A noção de territorialidade nos dias atuais como forma de fortalecer a identidade do indivíduo

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Fonte: encurtador.com.br/nDITZ

A ideia de pertencimento gera uma sensação de acolhimento, por isso o ser humano, constantemente, está em busca de sua territorialidade, baseada em sua identidade construída ao longo de sua trajetória, desde a infância. A noção de território fez no decorrer da história mundial, o acontecimento de muitas guerras, que tinha como essência a defesa de sua propriedade, família e tradição. Pode-se citar como exemplo, os highlander (povos do alto) de origem escocesa, que por não terem aceitado o domínio inglês, lutaram bravamente para a preservação de sua cultura, além das terras. 

No Brasil, destacam-se os povos indígenas que vivem constantemente em conflitos de terras com grileiros para a preservação de sua cultura, bem como o modo como enxergam a terra. Para muitas pessoas o termo territorialidade vem como sinônimo de pertencimento e acolhimento.  Ou seja, um local em que sua história pode ser entendida por representar sua origem. 

 De acordo com o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Baumam, em sua obra Modernidade Líquida (1999) a teoria do homem líquido aponta que as relações humanas são frágeis, justamente pelo indivíduo absorver tudo que é imposto. Isto é, sua identidade torna-se frágil por não haver uma identidade, como consequência uma falta de territorialidade, que vai além de um local, mas um espaço de valores.

Nesse aspecto, o geógrafo baiano Santos (2001), em sua obra “Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI”, busca entender a partir da territorialidade, uma interpretação realista, empírica, do Brasil, no sentindo de perceber o comportamento do povo brasileiro, a partir do seu território. 

Para Santos (2001), o território é o espaço geográfico de acordo que ele está sendo utilizado, não é uma questão abstrata, mas uma posição concreta, um sistema que combina o objeto que temos disponíveis no território com as ações que estão sendo utilizadas, uma mistura de objetos e ações.

Para mim, Ludimila Bezerra, acadêmica de psicologia, do CEULP/ULBRA, minha territorialidade está no Estado do Tocantins, mais específico, em Palmas.  Apesar do sol escaldante, a maior parte do ano, Palmas remete ao meu lugar de pertencimento territorial.

Referência

Bauman, Zygmunt. A Modernidade Líquida.  São Paulo. Editora Zahar, 1999.

SANTOS, Milton e Silveira, M. O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI. São Paulo. 28 de fevereiro de 2001.

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Carta de Palmas

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IV Encontro Do Colegiado De Coordenadores De Saúde Mental Da Região Norte

“Do coração da floresta ao coração do Brasil. Juntos no fortalecimento da saúde mental da Região Norte”

Em 19 de Dezembro de 2011, navegando as águas do Rio Negro, coordenadoras e trabalhadoras de Saúde Mental do Amazonas, Roraima, e Tocantins se reuniram para discutirem a situação da Saúde Mental em seus Estados de origem e organizarem o III Fórum Amazônico de Saúde Mental. Este Fórum aconteceu em Maio de 2012 com a presença dos coordenadores e trabalhadores de Saúde Mental, dos 07 Estados e capitais da Região Norte e Técnicos do Ministério da Saúde.

Neste memorável evento, foi oficialmente instituído o primeiro Colegiado de Saúde Mental Regional do país, como proposição do Ministério da Saúde. Este Colegiado foi composto por coordenadores de saúde mental estaduais e municipais das capitais e principais cidades dos Estados, representantes dos Pólos Indígenas, com apoio técnico do Ministério da Saúde.

No segundo semestre de 2012, em Rio Branco–AC, ocorreu o II Encontro do Colegiado de Saúde Mental da região norte, onde foram traçadas diretrizes frente aos desafios que esta região apresenta no âmbito da gestão, da educação permanente e da atenção à saúde indígena.

Em outubro de 2013, na cidade de Belém do Pará, aconteceu o III Encontro deste colegiado, antecedido pelo Fórum regional de Saúde Mental da Criança e do Adolescente. Mais uma vez, o colegiado cumpriu seu papel, discutindo as questões pertinentes ao fortalecimento da RAPS, especialmente frente a ameaça real do retrocesso institucional que as medidas judiciais tem imposto aos Estados e Municípios quanto ao  recolhimento compulsório e cuidado aos  usuários com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, num flagrante desrespeito aos direitos e a  dignidade humana, bem como aos princípios do SUS.

Desde sua instituição, este colegiado cumpre seu papel de pensar sobre os desafios e especificidades da região norte, como os da acessibilidade aos territórios, do protagonismo dos usuários e familiares, da participação popular, do controle social, da necessidade de estabelecimento de uma política de recursos humanos que atenda às peculiaridades da Saúde Mental, carreada por uma estratégia de Educação Permanente mais próxima de nossa cultura, do financiamento diferenciado que dê conta dos altos custos dos serviços, do trabalho de pesquisa que priorize o uso de nossa cultura, flora e cuidados tradicionais para a saúde mental dos nossos usuários, e propor ações estratégicas para a implementação e o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial na Região Norte, atentando para as especificidades amazônicas,  com o olhar diferenciado às comunidades tradicionais, compreendendo as suas diversidades culturais, defendendo a liberdade no cuidado e a integridade  da pessoa humana, em todos os componentes da RAPS.

Muitos são os desafios bem delineados desde o primeiro encontro no Amazonas e outros surgem no meio do caminho. Alguns, procurando respostas prontas e muitas definições contrárias aos princípios éticos e políticos da reforma psiquiátrica, e como estratégia, entendemos que cabe a nós, militantes do Movimento da Luta Antimanicomial, usuários, familiares e  trabalhadores do SUS/Saúde Mental, a responsabilidade de nos organizarmos para a consolidação e o fortalecimento da Política Nacional de Saúde Mental na Região Norte do País, corroborando com todas as regiões brasileiras numa unidade pátria, para que esta tão combatida política se estabeleça de fato, como Política de Estado.

