A ligação: um jogo de passado, presente e futuro

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A ligação (2020), estreia da Netflix deste ano, figura no Top 10 dos assistidos e por uma boa razão. Seo-yeon, uma das personagens principais, retorna para a casa que morou quando criança e recebe ligações estranhas de uma desconhecida pedindo por ajuda. Após descobrir o diário da mulher que lhe ligou numa espécie de porão da residência, acaba por descobrir que as duas estão na mesma casa, só que em tempos diferentes.

O jogo de passado e futuro influenciando um ao outro é uma das marcas do filme, que lançam as duas personagens, Seo-yeon e Oh Young-sook, em uma narrativa muito interessante sobre doença mental, luto e até onde as pessoas vão em nome dos próprios interesses. Seo-yeon e Oh Young-sook se tornam muito próximas através das ligações cotidianas, contando sobre suas famílias, como vivem e as diferenças existentes em cada época.

Foto: filme A ligação (2020)

Assim, ficamos cientes de que Seo-yeon mora sozinha, sua mãe está internada em um hospital em quadro aparentemente crítico e que seu pai morreu em um acidente doméstico quando ela era criança. Sobre Oh Young-sook, de que vive com sua madrasta que a tortura constantemente pois acredita que ela esteja possuída por demônios, além de enclausurá-la dentro de casa e manter sua rotina rigidamente.

Em dado momento, após Oh Young-sook encontrar no passado Seo-yeon ainda criança, procuram realizar a tentativa de evitar o acidente ocorrido com o pai de Seo-yeon e assim, consequentemente, evitar sua morte. A experiência tem sucesso e numa cena que lembra Matrix (1999) ou A Origem (2010), o presente de Seo-yeon é completamente alterado, mediante a mudança no passado.

Foto: filme A ligação (2020)

Nesse presente, seu pai está vivo e sua mãe não está doente, alterando também outras questões de ambiente, como a casa que vivem, como se comportam e outros. A relação das duas é equilibrada até o momento que Oh Young-sook percebe que a amiga está ignorando-a em nome de ter momentos com a família e sua madrasta descobrir que ela está falando com alguém ao telefone. Após mais uma sessão de tortura, Oh Young-sook retorna para a amiga, que lhe informa que ela será assassinada pela madrasta num ritual de exorcismo para “cura da doença mental”. Depois disso, fica claro que o futuro tem o benefício do conhecimento, pois tudo o que já passou foi documentado de alguma forma e pode ser utilizado pelas duas.

Foto: filme A ligação (2020)

Depois do assassinato e de finalmente se ver livre, Oh Young-sook sai às ruas, faz compras e experienta o que já desejava: um pouco de vida “normal”. A personagem não aparenta remorso em nenhum momento pelo o que fez, nem sequer no assassinato seguinte, quando mata um fazendeiro que a visita, por ter encontrado o corpo de sua madrasta na geladeira.

Quando observada a ausência repentina do fazendeiro que era amigo de sua família, Seo-yeon descobre através de relatórios policiais que Oh Young-sook foi acusada pelo homicídio das duas pessoas e condenada à prisão perpétua. A partir de então, a trama muda de direção e o que era amizade se torna hostilidade e ameaças, pois Oh Young-sook deseja saber qual prova a incriminou e assim evitar de ser presa, informação da qual apenas Seo-yeon pode lhe dar.

Na sequência, a história se dedica ao jogo de passado-futuro entre as duas personagens, com muitas reviravoltas, mortes e violência envolvida no processo. Até onde ir para evitar a morte de um familiar? Como processar o luto, quando ele ocorre mais de uma vez pela mesma pessoa? Quais os limites de comportamento em pessoas diagnosticadas com transtornos mentais? O filme é muito bem produzido e apesar da impossibilidade da trama, é interessante pensar o que faríamos se pudéssemos alterar nosso passado, presente e futuro. Ao final, resta a impressão de confusão, ao percebermos que as influências entre os tempos eram maiores do que inicialmente inferido.

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Título Original: Call
Ano de produção: 2020
Dirigido por: Lee Chung-hyun
Gênero: Suspense, Terror
Países de Origem: Coreia do Sul
Duração: 112 minutos

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Em “Vivarium” o micro e o macrocósmico se encontram na prisão da família e do casamento

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Vivarium é um filme simbolicamente ambicioso por tentar criar uma visão cosmológica integrada: macro e micro se encontram naquele subúrbio que mais parece lembrar a cidade cenográfica de Seaheaven do clássico filme gnóstico Show de Truman.

