desestabilizam o equilíbrio da entidade. Enquanto Unity se entrega a festas e indulgências sob a influência de Rick, ela começa a perceber o impacto negativo que ele exerce sobre sua vida. Silva explica que “o ciclo de abuso é marcado por uma repetição de padrões que reforçam a dependência e a destruição emocional”. Ao perceber isso, Unity decide romper o relacionamento para preservar sua integridade, uma decisão difícil, mas necessária para interromper o ciclo de destruição.
Unity representa a vítima que reconhece o ciclo de abuso e, ao tomar a difícil decisão de sair do relacionamento, preserva sua própria saúde emocional e mental. Como Silva afirma, “o reconhecimento do ciclo é essencial para que a vítima possa tomar as rédeas de sua vida e interromper a sequência de abuso”. Ao decidir deixar Rick, Unity dá um passo crucial em direção à sua autonomia e bem-estar.
Rick Sanchez, o protagonista de Rick and Morty, frequentemente demonstra traços de narcisismo exacerbado. Ele é apresentado como uma pessoa que possui uma confiança inabalável em sua própria inteligência e habilidades, mas que simultaneamente exibe uma profunda falta de consideração pelos sentimentos e necessidades das outras pessoas. Este comportamento é típico de indivíduos com traços narcisistas, que frequentemente acreditam que são superiores aos outros e merecem tratamento especial.
César Souza, em seu livro “Você é o Líder da Sua Vida”, explora como o narcisismo pode influenciar negativamente tanto o próprio indivíduo quanto as pessoas ao seu redor. Souza discute como a busca incessante por validação e superioridade pode levar ao isolamento emocional e a relacionamentos destrutivos, características que são claramente observáveis em Rick. Segundo Souza, “um líder narcisista frequentemente aliena aqueles ao seu redor ao priorizar suas próprias necessidades e desejos acima dos outros” (Souza, 2016). Essa alienação é evidente na vida de Rick, onde sua incapacidade de se conectar emocionalmente com os outros o deixa profundamente isolado, apesar de suas realizações intelectuais.
No episódio “Auto Erotic Assimilation”, vemos como o narcisismo de Rick o leva a interações disfuncionais com Unity, uma entidade coletiva que, inicialmente, atende às suas necessidades emocionais e físicas. Contudo, quando Unity começa a recuperar sua autonomia e questiona o relacionamento, Rick tenta buscar novamente o controle, resultando em um colapso emocional. A tentativa de Rick de dominar Unity espelha o que Souza descreve como “a tendência dos narcisistas de manipular os outros para manter sua autoimagem e controle” (Souza, 2016).
Essa dinâmica ilustra como o narcisismo pode destruir relacionamentos, corroendo tanto o narcisista quanto as pessoas ao seu redor. Rick é incapaz de manter relações saudáveis porque sua necessidade de controle e validação supera sua capacidade de genuinamente se conectar com os outros. A decisão de Unity de deixar Rick, apesar de sua conexão, reflete a importância de preservar a autonomia emocional e evitar relações onde o narcisismo domina.
Unity, como uma entidade que controla mentalmente uma sociedade inteira, levanta questões profundas sobre identidade e livre-arbítrio. Rossandro Klinjey, em seu livro “Help: Me Eduque!”, aborda como a perda de identidade individual pode ser uma consequência de uma dependência excessiva em outra pessoa ou em uma entidade maior. Klinjey discute como, em relações onde há uma fusão excessiva de identidades, a individualidade de cada parceiro tende a se diluir, resultando em uma forma extrema de codependência.
No episódio, Unity representa essa perda de identidade ao assimilar outros seres e suprimir suas individualidades em favor de uma mente coletiva. Klinjey explica que, quando uma pessoa se anula em prol de outra, seja em uma relação amorosa ou em um contexto mais amplo, ela corre o risco de perder sua essência e, com isso, sua capacidade de tomar decisões autônomas (Klinjey, 2017).
Além disso, Unity enfrenta um dilema interno: continuar com Rick e arriscar perder sua estabilidade, ou se separar dele para preservar sua integridade. Esse dilema reflete a luta de muitas pessoas em relacionamentos tóxicos, que, apesar de reconhecerem o impacto negativo da relação, encontram dificuldade em sair dela devido à intensa conexão emocional. Klinjey afirma que a capacidade de preservar a própria identidade dentro de um relacionamento é essencial para a saúde emocional, e que o livre-arbítrio deve ser exercido para evitar que uma pessoa se perca completamente na outra (Klinjey, 2017).