Reconhecemos que em todo o norte, temos ainda muitas fragilidades: CAPS que ainda não conseguem atender crises e por isso são desacreditados pela comunidade, equipes fragilizadas, falta de apoio e entendimento da política nacional por parte de muitos gestores, recursos financeiros escassos, e até retrocedemos ao cedermos às pressões da justiça com as internações compulsórias de usuários nas comunidades terapêuticas e clinicas de  recuperação privadas sem antes termos o direito de cuidá-los em nossos serviços, estamos longe de conseguirmos atender com dignidade os povos tradicionais e indígenas da região norte e o acolhimento às pessoas privadas de liberdade e em medidas de segurança nos equipamentos de saúde mental ainda é um tabu para todos.

Mas, tivemos avanços em todos os Estados: Fechamos hospitais psiquiátricos e alguns ambulatórios medicalizantes, abrimos serviços novos, fizemos interlocução com os gestores através das pactuações em CIR/CIB e dos conselhos de saúde, nos aproximamos da Atenção Básica através do caminhos do cuidado,  viajamos por este país em duplas no percurso formativo, formamos técnicos especialistas, produzimos vida mesmo em meio a aridez dos processos políticos[1].

Desde o dia 04 de novembro de 2014, o Tocantins teve a honra de receber os participantes do IV Encontro do Colegiado de Saúde Mental da Região Norte (Amapá, Amazonas, Pará, Roraima, Tocantins, Capitais e DSEIS)[2] e o VIII Encontro do Colegiado Gestor de Saúde Mental do Tocantins no ano de 2014.

Durante o evento, refletimos sobre os desafios, avanços e apontamos novos rumos para o fortalecimento das relações entre as Redes de Atenção à Saúde e a Rede Intersetorial nos territórios, visando o cuidado em Saúde Mental.

Os temas percorridos foram acerca de: Gestão e Planejamento da RAPS para a Região Norte, Complexidades Amazônicas, Fator Amazônico na Saúde Mental, Educação Permanente (caminhos do cuidado, Percursos Formativos, CAPS Escola, projetos de pesquisa), “Programa Crack, é possível vencer”, Saúde Mental e Saúde no Sistema Prisional, Saúde Mental em contextos Indígenas.

Participaram do evento, trabalhadores e gestores das Redes de Atenção à Saúde com o foco na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que validaram através desta Carta de Palmas, os

seguintes encaminhamentos norteadores da RAPS em toda a região norte brasileira nos próximos anos, a saber:

  • Revisar os valores de repasses de incentivo e custeio dos componentes da RAPS pelo Ministério da Saúde e o aplicar o estabelecimento de normatização para o Cofinanciamento dos Estados e Municípios.
  • Compor um grupo de trabalho com atores locais (gestores, trabalhadores, usuários e sociedade civil) e Ministério da Saúde para estudo a respeito do fator amazônico como indicativo de financiamento diferenciado da Saúde para a Região Norte;
  • Incorporar as diversas ferramentas de monitoramento e avaliação existentes no SUS no âmbito da Saúde Mental como estratégia de qualidade de serviço;
  • Qualificar os indicadores de pactuação utilizados nas Comissões (CIT, CIB, CIR) para avaliação da cobertura da Rede de Atenção Psicossocial.
  • Fortalecer o formato do apoio institucional do Ministério Saúde de forma integrada com outras redes nos territórios.
  • Fortalecer a função do apoiador da RAPS do Ministério da Saúde para a Região Norte.
  •  Instituir o Apoiador local do Ministério da Saúde, por Estado, que trabalhe o conteúdo da RAPS, nos moldes da Política Nacional de Humanização e da Rede Cegonha.
  • Favorecer a apropriação de instrumentos para fortalecimento da atenção básica, compreendida como ordenadora do cuidado no território, como por exemplo, a planificação (estratégia da atenção básica promovida pelo CONASS, que já vem sendo implementada no estado do Pará) – (Anexo I).
  • Construir estratégias de mobilização dos trabalhadores que estão participando do Percursos Formativos, Caminhos do Cuidado ou outros processos de qualificação no campo da saúde mental, álcool e outras drogas para participar do matriciamento conjunto da atenção básica.
  • Fomentar ações de intercâmbio – como o Percursos Formativos – entre os próprios serviços e redes da região Norte.
  •  Estender os Caminhos do Cuidado para os demais profissionais das equipes de atenção básica.
  • Assegurar que os serviços da RAPS sejam campo formador e campo de prática no contexto do ensino, da pesquisa e da extensão, reforçando a importância de que o fluxo normativo sobre pesquisa nos serviços da rede seja seguido.
  •  Ampliar o número de apoiadores do Projeto Redes/SENAD/MJ, para todos os municípios aderidos ao Programa Crack, é possível Vencer
  • Fortalecer o controle social como estratégia de sustentabilidade das Políticas de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas nos territórios.
  • Garantir que os Fóruns Intersetoriais de Saúde Mental, sejam disparados pelos Grupos Condutores Estaduais e Regionais da RAPS, em parceria com Coordenações Estaduais e Municipais de Saúde Mental, Coordenações de serviços da RAPS, Referências de Saúde Mental nas Regionais de Saúde, Articuladores de Rede da SENAD e apoiadores do Ministério da Saúde considerando sempre a participação e inclusão de usuários, familiares e trabalhadores dos serviços.
  • Assegurar a estratégia das Assembléias dos CAPS como dispositivos de fortalecimento dos Fóruns de Saúde Mental Intersetorial nos territórios, como previsto na PT 3088/2011.
  • Criar estratégias para minimizar os impactos negativos das constantes mudanças na gestão das Secretarias de Saúde no que se refere às pactuações locais, regionais e estaduais da Política de Saúde Mental, álcool e outras drogas.
  • Articular a execução de estratégias interfederativas nos territórios para regulação do acesso e fluxo dos usuários às Comunidades Terapêuticas financiadas com recursos públicos, articulando Saúde, Assistência Social, Direitos Humanos e Justiça, considerando o projeto terapêutico singular integrado à rede de cuidado intersetorial.
  •  Promover Encontro da Região Norte de Saúde, Sistema Prisional e SINASE para discutir as necessidades da região diante da questão da PNAISP e da EAP e da especificidade do cumprimento das medidas sócio-educativas. Com indicativo da Coordenação de Saúde Mental Estadual para realização no Pará em 2015.
  • Promover, por meio das áreas técnicas de saúde mental e saúde prisional, a qualificação das equipes que atuam dentro do sistema prisional, visando a articulação com os serviços de saúde da rede.
  • Criar espaços de discussão em conjunto com os gestores dos DSEIs e os gestores de saúde mental sobre atenção à crise e medicalização considerando aspectos etnográficos e o protagonismo das populações indígenas com as equipes de saúde mental nos territórios.
  • Garantir o acesso nos serviços de saúde mental para os indígenas que fazem uso de medicação controlada para reavaliação das necessidades de manter as prescrições e para a construção dos projetos terapêuticos singulares com a participação da família e da comunidade.
  • Fortalecer a rede de serviços de saúde nos territórios impactados negativamente por grandes empreendimentos, considerando a necessidade das populações indígenas e desenvolver projetos específicos para reduzir as vulnerabilidades de risco individual, social e comunitário de acordo com as realidades locais.
  • Estimular a construção de projetos de Formação e Educação permanente para as equipes de saúde indígena a partir das experiências dos projetos: “Caminhos do Cuidado” e “Percursos Formativos na RAPS”.
  • Priorizar o matriciamento entre às equipes multidisciplinares de saúde indígena que atuem dentro dos territórios;
  • Favorecer o acesso aos leitos integrais de saúde mental, álcool e outras drogas nos hospitais gerais para as populações indígenas pactuando a ordem de prioridade na regulação das vagas a partir da dimensão da equidade;
  • Promover o cuidado considerando aspectos interculturais especificamente os saberes e práticas da autoridade indígena em saúde (exemplo: Pajé)
  • Estimular um encontro interfederativo da Região Norte para discutir as necessidades relacionadas à saúde indígena e saúde mental.
  • Pactuar como indicativo, a realização do 5º Encontro do Colegiado de Saúde Mental da Região Norte na cidade de Macapá – AP em 2015.