“Para onde foi todo mundo?”, pergunta-se um jovem casal que foi conhecer a casa perfeita para comprar em um subúrbio de classe média. Mas que se veem de repente presos em um misterioso labirinto em loop de casas idênticas, estranhamente hiper-reais, com suas cercas brancas, grama verde e um céu azul com nuvens perfeitas que lembram os quadros surrealistas de René Magritte. Será que estão presos em uma armadilha hiperdimensional? Uma metáfora da prisão do casamento e da família no qual o micro e o macrocósmico se encontram? Esse é o filme “Vivarium” (2019), um curioso híbrido de ficção científica e terror, co-produção belga-irlandesa-dinamarquesa. Um filme ambicioso que pretende explorar um grande arco simbólico que começa com o Paradoxo de Fermi na Cosmologia (“para onde foi todo mundo?”) até chegar as alusões ao pintor Magritte, ao misticismo do número nove e da cor verde que domina aquele subúrbio – a síntese do sonho da classe média americana. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.

Primeiro físico a controlar a reação nuclear, Enrico Fermi observou que existia uma contradição entre o crescente conhecimento do Universo e a ausência de contato com qualquer forma de vida existente: com bilhões de outras galáxias lá fora, muitas delas bilhões de anos mais velhas que a nossa, pelo menos uma não poderia já ter entrado em contato conosco?

“Onde está todo mundo?”, indagava o físico. Isso ficou conhecido como “Paradoxo de Fermi”. Agora, imagine um filme que construa um arco simbólico que ligue esse paradoxo com a natureza sufocante do casamento em um típico subúrbio de classe média.

Temos então o filme Vivarium (2019), dirigido e escrito por Lorcan Finnegan, um curioso híbrido de ficção científica e terror – um jovem casal está à procura da casa perfeita para iniciar uma vida a dois. Um excêntrico corretor de imóveis leva o casal para conhecer um lançamento suburbano de um conjunto de casas que mais parece uma obra do pintor surrealista belga Renné Magritte. Essa alusão será importante na compreensão do filme.

Inadvertidamente, o casal se encontrará prisioneiro em um misterioso labirinto de ruas e casas idênticas que sempre parecem se fechar em loop – repentinamente o casal se descobre prisioneiro em alguma dimensão fora do tempo e espaço, na mais típica atmosfera da série clássica Além da Imaginação.

O primeiro mistério: são dezenas e dezenas de sobrados, idênticos a se perder no horizonte. Porém, todos vazios e trancados. Aparentemente, só eles ocupam uma casa (a número nove, outra alusão simbólica). Sob um perfeito céu azul ensolarado, salpicado de nuvens ao estilo das obras de Magritte. E nunca chove. Só eles parecem ocupar aquele vasto condomínio de labirintos infinitos. Onde está todo mundo?

Também parece que aquela imensa estrutura foi criada especialmente para eles. Condenados a criar um bebê que surge do nada e viver todos os tropos e clichês da típica vida conjugal de classe média numa atmosfera claustrofóbica e sombria. Contraditoriamente, num cenário perfeito. Hiperrealisticamente perfeito em um subúrbio moderno pré-fabricado em dry wall.

  A casa dos sonhos pode ser uma armadilha. A vida conjugal perfeita pode ser a prisão de uma rotina entediante e opressiva.

Como veremos, Vivarium é um filme simbolicamente ambicioso por tentar criar uma visão cosmológica integrada: macro e micro se encontram naquele subúrbio que mais parece lembrar a cidade cenográfica de Seaheaven do clássico filme gnóstico Show de Truman.

Assim como o Paradoxo de Fermi seria uma das evidências de que o Universo seria uma gigantesca simulação computacional para aprisionar a humanidade, da mesma forma a sociedade e, principalmente, sua célula central (a família e o modelo único de vida conjugal) seria um constructo de realidade para nos manter contidos e operacionais em um sistema.

Quem criou tudo isso? Quem nos observa, atentos em nos manter vivos dentro desse horizonte de eventos que chamamos de realidade? Esse é o mistério que permeia Virarium e aguça a curiosidade do espectador.