Assim, a decisão de Unity de deixar Rick para manter sua integridade é um passo crucial para romper com a codependência e preservar sua individualidade. Essa narrativa ressoa com as reflexões de Klinjey sobre a importância de manter a autonomia e a identidade pessoal, mesmo dentro de relacionamentos íntimos, onde o equilíbrio entre conexão emocional e independência é fundamental para a saúde psicológica de ambos os parceiros.
As referências a autores brasileiros contemporâneos, como Daniel Martins de Barros, Ana Beatriz Barbosa Silva, César Souza e Rossandro Klinjey, acrescentam uma camada de profundidade à análise desses temas. Barros, explora como o controle emocional e a manipulação podem desestabilizar a saúde psicológica, um conceito que se aplica à relação entre Rick e Unity, Silva discute como o ciclo de abuso emocional pode prender indivíduos em padrões destrutivos, enquanto Souza ilustra os efeitos corrosivos do narcisismo de Rick sobre seus relacionamentos. Klinjey, por sua vez, destaca a importância de manter a autonomia emocional e a identidade pessoal em face de relações que ameaçam a individualidade.
Unity, ao reconhecer o impacto negativo de Rick sobre sua coesão e decidir se afastar, exemplifica a luta por preservação da identidade e exercício do livre-arbítrio em situações de codependência. A decisão de Unity de romper com Rick para manter sua integridade emocional reflete o que Klinjey descreve como essencial para a saúde emocional: a capacidade de preservar a própria identidade e exercer o livre-arbítrio em relacionamentos.
Essa narrativa reforça a mensagem de que, para alcançar relacionamentos saudáveis, é crucial reconhecer e interromper ciclos de abuso, resistir ao narcisismo que desumaniza o outro e preservar a autonomia emocional. Rick and Morty nos lembra que a verdadeira conexão, deve ser construída sobre a base do respeito mútuo e da independência, sem comprometer a integridade de nenhum dos parceiros envolvidos.
No final, o episódio serve como um poderoso lembrete dos altos custos emocionais associados a relacionamentos disfuncionais e da importância de proteger a própria integridade emocional. Rick and Morty demonstra, através da narrativa de Rick e Unity, que a busca por controle e poder nas relações não só prejudica os outros, mas também desintegra quem exerce esse controle. Por isso, preservar a própria identidade e autonomia é essencial para o bem-estar emocional em qualquer relacionamento.
Referências:
BARROS, Daniel Martins.O Lado Bom do Lado Ruim. São Paulo: Planeta do Brasil, 2014.
KLINJEY, Rossandro. Help: Me Eduque! São Paulo: Academia, 2017.
RICK and Morty. Auto Erotic Assimilation. Direção de Bryan Newton. Roteiro de Dan Harmon e Justin Roiland. EUA: Adult Swim, 9 ago. 2015. Disponível em: <link>. Acesso em: 22 ago. 2024
SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes Perigosas: O Psicopata Mora ao Lado. 6. ed. Rio de Janeiro: Fontanar, 2018.
SOUZA, César. Você é o Líder da Sua Vida: E Se Você Não Lidar Bem Consigo, Como Vai Lidar com os Outros? Rio de Janeiro: Alta Books, 2016.
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O Gato de Botas 2 e a representação do Puer Aeternus
O Gato de Botas, originalmente publicado no século XVII, em 1697, pelo escritor e poeta francês Charles Perrault, é um conto que traz como personagem um esperto gato que ajuda seu dono a ter sucesso na vida. Nesta versão cinematográfica, o estúdio da DreamWorks Animation apresenta uma adaptação do conto que vive uma nova aventura no universo Shrek quando o ousado gato fora-da-lei descobre que sua paixão pelo perigo e desrespeito pela segurança terão consequências.
O protagonista vive uma vida de prazeres, festas, bebedeiras, exibicionismo, aventuras perigosas, sem maiores preocupações, e está cada dia num lugar diferente. Expressa uma falsa humildade ao cantar “quem é o herói mais destemido”, só fazia o que lhe era conveniente, inconsequente, já que ele mesmo dizia: “Eu rio na cara da morte”, se autointitula “eterno 9 vidas”. Essas características e estilo de vida se assemelham muito com o arquétipo que Carl Jung denominou de puer aeternus, ou seja, a eterna criança.Von Franz (2005), grande continuadora do trabalho de Jung, explica que se trata de um deus da vida, da morte e da ressurreição — o deus da juventude divina.