Nossa tarefa é enorme e desafiadora e este já é o encontro da maturidade da coragem, e da determinação – “Se não nos deixam sonhar… não os deixaremos dormir”. – Eduardo Galeano

Palmas, 07 de novembro de 2014.


[1] Texto de abertura do IV ENCONTRO DO COLEGIADO DE SAUDE MENTAL DA REGIÃO NORTE, lido pela Coordenadora Estadual de Saúde Mental do Tocantins Ester Cabral

[2] Os representantes dos Estados do Acre e Rondônia não estiveram presentes no evento.

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Como se faz saúde mental indígena?

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Iny, karajá javaé, sofrimento, suicídio Não somos apenas o que pensamos ser.
Somos mais:
somos também o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos;
somos as palavras que trocamos,
os enganos que cometemos,
os impulsos a que cedemos ‘sem querer’.

(FREUD, Sigmund)

 

Eu não tenho a resposta para essa pergunta, tão pouco sei se alguém a tem, ou mesmo, se é possível tê-la. O texto que segue é resultado de tudo o que venho lendo, aprendendo e me apropriando ao longo de minha formação acadêmica sobre saúde mental.

Não é novidade a situação de descaso com a figura do indígena em nosso país. O confronto se dá em várias esferas: cultural, social, econômica, religiosa etc., e o produto desse embate tem sido, na maioria dos casos, traduzido como disputas territoriais.

Meu propósito aqui não é desmerecer o papel das mídias, nem me colocar contra ou favor de uma das partes, por isso vou me ater ao processo de cuidado e promoção de saúde mental do indígena no Brasil.

Para se pensar em estratégias de prevenção e promoção em saúde mental dos indígenas brasileiros é preciso, antes de tudo, contextualizar o sofrimento mental destes povos, entendendo a complexidade de ser/estar desse sujeito no mundo contemporâneo.

Partindo dessa ótica, o que segue é resultado de um contato pessoal que se deu a alguns meses, na minha formação em Psicologia, cursando Ênfase em Saúde Mental e Comunicação, com representantes do povo Iny (Karajá – Javaé) Karajá da Ilha do Bananal – TO, que, na oportunidade, nos relataram sobre a real condição de sua tribo hoje: “O Povo Iny está sofrendo. A cultura de seu povo não é mais valorizada. Os jovens não tem perspectiva de futuro”.

A cultura indígena, em nosso país está cada vez mais desvalorizada, e tem sido desacreditada pelo próprio indígena que sente “vergonha” de ser índio. Aos poucos, figuras típicas das aldeias como o Pajé estão desaparecendo e todo o seu saber se esvai consigo.  O índio tem se sentido cada vez menos reconhecido como índio, e quando comparado com o homem branco, ele se sente inferiorizado. O pouco que ainda lhe resta de terra não e suficiente para práticas de manutenção de sua própria existência, como a caça, a pesca e o cultivo de grãos e raízes. E o choque do contato com o homem branco trouxe danos ao sujeito índio e, como resultado desse contato, o alcoolismo tem se propagado pelas aldeias.

Ao contrário do que se prega, nem todo o índio – ou filho de índio –  tem condições para se manter em uma instituição de ensino na cidade, apesar das políticas de cotas – assunto de tantos questionamentos e embates teórico-metodológicos entre os magistrados brancos – não é de acesso a todo indígena. As escolas indígenas tem um ensino precário e nem de longe se compara com o ensino das cidades (que já não é lá essas coisas). A língua do índio está se perdendo aos poucos, pois tem se propagado o ensino do português entre as aldeias. Quando adoece, o índio precisa ser deslocado para a cidade e, quase sempre, a equipe de profissionais em saúde não tem preparo algum para lidar com esse público.  O suicídio tem se propagado entre os povos indígenas, só entre os Iny já foram 11 tentativas e 3 desde o início de 2014 até agora1.

Diante dessa gama de pontos levantados pelo sujeito indígena, é possível perceber que suas queixas, de longe, perpassam pela questão dos conflitos territoriais.

Voltando à pergunta inicial: como se faz saúde mental indígena? Reafirmo que não sei como se dá essa prática/práxis, tão pouco sei se existe um protocolo a ser seguido. O que sei é que não podemos nos deparar com um sujeito tão peculiar e enfrentar sua queixa com a mesma lógica da qual usamos para o tratamento do “não índio”2, afinal, nossa prática/práxis em saúde é aplicada ao sujeito contemporâneo e carrega consigo uma bagagem ontogenética, filogenética e cultural especifica do homem branco. Logo, não há como pensar saúde mental para/do sujeito indígena sem sair da posição de conforto e tentar uma aproximação com o seu sofrimento, dentro da sua concepção/visão de mundo. Afinal, não se trata de um mal biológico, uma afecção que toma o sistema imunológico causando deficiência de alguma proteína “X” ou “Y” e que pode ser controlada pela administração de determinada sustância manipulada em laboratório. Estou falando de um mal, que como acreditavam os sábios antigos, atingem a alma/psique, e muda o modo como o sujeito produz/reproduz sua existência.

Também não considero apropriado cunharmos o termo Saúde Mental para problematizarmos essa queixa, pois, se considerarmos a bagagem patologizante que o termo carrega consigo, histórica e culturalmente, é preferível cunharmos o termo Assistência Psicossocial. Assim, já não faz mais sentido pensar um modelo de se fazer saúde para esse público, dada a especificidades culturais e subjetivas de cada povo/sujeito indígena. Pactua-se, portanto, a necessidade de uma ótica desterritorializada e contextualizada desses sujeitos, alicerçada a um entendimento biopsicossocial, para se traçar qualquer intervenção de cuidado em saúde. Tal lógica permite um novo entendimento do processo saúde e doença.

Se volto para o entendimento de Brêtas e Gamba (2006) onde saúde é a capacidade que o ser humano tem de gastar, consumir a própria vida, entendendo que a vida, nesse contexto, não admite reversibilidade, parto para um enfoque onde a assistência psicossocial, não permite do profissional uma práxis individualizada. Logo, outros setores e campos do saber precisam ser sensibilizados para que juntos/articulados possam pensar estratégias eficazes de reabilitação desses sujeitos, ficando assim, a saúde, não a cargo única e exclusivamente de profissionais da saúde, mas também, dos demais setores que, em alguma esfera, atravessam esse saber.

Partindo desde enfoque, se considero esse modo de perceber o sujeito indígena em seu sofrimento, tomando como base – especificamente – os relatos verbais acima relacionados, posso inferir que a carga de sofrimento daquele povo, em suma, é existencial. Tendo problematizado a questão, penso numa possível solução, e aqui entra um quesito totalmente novo, pois na resolução da problemática cada ciência que trabalha com o tema saúde tem seu método específico. No caso da psicologia, pautado na abordagem de minha preferência, acredito que a intervenção melhor indicada atuaria nas relações, no caso, destes sujeitos com as esferas nas quais se sentem desassistidos, necessitando assim de uma ação transdisciplinar, que garanta participação de outros atores que compactuem com a garantia de tais direitos/necessidade. Assim sendo, fica clara a sensibilização de outras esferas, e do próprio estado, na implementação de estratégias que visem a promoção de atenção psicossocial destes povos.

Não há como intervir nessa questão sem uma sensibilização/mobilização de todos os setores que direta e indiretamente atravessam horizontalmente o Ser do índio nos dias atuais. Saúde, Educação, Religião, Economia, Segurança, Lazer, Cultura etc, são dimensões que precisam ser percebidas/asseguradas para que este sujeito encontre condições de gastar e consumir sua vida de forma qualitativa.

Notas:

1 É preciso frisar que nesse pequeno parágrafo não pude reunir nem metade das queixas explicitadas pelos Karajás naquele encontro, que se estendeu em outros momentos.

2 O termo foi erroneamente empregado, uma vez que todos carregamos em nossa história genética traços dessa cultura indígena, assim com a negra. O Brasileiro é resultado de uma miscigenação de raças. Logo, todos nós somos índios, ainda que não tribais. Talvez, se enfrentássemos a questão com esse entendimento conseguiríamos uma aproximação mais empática da condição atual do índio brasileiro e nos mobilizaríamos, como comunidade, buscando uma solução para seu sofrimento.

Referência:

BRÊTAS, A.C. P.; GAMBA, M. A.(Org.). Enfermagem e saúde do adulto. São Paulo: Manole, 2006.

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O humano, a loucura, a cidade

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Pagamos um preço alto por nossa condição de humanos. Angustiamo-nos com as coisas mais cotidianas: com a conta que está por vencer, mesmo sabendo que temos dinheiro para pagá-la; com a possibilidade de sol ou de chuva, mesmo impotentes em relação ao clima; com os filhos, quando os temos; e também com a falta deles, quando eles não vêm. Sofremos por tudo aquilo de incerto que nos cerca e, como não temos muitas certezas, sofremos por quase tudo. Temos medo também do que nos é certo. A morte, a certeza mais definitiva, apavora-nos.

Foto: Cristiano Mascaro

Por isso, enlouquecemos. A loucura é um fenômeno exclusivamente humano. Bichos não ficam loucos, pois enlouquecer é algo tão complexo que exige de quem o faz características só encontradas no pensamento do homem. Portanto, enlouquecer – de uma certa forma – é mais uma das certezas que temos. Se não é uma certeza para cada um de nós, o é para a humanidade como espécie. Não se conhece época ou cultura sem loucos.