Ao receber a notícia do médico de que tinha morrido e, constatar que esta era sua última vida, ele se revolta e saudosamente evoca lembranças nas quais se nomeia “amado por todos, mas ninguém específico”, justamente porque não se aprofunda nas relações, não se apega a nada, nem a ninguém, não tem e nem deseja ter um porto seguro. Apesar dele não perceber e justificar dizendo que “não consegue escolher uma pessoa só”. Esses comportamentos expressam muitas características do Puer que é inconstante com seus interesses, não conseguem se encaixar num trabalho, firmar compromissos, aprofundar relações.
Para fugir da morte iminente, representada por um lobo que o perseguia, ele vai em busca de um lar estável e com uma vida cotidiana em que a rotina é algo muito presente. Justamente a rotina e monotonia, da qual o Puer foge, concluindo que aquela não é a vida que ele queria ou procurava e, que no passado, nos tempos áureos de juventude, aí sim tudo era perfeito. Ideia esta que reforça mais ainda sua recusa em envelhecer e aposentar as botas.
Em outra cena bastante simbólica do filme, Gato de Botas enterra as roupas e espada que o caracterizavam como o herói de outrora. Na cena do sepultamento ele está sozinho e chora pelo que foi um dia. Lamenta o fim de uma vida com liberdade e sem nenhum limite, pois acredita que sua história chegou ao fim e nada mais pode ser feito, porque está velho. Até que conhece um amigo diferente nessa casa em que está. Uma amizade inusitada inicia-se com Perrito, um jovem cão, que insiste em manter uma amizade com o Gato, mesmo este fazendo questão de se manter distante e declarar que o “o gato de botas só anda sozinho”, mais uma vez demonstrando outra característica do Puer que não conseguem estabelecer relações a longo prazo e estão sempre em busca de coisas novas.
Ao descobrir uma forma de encontrar uma Estrela dos Desejos – uma espécie de lâmpada mágica que realiza qualquer desejo – Gato de Botas e Perrito partem para uma aventura em busca do que ele enxerga ser a panacéia para driblar a morte e “recuperar” sua juventude. No entanto, a jornada já vem cobrando o preço das vidas superficiais e inconsequentes vividas pelo personagem. O mapa para chegar até este lugar se adapta conforme a visão do personagem e para o que ele precisa, afinal, cada um viveu a vida de um jeito e precisa se defrontar com desafios diferentes. Representando com excelência o caminho da individuação, o qual é pessoal, profundo e com o preço das escolhas feitas ao longo da caminhada.
No caminho do Gato de Botas o mapa aponta para situações muito simbólicas como o Beco da Incineração – em que ele se depara com todas as vidas que displicentemente queimou -, o Vale das Almas Perdidas – no qual ele fica diante de todos os outros “eus” que ele foi, e o Barranco Matador – onde ele encara e duela diretamente com a morte. Ilustrando didaticamente o que Von Franz, 2005 diz que o indivíduo identificado com esse complexo não vive suas experiências totalmente, permanece “inocente”, porque vive as experiências sem estar realmente nelas.
Para o indivíduo sequestrado por este complexo, a felicidade está atrelada à uma fantasia de prazer eterno, por isso não cria raízes em lugar nenhum e está sempre em busca de algo novo que o divirta. Ele nega a passagem do tempo e em algum momento a vida cobra essa conta tornando-se insustentável esse modo pueril de vida. Neste momento, então, o Puer entra em crise, não tendo um ego fortalecido torna-se impossível sustentar uma crise, podendo assim apresentar quadros ansiosos e/ou depressivos. Como apresentado por Gato de Botas ao descobrir que não há prazer eterno e que a morte chega para todos.
No decorrer da sua caminhada, o gato se vê diante da necessidade de ter humildade para pedir ajuda e explicar o que quer, afinal, antes ele esperava ser convencido e paparicado para conseguir o que ele mesmo precisava. O Puer Aeternus geralmente possui grandes dificuldades de adaptação a situações sociais, pois ele possui um individualismo anti-social devido ao fato de se sentir alguém especial. Von Franz explica que ele não sente necessidade de adaptar-se, pois as pessoas têm que adaptar-se a um gênio como ele (VON FRANZ, 2002).