Caminhando pela moderna cidade de Palmas, arrisco-me na escuridão das ruas (pela falta de iluminação pública) e no meio dos carros (pela falta de calçadas). Depois de notar que me esqueci, mais uma vez, de colar em minha camiseta uma faixa reflexiva para não ser atropelado, sentindo-me um alienígena e quase que pedindo desculpas ao mundo por minha atitude imprudente de voltar caminhando do trabalho para casa, decido andar pelas ruas internas das quadras. Lá, a cada vinte passos, preciso voltar a arriscar-me pela rua, já que vários moradores têm o curioso costume de estacionar seus carros sobre o passeio. Sem lugar, completamente sem lugar…

Mesmo assim, a caminhada me faz pensar. Entre um e outro susto, carros passando colados a mim, pergunto-me que espécie de espaço se está construindo aqui. Que cidade é esta em que não há lugar para gente?  Um motorista me olha com cara de poucos amigos. O pensamento mais que os pés, acostumados ao caminho de casa, divaga. Um automóvel entra em meu caminho, ou melhor, eu no dele. Ouço um xingamento. Penso em outras situações e, com pesar, noto que o trânsito é só mais uma – entre muitas – em que as pessoas, aqui, sentem-se como intrusas. Uma freada e outro xingamento. Penso agora nos que enlouquecem. Eu, que me considero quase normal, sinto-me sem canto. O que dizer dos que enlouquecem? Uma buzina quase me faz perder o foco. Onde estariam, a estas horas, os loucos daqui? Trancados em casa? Amarrados a uma cama de hospital? Medicados, trancados por dentro? Outra buzina. Sem lugar, completamente sem lugar…

A loucura foi acorrentada e afastada do convívio da cidade há cerca de 300 anos. Há duzentos, decretou-se que ela era uma doença. A partir daí, presa aos grilhões dos esquemas diagnósticos, a loucura pôde ser desacorrentada, mas permaneceu apartada da cidade, enclausurada no hospital. Foi lentamente deixando o manicômio após o advento das medicações que, se mal usadas, podem representar um novo aprisionamento, ainda que com lustrosas e modernas correntes. Hoje, com o desenvolvimento das diversas especialidades que se debruçam sobre a loucura, o louco parece dar mais um passo em seu longo e demorado caminho de volta à cidade. Contudo, cabe perguntar: em direção a que espécie de cidade o louco se encaminha?

Foto: Cristiano Mascaro

A cidade contemporânea, pretendendo-se eficiente e ordenada, não consegue, ao que parece, comportar a desorganização que a diferença em geral provoca. É como se houvesse, na cidade, um texto rígido a se seguir, sem possibilidade de rasuras. Toda nova escrita só pode ser admitida se não comprometer a ordem e a finalidade do texto como um todo. Mas, neste ponto, é importante uma observação: o ser humano, em geral, não segue textos e se os segue rigidamente, perde muito de sua humanidade.

Não é a toa que resolvemos um dia afastar a loucura de nosso convívio. Ao lado de razões de ordem econômica, decidimos manter a loucura longe de nossos olhos porque ela nos faz recordar uma daquelas certezas que nos angustiam. Conviver com o louco nos faz lembrar, de pronto, nossa condição de humanos e, tão só por isso, passíveis de enlouquecer. Portanto, negamos também nossa própria humanidade quando nos privamos do convívio com aquele que enlouquece.

E aqui, na jovem e modernosa cidade de Palmas, onde o espaço urbano possui um texto mas não conta histórias – porque quase não as tem para contar – o humano, coitado… Sem lugar, completamente sem lugar.

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O meio digital como disparador do direito a saúde humanizada

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A Rede HumanizaSUS (http://www.redehumanizasus.net/) vem se firmando como um dos principais canais de divulgação, problematização, criação e trocas de experiências entre a Política Nacional de Humanização, usuários, militantes, trabalhadores e gestores do SUS em todo o Brasil. Desde sua fundação, há mais de cinco anos, a rede social já tem mais de 15 mil pessoas cadastradas em seu portal, além de contabilizar cerca de 1,3 milhão de visitantes e acima de 4 milhões de visualizações em suas páginas, segundo informou Ricardo Teixeira, consultor da Política Nacional de Humanização – PNH, de São Paulo. “Desses, mais de um milhão de usuários individuais que acessaram a rede nesses cinco anos, quinze mil são cadastrados, ou seja, vários acessam e navegam, levantam informações, mas navegam como “anônimos”, pessoas não logadas no sistema”, disse.

Ricardo Teixeira, ao participar do Seminário Norte de Humanização, em Manaus – AM, em março, explicou que os interesses dos usuários são os mais diversos possíveis. “Muitos vão e trocam informações, ou seja, é um acervo de conhecimento, através das conversas, das postagens, das práticas do SUS que são encontrados nos mecanismos de busca e que acabam interessando muitos usuários”, afirmou.

Ricardo Teixeira no Seminário Norte de Humanização com Bruno Mariani, em Manaus /AM
Foto: Michel Rodrigues

“Temos aproximadamente mil e duzentos blogs individuais, ou seja, das quinze mil pessoas [cadastradas] setecentas publicaram pelo menos um post, muitas delas publicaram vários posts. Há também dezenas de usuários que são blogueiros da RHS. [A RHS] É uma comunidade de blogs da saúde, sendo a essa altura, aproximadamente seis mil posts, mostrando assim a magnitude da rede”, completou o consultor.

Ao portal (En)Cena, que acompanhou toda a realização do Seminário Norte, Ricardo Teixeira cedeu a entrevista que segue.

(En)Cena – Como é a presença da Rede HumanizaSUS na internet?

Ricardo Teixeira – A Rede HumanizaSUS é uma rede colaborativa, uma rede social. É mais uma oferta da Política Nacional de Humanização (PNH) para humanização dos serviços do SUS. Possui cerca de cinco anos de existência, foi lançada em 22 de fevereiro de 2008, sendo uma proposta que desde o início se lançou com uma perspectiva inteiramente aberta, sendo uma plataforma com cadastramento livre na web, onde qualquer usuário pode se cadastrar. Esse caráter aberto é intrínseco à proposta, por que ainda que houvesse algumas ideias dos usos possíveis dessa rede na política, a aposta acertada foi a de que o sucesso dependeria das apropriações que os usuários fariam daquele espaço virtual. Sendo assim, torna-se difícil falar sobre o que ocorre na Rede HumanizaSUS, pois acontecem diversas coisas a partir de uma ferramenta simples que é o blog. O blog foi escolhido por sua popularidade na internet e devido à sua fácil estrutura de postagem e comentários que vai abrindo linhas de conversação.

(En)Cena – Por esse canal, além do usuário deixar queixas e sugestões, pode-se também solicitar serviços?

Ricardo Teixeira – As finalidades para esse blog são múltiplas. Os usuários são principalmente trabalhadores e gestores da saúde. A participação do usuário do Sistema Único de Saúde ainda é minoritária, apesar de estar crescendo nos últimos anos. Isso reflete as dificuldades da inclusão do usuário na construção do SUS. Há um canal de comunicação oferecido pela rede que tem sido muito utilizado pelos usuários, que é o “formulário de contato”(uma espécie de “fale conosco” disponível na plataforma). Sendo bem sincero, o uso desse canal se deve a certa confusão que é feita a respeito do caráter daquele site. Se você entrar no Google e digitar a palavra “ajuda” e “SUS”, procurando por algum serviço do SUS, na primeira página de resultados várias correspondem às páginas da RHS. Quando o usuário clica ali, ele vê uma série de matérias sobre serviços do SUS, posts, comentários e ele rapidamente a identifica como sendo uma página do Ministério da Saúde ou Ouvidoria, e eles mandam suas mensagens às vezes pedindo uma consulta, às vezes fazendo uma denúncia. Então por essa via, a participação do usuário é muito grande e bem frequente.

(En)Cena – Esses usuários recebem um feedback?

Ricardo Teixeira – Apesar dessa confusão, ele recebe o feedback  da equipe de editores/cuidadores do site e, dependendo da demanda, poderá ser orientado a utilizar um canal de expressão existente mais apropriado como a Ouvidoria do SUS. Esse canal de comunicação tem sido uma oportunidade da gente entender e conhecer o SUS e as grandes dificuldades que o usuário ainda tem tido com o quesito acesso.  Eu diria que 8 em 10 demandas de usuários que chegam por essa via dizem respeito à dificuldade de acessar algum bem ou serviço que o SUS deve de fato disponibilizar, seja por uma dificuldade real, ele está experimentando esse caminho e não está conseguindo, ou porque desconhece os caminhos, sendo esse um dos retornos que a RHS dá: orientar melhor  a como acessar o direito á saúde pública.

(En)Cena – Qual a dimensão da rede em relação ao número de acesso?

Ricardo Teixeira – Hoje a RHS tem mais de quinze mil cadastrados, ao longo desses cinco anos de existência da Rede. Ela já recebeu a visita de aproximadamente um milhão e trezentos mil usuários individuais, que realizaram aproximadamente um milhão e oitocentas mil visitas. Desses mais de um milhão de usuários individuais que acessaram a Rede nesses cinco anos, quinze mil são cadastrados, ou seja, vários acessam e navegam, levantam informações, mas navegam como “anônimos”, pessoas não logadas no sistema. Temos aproximadamente mil e duzentos blogs individuais, ou seja, das quinze mil pessoas, mil e duzentas publicaram pelo menos um post, muitas delas publicaram vários posts, há também dezenas de usuários que são blogueiros da RHS. Ela é uma comunidade de blogs da saúde, tendo, a essa altura, mais de seis mil posts, mostrando assim a magnitude da rede.

(En)Cena – Como você observa a Internet nesse campo da comunicação com usuários e também como um canal de serviço da RHS?

Ricardo Teixeira – É uma experimentação em curso. A resposta para a sua questão é uma resposta que nós estamos colhendo, acompanhando, monitorando, analisando e apostamos na ideia de usos que essa poderia ter para a qualificação do SUS.

(En)Cena – Há um estudo aprofundado nesse campo da comunicação (da internet) em relação ao SUS?

Ricardo Teixeira – Há uma questão que se coloca no plano das estratégias de mídia, das estratégias de comunicação em massa, que é o tipo de visibilidade que o SUS tem na mídia, principalmente na mídia de radiodifusão, de broadcasting, onde você tem uma instância central de onde parte a informação e se legitima pelo poder daquela empresa, sendo a televisão, o rádio, a mídia impressa, onde se expressaria inicialmente uma imagem dos problemas do SUS. Isto a partir das grandes dificuldades que são conhecidas, mas que acaba reproduzindo uma imagem deteriorada da política pública de saúde, onde acaba se constituindo aquela ideia de que o Sistema Único de Saúde não vai dar certo, de que é do governo, de que é direcionado aos pobres, criando um conjunto de preconceitos que vai se constituindo em torno da política pública por características desse tipo de mídia, do que ela considera relevante, reproduzindo uma imagem desqualificada da política pública.

(En)Cena – A Internet gera várias possibilidades, até mesmo de romper a fronteira entre a mídia convencional e o usuário…

Ricardo Teixeira – Então, em primeiro lugar, e isso é uma virtude dos novos meios de comunicação em rede eletrônica, onde então o jogo que fixa claramente quem é o emissor e quem é o receptor se embaralha, onde o receptor se torna o emissor de informação. Eu poderia dizer que a RHS tem sido um lócus importante de expressão de um SUS que dá certo, porque a grande convocação da Rede Humaniza SUS tem sido a de mostrar a sua cara, e o que tem sido feito para qualificar o SUS no cotidiano de trabalho, esse seria o primeiro papel muito importante, ou seja, criamos uma zona na web de informação onde você pode acessar outro tipo de informação a respeito do que se produz no cotidiano do SUS.

(En)Cena – Já houve alguma prática apresentada no SUS, que partiu de uma ideia apresentada no portal?