Outra expressão característica do Puer é o “Don Juanismo” em que eles sonham eternamente sonha com a mulher maternal que o tomará nos braços e realizará todos os seus desejos. Isto é frequentemente acompanhado pela atitude romântica da adolescência, o homem identificado com esse complexo só relaciona com uma mulher de forma a buscar uma substituta da mãe. Von Franz esclarece que ele não quer uma mulher, mas alguém que cuide dele com amor maternal, pois o homem dominado por esse complexo é dependente da mãe. Sintoma este claramente notado no protagonista que, numa determinada cena, se apaixona novamente por Kitty quando ela maternalmente cuida da barba branca dele.
Gato de Botas também se depara com situações inacabadas do passado, em que já havia abandonado Kitty, sua ex-parceira e atual inimiga, no altar. Apesar de muita resistência e dificuldade, percebeu a necessidade de pedir desculpas a ex-parceira que também estava no caminho em busca da Estrela dos Desejos. Astutamente, Kitty rebate dizendo que não foi abandonada no altar porque ela também não foi ao próprio casamento, já que sabia que não poderia competir com o verdadeiro grande amor do Gato de Botas: ele mesmo! Kitty percebeu esse predicado comum aos Puers, o ego inflado e a crença de que merecem tudo fácil.
A caminhada não acaba por aí, e, paulatinamente, vai transmutando o ego do protagonista que está constantemente com medo, saudosista, recordando os dias de glória. O último “desafio” intitulado de Barranco Matador se dá no confronto com a morte que o desafia a encará-la de frente e o provoca perguntando se ele vai escolher o caminho dos covardes e fugir para ter mais vidas ou se vai lutar com coragem, convidando assim o protagonista a abandonar a neurose infantil de viver “vidas provisórias”, como nomeou H. G. Baynes.
Em uma carta, Jung escreve sobre o Puer (2005):
“Considero a atitude do puer aeternus um mal inevitável. O caráter do Puer Aeternus é de uma puerilidade que deve ser de algum modo superada. Sempre leva-o a sofrer golpes do destino que mostram a necessidade de agir de maneira diferente. Mas a razão não consegue nada nesse sentido, porque o Puer Aeternus não assume responsabilidade por sua própria vida”.
Jung sugere como cura, tanto para a mulher quanto para o homem, o trabalho. No caso da mulher, pode também ser através da maternidade.
Caminhando para a reta final da sua jornada, Gato de Botas finalmente encara seu medo e aceita o duelo, momentos antes da luta o conteúdo do seu imaginário muda substituindo o passado que ele julgava glorioso pela vida atual que ele estava vivendo no presente, ou seja, todo o caminho de individuação que ele percorreu junto com Kitty e Perrito. Finalizando magistralmente com o manejo sugerido por Jung como cura deste complexo: o estabelecimento de compromissos, o cumprimento de rotinas, a dedicar à um trabalho ou à alguém. E o protagonista decide seguir a vida ao lado de Kitty pata mansa e Perrito, sem pedir mais vida e tratando a última que lhe resta de modo mais profundo e especial.
FRANZ, M.-L. V. Puer Aeternus- A luta do adulto contra o paraìso da infância
. 4. ed. São Paulo: Paulus, v. 1, 2011.
GRINBERG, L. P. Jung e os arquétipos: arqueologia de um conceito. In: CALLIA, M.; FLEURY DE OLIVEIRA, M. Terra Brasilis: Pré-história e arqueologia da psique. São Paulo: Paulus, 2006. p. 99-123.
HILLMAN, J. O livro do Puer: ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 2008.
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Melancolia com doses de solidão
1 de novembro de 2022 Sandra Aparecida Lopes Ramalho
Conto
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Quando abri os olhos, vi somente a escuridão, meus braços e pernas não reagiam aos comandos, meu corpo inerte me deu a sensação de estar presa em um cadáver que já não anda mais. Busquei minha voz, mas esta não veio, tentei ouvir os sons, mas a cidade estava silenciosa.
Depois de horas, recuperei o controle sobre meu corpo, consegui levantar e me dirigir ao banheiro, me olhei no espelho e não reconheci o corpo que me encarava, era uma pessoa amargurada, solitária, abandonada, não havia marcas de expressões felizes, tudo em seu corpo acentuava a tristeza de sua mente.