Ricardo Teixeira – Este seria um dos papéis dessa mídia, ao mostrar um SUS que dá certo. É uma de suas virtudes em potencial. Eu diria que não é a aposta principal, mas quando um trabalhador que atua em um determinado serviço, de maneira, às vezes isolada, desconectada, ele dá visibilidade ao que ele tem feito na Rede e ele recebe um retorno daquilo, no qual poderá ser um elogio, uma confirmação, reconhecimento da qualidade daquele trabalho, assim como também críticas, sugestões, associações de ideias suscitados a partir daquele experimento. Isso tem um efeito afetivo para o trabalhador.

(En)Cena – O que você vai relatar sobre esse Seminário Norte de Humanização? Vai ter alguma coisa sobre esse evento?

Ricardo Teixeira – Sim, já está tendo. Há dois dias que estou muito mergulhado nas atividades presenciais do Seminário, mas sei que já está sendo postado em tempo real o que está acontecendo aqui na RHS, e não só na rede, mas também nas outras redes sociais com as quais a RHS está conectada, facebook, twitter, sites de nossos parceiros, as redes eletrônicas. Uma postagem no espaço do nosso blog, do nosso site é imediatamente postada para as demais redes sociais.

(En)Cena – Como você percebe a parceria com o (En)Cena?

Ricardo Teixeira – Primeiramente, essa parceria se estabelece na própria web: se você entrar na Rede HumanizaSUS e ver entres os links de parceria dos sites, lá estará o (En)Cena e alguns outros sites, blogs. Acho importante dizer que a Rede Humaniza SUS tem cinco anos e, na época em que foi criada, esse tipo de rede, criando um espaço colaborativo, tipo rede social, ligada à questões do SUS, da defesa e organização de trabalho do SUS, era uma raridade. Hoje em dia, para nossa alegria, vemos que experiências similares se multiplicam, algumas em áreas mais específicas como a saúde mental, como o (En)Cena. Percebo essa parceria como uma sinergia de nossas forças e de nossa alegria de lutar por um mundo melhor.

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O Eu dividido – Três ou quatro apontamentos sobre a existência psicótica

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“A experiência e comportamento que recebem rótulo de Esquizofrenia é uma estratégia
especial que uma pessoa inventa para viver uma situação insuportável”

R.D. Laing

Nesse resumo sucinto discorro algumas das idéias do psiquiatra escocês Ronald D. Laing contidas no livro O Eu dividido (The Divided Self – 1960), a respeito da existência psicótica.

Ronald D. Laing foi, no decorrer da sua vida, bastante criticado por algumas correntes psiquiátricas, principalmente as mais clássicas. De fato, seus estudos diversificados, misturando misticismo, psicanálise e psicopatologia ganharam entoadas diferentes e, por vezes, contraditórias, mas por nenhum momento as críticas puderam retirar-lhe o mérito de ter abordado a psicose de maneira tão afinca e profunda. O existencialismo sartreano muito influenciou as concepções do psiquiatra. Nesse sentido, Laing dizia da psicose como uma tentativa do sujeito em significar a sua própria existência. Ou seja, a psicose em si seria um significado existencial.

Ferrenhamente contrário à linguagem psiquiátrica, Ronald D. Laing objetava tudo o que tinha a função de circunscrever o sujeito, embora ele mesmo tenha criado conceitos para explicar a sua maneira de enxergar a psicose (e o sofrimento, a solidão e o desespero embutidos nela).

Um dos primeiros conceitos apresentados por Laing (e talvez o fundamento de todos os outros) no inicio de seus estudos sobre a psicose é o conceito da Insegurança Ontológica. De acordo com Gabriel e Carvalho Teixeira (2007), a Insegurança Ontológica para Laing seria uma experiência irreal ou uma sensação de não estar vivo, o que conduziria o sujeito a uma preocupação central em sua auto-preservação (ao invés de uma preocupação com a auto-gratificação). Foi a partir desse conceito que o autor introduziu o termo “o eu-dividido”, se referindo à percepção fragmentada que o sujeito psicótico tem de si. Nessa percepção, o sujeito se questiona quanto à sua existência, à sua essência e à sua identidade.

Analisando alguns sinais e sintomas nosológicos da psicose junto aos conceitos introduzidos por Laing, é possível dizer da Insegurança Ontológica como crença mantenedora ou alimentadora do embotamento afetivo e da postura esquiva frente aos relacionamentos interpessoais, já que o psicótico vai se “trancando” dentro de si mesmo, deixando de ser “um para o outro” para ser “um para si”. A noção de ser desintegrado ou dividido, aproxima-se da noção de divórcio entre um eu falso, ou self falso, e um eu verdadeiro, que não se manifesta; fica guardado somente para o sujeito. Nesse eu (que é dividido), há um que é uma casca e pode ser deteriorado, enquanto há o outro intocável, impenetrável, inatingível e inacessível. A partir dessa conceituação Laing defendeu que não há propriedade para se falar de um psicótico quando não se é um. Para o psiquiatra a psicose enquanto agravamento ou doença seria nada mais do que a retirada da casca do falso self, o que comumente chamamos de surto, ou crise.

Na Insegurança Ontológica há três tipos de ansiedade vividas pelas pessoas ditas psicóticas. O primeiro tipo é o Engulfment ou absorção, que seria uma sensação constante de perda de identidade, onde a estratégia de preservação usada é o isolamento; o segundo tipo é aimplosão, que seria uma constante sensação de vazio, onde esse vazio é o próprio sujeito e a realidade é tida como algo perigoso capaz de tomar o lugar do vazio e, por fim, destruí-lo; e apetrificação ou despersonalização como terceiro tipo de ansiedade, seria o medo constante da perda da subjetividade. Frente a essas ansiedades, muitos dos sintomas psicóticos são, na verdade, estratégias protetoras contra a Insegurança Ontológica. Algumas estratégias parecem contraditórias, mas no fundo prezam por uma existência que é, a todo instante, ameaçada.

Em suma, Ronald D. Laing defendeu a psicose como uma maneira diferente do sujeito existir no mundo, propondo uma análise fenomenológica-existencial dos sintomas ditos irracionais ao invés de uma análise neurofisiológica do quadro psicótico. Nas obras posteriores ao “O Eu dividido”, estudou e discorreu a respeito dos fatores sistêmicos relativos à existência psicótica, como vínculos familiares e aspectos culturais (e por vezes místicos) entrelaçados à temática da loucura.

 

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18 de maio: Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Novos muros, velhos alicerces

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A maior missão dos dispositivos inventados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira sempre foi desconstruir o modelo manicomial. Mas quando falamos em desconstruir o manicômio, não falamos apenas em desconstruir os edifícios, mas, sobretudo, a mentalidade manicomial, ou o modo manicomial de compreender.

Isso quer dizer que, mais do que criar uma instituição em substituição à outra, o que se pretende é uma mudança de paradigma, uma mudança na maneira olhar as nossas loucuras ou doenças mentais, uma mudança na concepção de tratamento e cuidado, e a desconstrução de um princípio tradicional e clássico no tratamento das enfermidades mentais: de que é preciso isolar para tratar. E foi para isso que os manicômios criaram seus muros.

O dia 18 de Maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, nasceu no histórico Encontro dos Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru (SP), em 1987, e o lema escolhido para marcar e reafirmar o sentido de sua existência foi “Por uma sociedade sem manicômios”. O sentido dessa luta era, portanto, desconstruir o modelo manicomial, ou seja, desconstruir os muros.

Desde esta data histórica, muita coisa mudou no campo das Políticas de Saúde Mental. Grande parte dos manicômios foram fechados e os que restaram tiveram que reduzir significativamente seus leitos, além de serem obrigados a cumprir normas de humanização, atendimento e funcionamento, até que todos sejam desinventados gradativamente, como está previsto em lei. Desde esta época, também começaram as restrições quanto ao tempo de internação, nenhum paciente pode mais ser condenado a morar no hospital psiquiátrico, deve permanecer nele o menor tempo necessário, apenas o suficiente para se recuperar de um período de crise, sendo, a continuidade do tratamento, feita em serviços extra-hospitalares, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Além dos CAPS (CAPS álcool e drogas, CAPS infantis e CAPS 24 horas) outros dispositivos foram inventados, como as Residências Terapêuticas, para os egressos crônicos de hospitais psiquiátricos; os Centros de Convivência, para promover inserção social por meio de atividades de trabalho, cultura, educação, esporte e lazer; os Consultórios na Rua, para abordar a questão das drogas com a população de rua; e outros. Além disso foi criada a noção de rede assistencial, que prevê um tratamento que se sustente na diversificação de aparatos, instâncias e instituições, de saúde ou não, ligadas entre si por pontes e vias de acesso.

Mas a Reforma Psiquiátrica Brasileira enfrenta ainda alguns novos desafios. Primeiramente, precisamos citar o tema das drogas que tem trazido novamente à cena, um modelo de tratamento baseado no isolamento social e na restrição das liberdades. Mais uma vez temos sido tentados a criar muros, muros que separem, delimitem e isolem, a primeira vista em nome do tratamento, mas também e principalmente, em nome daquilo que tememos, do que não compreendemos, não aceitamos e não sabemos como lidar. Fizemos assim com os doentes mentais, criamos muros que nos separavam deles, para depois de muitas décadas entendermos que, na verdade, deveríamos ter criado redes e pontes. Sendo assim, precisamos apostar nas redes e nas pontes. Pontes que aproximam ao invés de afastar e redes que acolhem ao invés de espantar.

Outro grande desafio para os serviços de saúde mental na atualidade tem sido a demanda por psiquiatrização e medicalização do sofrimento cotidiano e dos nossos problemas relacionais. Vivemos na era da ditadura da felicidade, época em que qualquer mal-estar tem sido interpretado como doença. O excesso de diagnósticos psiquiátricos, o exagero e a pressa em medicar todos os nossos mal-estares, são os novos muros que estamos construindo para lidar com aquilo que nos incomoda.

A felicidade já foi uma utopia, uma busca, um enigma a ser decifrado. Hoje é uma obrigação. E a indústria farmacêutica tem feito sua parte ofertando drogas para todo tipo de sintoma. Existem drogas para acelerar e desacelerar, para estimular e para relaxar, para dormir e para manter desperto, para desangustiar, para concentrar, para alegrar, para tirar nossos medos… Hoje, todo tipo de mal-estar cabe num diagnóstico, e para cada diagnóstico, temos um medicamento. A Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial precisam se ater a esse novo desafio, afinal, precisamos escutar, acolher e compreender nossos mal-estares, e não apenas criar muros químicos que nos separem deles.

Novos muros, velhos alicerces. Nesse 18 de maio, estamos diante de um novo desafio ético: desconstruir diagnósticos e derrubar os muros químicos, a fim de despsiquiatrizar e rehumanizar nossa infelicidade cotidiana. Precisamos pensar se queremos silenciar, anestesiar e criar muros químicos que contenham todos os conflitos, angústias, medos, dores e tristezas que sentiremos ao longo da vida.

Freud dizia que não existe cura para o desamparo humano, ou seja, em se tratando da espécie humana haverá sempre dores, sofrimentos e angústias das quais não poderemos escapar completamente. Mas se por um lado não podemos erradicar completamente esse desamparo, a psicanálise dirá que podemos administrá-lo em favor da coletividade, do bem-estar comum. Podemos promover a gestão do desamparo e do mal-estar por meio da nossa ligação com os outros, pelos laços sociais, ou seja, pelas redes e pontes que seremos capazes de criar, manter e fortalecer.

Então, para finalizar, coloco aqui uma questão levantada nos idos dos anos 70 e 80, mas que ainda é atualíssima. Queremos construir muros ou optaremos por construir pontes e redes? Mais uma vez, nesse 18 de maio, a escolha é nossa.


Nota: texto originalmente publicado em:http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com.br/2013/05/18-de-maio-dia-nacional-de-luta.html

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