Fonte: encurtador.com.br/fuBLX
Tive pena daquela pessoa, quando me dei conta de que eu me encarava, o sofrimento atingiu meu peito de maneira. Busquei meu celular, minhas redes sociais é o único lugar que encontro pequenas doses daquilo que algumas pessoas entendem como felicidade.
As afirmações e os elogios registrados nos comentários de minhas publicações me deixavam mais animada, porém, hoje, nada parecia me animar. Larguei o celular e voltei para a cama, fechei os olhos e implorei para perder o controle sobre meu corpo novamente e cair em sono profundo.
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Solitude: o prazer da solidão
11 de junho de 2022 Josélia Martins Araújo da Silva Santos
Insight
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Em uma sociedade moderna, globalizada e inteiramente conectada ainda é comum encontrarmos pessoas solitárias, depressivas e em completo sentimento de solidão. Apesar de toda a proximidade tecnológica, a humanidade tem caminhado cada vez mais para um distanciamento afetivo, não só em relação aos pares, mas do próprio indivíduo com seu íntimo. A superficialidade social, a intensa necessidade de agradar e objetificar ou mesmo padronizar comportamentos vem tirando das pessoas as suas características particulares, em alguns casos, fazendo-as odiar aspectos próprios de suas personalidades.
Diversos movimentos que antes tinham causas definidas hoje se globalizaram e tiveram suas essências diluídas em superficialidades, impondo, assim como outrora, condições e requisitos para uma satisfação pessoal. Infelizmente, independentemente de qualquer grupo, associação, clube, organização, lado político, muitas pessoas criaram a ficção de que somente será realmente feliz quando seguir tais padrões impostos.
Ante esta terrível realidade, uma pessoa que tem o prazer de desfrutar de sua própria companhia, plenamente ciente de seus defeitos e amando-se intensamente, sem depender de motivações externas para isto, é, muitas vezes, mal vista pela sociedade, descriminada por não se adequar ou submeter-se às vontades das massas.
Solitude, que apesar de similar, difere-se do sentimento de solidão, é você estar feliz consigo sem a necessidade de agradar terceiros, enquanto na solidão, mesmo que o indivíduo esteja repleto de amigos, conhecidos e companheiros, se sentirá solitário pois sente que há algo faltando em sua vida e que não consegue encontrar as forças para a plenitude.
A frase de Telma Nogueira, que diz que “solitude é a capacidade de se amar ao ponto de estar sozinho e mesmo assim, se sentir inteiro e feliz. Sem a obrigatoriedade de procurar complementos e naturalmente ser preenchido de uma paz absoluta” é completa em dizer o que significa solitude, o oposto da solidão.
As pessoas esqueceram a importância de cuidar do seu eu, entregando-se tão somente ao vazio midiático que as redes sociais proporcionam, alguns entregam suas privacidades, doam seus corpos e opiniões para se sentirem realizadas, ignorando um dos primeiros amores e essenciais para o prosseguir de uma vida mental saudável, “o amor próprio”.
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Sofrimento e arte – (En)Cena entrevista a artista Laís Freitas
“A resposta é que homens amam homens, podem até ser heterossexuais mas pelo prazer sexual. Homens glorificam o mesmo sexo, não consomem conteúdos feitos por mulheres, tem apreço apenas ao que eles próprios fazem”.
O Portal (En)Cena entrevista a artista plástica Laís Freitas, de Palmas-TO, para conhecer o que significa ser mulher no Brasil na pandemia pelo olhar da jovem pintora de 18 anos que utiliza das redes sociais como meio para divulgar e comercializar seu trabalho.
Durante a conversa, Laís explica como é ser jovem, mulher e pretender viver de arte no Brasil, apontando os desafios impostos pelo machismo estrutural. A artista também fala sobre os aspectos de saúde mental na sua obra mais recente, a série de quadros “ilusão”. Para ela, o pintar e a possibilidade de se expor e se expressar têm efeito terapêutico e chama a arte de “salvação” que oportuniza tanto ao artista como ao expectador, acessar e entender sentimentos que nunca haviam sido percebido.
(En)Cena – Considerando o seu lugar de fala, mulher, jovem, artista e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID-19?
Laís Freitas (@aloisam_) – Como jovem artista, vejo que ser mulher nos dias atuais de pandemia é uma constante luta, em todos os aspectos. Ao longo da história conseguimos como feministas muitas conquistas, mas ainda existem muitas pautas a serem tratadas. Com um olhar sensível, observo que o sofrimento da mulher, incluindo o meu, parte de um sentimento de solidão, diante de uma cobrança muito grande que fomos ensinadas desde pequenas, o peso do mundo em nossas costas, que claro, parte de um machismo estruturado da nossa convivência.
Fonte: Arquivo Pessoal – @aloisam_
(En)Cena – Ao falar sobre a sua série de quadros “ilusão” no post do Instagram , @aloisam, do dia 25/04/2021 você afirma ter descoberto que o pintar te salva, quando permite contar a sua história. Como você entende a relação entre arte e saúde mental?
Laís Freitas (@aloisam_) – Como disse na minha postagem, vejo o momento da pintura como uma “quase meditação”, é o momento que mais me sinto conectada comigo mesma, pelo processo ser demorado e estar transcrevendo meus sentimentos em símbolos.
Nunca fui de me abrir conversando sobre meus problemas, mas sinto que me encontrei na minha pintura. Acho mais fácil escrever sobre o que estou passando e transformar em desenhos, me expresso dessa forma. Às vezes quando falo sobre esse processo com alguém, brinco que se não pintasse eu explodiria, porque desconheço forma mais eficiente de expressão. A arte é salvação, tanto para o artista quanto para o expectador, com ela conseguimos acessar e entender sentimentos que nunca tínhamos percebido, ela é sensível, conta uma história.
(En)Cena – Como artista jovem em 2021, qual sua perspectiva diante do mercado de trabalho tão modificado e adaptado pela pandemia, com inúmeras possibilidade de interações comerciais online por meio das redes sociais?
Laís Freitas (@aloisam_) – Com a pandemia, todos tivemos que nos reinventar. Já havia o pensamento de ter uma renda com o mercado online, mas não como eixo principal. Essa adaptação, para mim, abriu meus olhos para outras oportunidades e uma interação com o público muito rápida. A necessidade de criar conteúdo nas redes sociais confesso que me assusta um pouco, percebo que é mais fácil falar com mais pessoas, mas conseguir manter uma visibilidade e crescer em cima disso é mais difícil. Em relação a vendas, uma queda bem grande, a arte querendo ou não, no sistema econômico que vivemos quem compra é quem tem dinheiro, e com a pandemia trabalho está escasso então ninguém tem renda para contribuir no trabalho de um artista.
Fonte: Arquivo Pessoal – @aloisam_
(En)Cena – Quais os desafios de ser mulher e querer viver de arte no Brasil?
Laís Freitas (@aloisam_) – Lembro-me da primeira vez que fui ao MASP, logo quando entrei havia um poster enorme do grupo Guerrilla Girls (de Nova York) com um texto adaptado “as mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?” e logo embaixo dados afirmando que apenas 6% dos artistas do acervo em exposição eram mulheres (2017).
Como mulheres, não temos visibilidade, ainda mais na arte que temos pouquíssimas referências ao longos dos movimentos. Por exemplo, em 1909 foi lançado o “Manifesto Futurista” de F. T. Marinetti que fundamentou a vanguarda europeia “futurismo”, em que dizia em seu texto ”Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo da mulher.”. Sabemos que a arte, assim como todas práticas intelectuais, sempre foram afastadas das mulheres mas, porque ainda não temos visibilidade até hoje?
A resposta é que homens amam homens, podem até ser heterossexuais mas pelo prazer sexual. Homens glorificam o mesmo sexo, não consomem conteúdos feitos por mulheres, tem apreço apenas ao que eles próprios fazem. Essa, na minha visão, é a maior dificuldade de ser mulher e querer viver de arte, não temos a representação e a fama que um homem teria fazendo a mesma coisa. Por isso acho tão importante o movimento de mulheres apoiarem umas as outras, pois outros não vão fazer isso por nós.
Fonte: Arquivo Pessoal – @aloisam_
(En)Cena – Alguns dos seus quadros trazem imagens de rostos, mãos e órgãos humanos. Num tempo de pandemia em que o corpo e a saúde viraram pauta de constantes sofrimentos físicos e mentais, de que tratam os corações da retratados na sua arte?
Laís Freitas (@aloisam_) – A arte que faço é completamente minha, todas as faces mesmo que não sejam meu rosto, de alguma forma sou eu, assim como os corações e mãos. Minha última série “ilusão”, foi uma tentativa de me colocar em primeiro lugar, sem ter vergonha de mostrar fragilidade, por isso são todos autorretratos. Antes me escondia por medo de demonstrar sentimentos, tanto que publicava os quadros, mas não conseguia escrever sobre eles para explicar para o público o intuito do quadro.
Com muito esforço de passar por um processo de autodescoberta e aceitação, consegui parar de ter medo de demonstrar sentimentos através dos textos sobre os quadros. No primeiro quadro da minha série, que deu início a todos os outros, explico sobre essa “ilusão” de idealizar o sofrimento e até fugir dele, com medo da solidão. Mas a partir do momento que me permito sentir essa dor e percebo que faz parte do processo, essa solitude não incomoda mais, e até passo a gostar dela.
Para mim, o coração é o símbolo dos sentimentos e desse sofrimento. Demonstro as etapas da minha vida como as sensações que sentia no meu coração. Demonstrei ele pertencente a alguém, livre, sereno e também com fome.
Fonte: Arquivo Pessoal – @aloisam_
(En)Cena – Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?
Laís Freitas (@aloisam_) – Acredito que com essa pandemia, conseguimos ver ainda mais o que as mulheres passam em casa. As taxas de feminicídio só aumentam, relações abusivas disfarçadas de amor é o que mais têm. Que essa solidão que falei sirva de aprendizado, o sofrimento da cobrança em cima de nós é muito grande.
Revoluções assim, são de extrema importância. Todas entendemos o conceito de feminismo, ainda que tenha muito tabu em cima, devemos nos apoiar, creio que seja a única saída, o movimento de mulheres para mulheres.
A solitude é compreendida no ato de estar só e poder desfrutar do prazer da própria companhia. Quando escolhe, de forma consciente, podendo desfrutar de si mesmo, aproveitando para refletir, descansar e aproveitar o momento para um autoconhecimento e bem estar. Já solidão advinda do latim solitudnem, solus, que consiste no ato de estar só de forma a gerar sentimentos negativos, como o de abandono e exclusão. Na maior parte das vezes, na solidão não há escolha em estar sozinho. Estar ciente dessas condições nos faz compreender mais sobre nossas escolhas e direcionamentos a serem tomados.
A sociedade moderna está cercada de informações instantâneas, de interação social virtual, e ao mesmo tempo a redução da qualidade dos contato pessoais, que são cada vez menos recorrentes. A psicanálise discorre sobre o tema através das relações sociais, quando um desejo surge precisa ser interpretado e compreendido pelo outro, é a partir dos vínculos afetivos que se desenvolvem os desejos, e por consequência, suas demandas precisam ser satisfeitas.
No contexto atual, onde enfrentamos um cenário de pandemia a ideia de isolamento pode despertar o medo e angústia. Não ter contato frequente com outras pessoas pode ser algo naturalizado em nosso cotidiano devido a rotina acelerado em que vivemos, porém viver a solidão de maneira imposta, principalmente por uma questão que está fora do nosso controle, pode gerar inúmeros desconfortos. Por isso é preciso trabalhar maneiras de minimizar as consequências negativas e desenvolver inteligência emocional para o controle da qualidade de vida; isso requer esforços diários na manutenção dessas estratégias.
Fonte: encurtador.com.br/iAPS4
“Portanto devemos conceder a certos indivíduos a sua solidão e não ser tolos a ponto de lastimá-los, como frequentemente sucede” (Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, § 625).
Parafraseando o filósofo Friedrich Nietzsche, a solidão não precisa ser vista como algo a ser lamentado, mas necessária à condição do homem, basta compreender sua genuína significação. Transcender da solidão à solitude humana.
Através da psicanálise, abordagem da psicologia e a filosofia um dos caminhos para abranger o conhecimento e domínios da solidão. Para a teoria psicanalítica o sujeito precisa desenvolver habilidades de manejo do ego, que é a própria personalidade da pessoa. Contudo, o ego enfrentará três instâncias, id, ego e superego; o id é responsável pelos impulsos do desejo, o ego é a percepção da realidade e o superego representa as leis e morais da sociedade. Já a filosofia coloca o sujeito em constante reflexão sobre a sua existência, valores e desejos a partir da experiência da solidão.
Assim, por mais que sejamos pessoas sociáveis e com intensos desejos de vínculos afetivos, realizações de prazer e conquistas, também precisamos passar por vivências opostas a essas para entendermos quais são nossos verdadeiros anseios. Conforme isso acontece, aprendemos então a diferenciar a solidão e solitude, de quando há ou não necessidade de estar consigo mesmo ou com o outro.
Estamos aprisionados dentro de nós mesmos, de uma forma que nunca poderemos nos libertar; essa prisão não é física, mas sim mental. Estamos sozinhos quando nascemos e ficaremos sozinhos até o dia de nossa morte. Não é porque não existam pessoas que nos amem, não pela falta de amizade ou mesmo pela falta da presença de outras pessoas ao nosso redor. A solidão é inerente ao ser humano. Quando alguém agarra o nosso braço, o que sentimos não é a mão de alguém a nos agarrar, mas sim o nosso braço sendo agarrado por alguém, quem sente a mão a agarrar é o seu portador. Todas as sensações sensoriais são nossas e é impossível sentir o que o outro sente, é impossível entrar em simbiose com alguém ou se você preferir, é impossível se conectar completamente com alguém; é como se estivéssemos navegando em um oceano a noite, onde o que vemos é apenas a escuridão. Você está sozinho quando a sua mãe lhe abraça com aquele abraço de amor, quando você beija alguém, até mesmo no seu orgasmo; se você parar para pensar, a sensação que o outro sente quando atinge o orgasmo é simplesmente misteriosa, por mais que você esteja dentro do outro, ou que aquela pessoa esteja dentro de você, ainda assim é um mistério, o máximo que você pode fazer é imaginar se aquela pessoa sente a mesma coisa que você quando atinge o seu.
Se seguimos pesando sobre a questão de sentir, percebemos que também é impossível conhecer plenamente alguém, tudo o que temos são impressões das outras pessoas, são construções que criamos ao longo do tempo com os tijolos que aquela pessoa nos fornece, entretanto, ninguém se revela plenamente e mesmo que se revelasse, ainda assim distorceríamos ela com as nossas interpretações pessoais; no final das contas, não conhecemos de fato a nossa mãe, filho, marido, amigo e as vezes nem mesmo a nós próprios. Talvez seja daí que vem a vontade de Deus, uma vontade de sermos preenchidos por um ser que nos conhece desde ante mesmo de nascermos, que sabe o que vamos dizer antes mesmo que as palavras cheguem a nossa língua; talvez seja desse medo do vazio que necessitamos tanto de um ser que nos guie em uma vida no além vida, por um lugar cheio de prazeres indescritíveis, por uma cidade onde todos vivem em harmonia com esse ser que tudo sabe, ver e pode; onde enfim poderemos ser um, assim como o filho e o pai são um.
Fonte: encurtador.com.br/nruOU
O próprio amor, nada mais é do que a manifestação física da solidão. Você já se perguntou por que ama alguém tão diferente de você? Por que você ama aquele presente que você ganhou daquela pessoa que lhe é muito cara? Ou o carro novo que você comprou? Ou ainda aquele seu amigo que ninguém suporta senão você? Talvez a solidão seja o sentimento base de todo o ser humano, e tudo que fazemos, fazemos em função desse sentimento que na maioria das vezes é inconsciente, que quase nunca se manifesta de forma perceptível ou como ele realmente é. A busca pelo amor, poder, felicidade, sabedoria, paz, espiritualidade; todas essas buscas têm como seu pano de fundo a solidão.
Apesar dessa solidão ser as vezes massacrante, podemos afirmar com quase toda certeza que é melhor viver com ela do que sem; já imaginou se seu namorado soubesse o que você pensa quando ver o Aquaman sem camisa saindo da água e jogando os seus longos cabelos para trás? Se o seu chefe soubesse dos nomes que você chama ele mentalmente? Inicialmente parece ser algo tristonho, mas se olharmos bem de perto, veremos que é essa solidão que nos faz tão únicos; é essa solidão que nos permite que sejamos livres dentro de nós mesmos, por mais que estejamos enjaulados em uma prisão física, nada poderá nos prender em nossa mente. Talvez esse oceano que vivemos não seja noite, mas sim um belo dia de sol, sem nuvem e com pássaros voando para o sul, com golfinhos e com baleias esguichando água ao céu. Quando achar que estiver sozinho, lembre-se que você está com a pessoa que mais importa, você.