Fonte: encurtador.com.br/yGNOZ

O Filme

O tema central de Vivarium é o típico subúrbio de classe média, símbolo do sonho americano de conformismo e alienação por trás de cercas brancas e gramados bem cuidados. Filmes como Blue Velvet, de David Lynch (uma orelha cortada achada no gramado é a ponta de um submundo muito além da normalidade) e Beleza Americana, de Sam Mendes (a descoberta do erotismo libertador para além da mediocridade cotidiana) são exemplos de narrativas de como necessidade s humanas podem ser suprimidas em relacionamentos coagulados.

Vivarium vai mais uma vez revisitar esse tema acompanhando o casal Tom (Jesse Eisenberg) e Gemma (Imogen Poots). Um casal comum: ela trabalha como professora em uma escola infantil – ama seu trabalho e ama crianças. Tom é um jardineiro que dirige para o seu trabalho, carregando suas ferramentas, no VW da mãe, embora planeje comprar um caminhão adequado.

Para eles, a vida e o trabalho ainda são divertidos nessa fase – nada ainda parece que foi oprimido pelo realismo das obrigações.

Até que um dia, depois da aula, Gemma encontra uma garotinha da sua turma muito triste: encontrou na grama um filhote de passarinho morto – parece que foi desalojado de seu ninho por um cuco predador (cuja ação predadora cruel vimos nos créditos iniciais). Esse início parece querer nos mostrar estranhos presságios para o que veremos adiante.

Fonte: encurtador.com.br/bBRTW

Pensando em morarem juntos para iniciar uma nova vida, eles encontram num estande de vendas um estranho agente imobiliário que os convence a visitar um lançamento chamado Yonder.

Chegando lá, vemos que Finnegan cria uma paisagem obviamente digitalizada de casas quadradas e idênticas pintadas de verde, criando uma pura hiper-realidade desorientadora. Visitando uma casa mobiliada, percebem que o corretor desapareceu… Bom, então vamos embora!, decidem.

Só que eles não conseguem mais encontrar a saída daquele labirinto de casas idênticas. Tom roda com o seu VW até a noite cair e a gasolina acabar. Eles apenas andaram em círculos, sempre parando em frente a casa número 9, na qual parecem terem sido condenados a morar para sempre.

Estranhas caixas de papelão surgem diariamente do nada na porta da casa, com alimentos congelados ou acondicionados à vácuo.

Até que um dia, chega mais uma caixa de papelão… dessa vez com um bebê com um bilhete: “Cuidem dele, para depois liberá-lo”.

A partir desse ponto, a dinâmica de Tom e Gemma naquela casa, cuidando do bebê, começa a assumir todas as situações e clichês do casamento: ela, cuidando do “pequeno mutante” (uma criança que cresce mais rapidamente do que o normal, tenta imitar as palavras e comportamentos dos “pais” e dá um grito ensurdecedor quando está com fome e reivindica comida) e Tom cavando obsessivamente um buraco no jardim para tentar encontrar uma saída daquele mundo.

Fonte: encurtador.com.br/cBCE0

Quando o micro e o macrocósmico se encontram – Alerta de spoilers à frente

É a metáfora da vida conjugal e das reponsabilidades da classe média: ela ocupada com o “filho” e ele no seu “trabalho” diário. Cavando, cada vez mais ansioso, estressado, desenvolvendo um comportamento obsessivo-compulsivo, enquanto vai desenvolvendo um problema respiratório “ocupacional”. É a própria condição profissional-existencial de muita gente insatisfeita e infeliz num emprego apenas para dar a segurança familiar da subsistência.

Literalmente cavará a própria sepultura para depois o garoto, agora adulto, falar para a “mãe” à beira da morte: “esse é o papel da mãe… cuidar do filho para o mundo, até liberá-lo”.

É a própria metáfora da “síndrome do ninho vazio” – depois que os filhos crescem e vão embora, simbolicamente os pais morrem.

A narrativa de Vivarium fundamenta-se em três simbolismos para fazer essa convergência gnóstica entre o micro e o macrocósmico: as sucessivas alusões ao surrealista René Magritte, a cor verde e o número 9.

As estranhas nuvens que emolduram a paisagem hiper-real (“elas não têm forma de nada, apenas de nuvens”, diz a certa altura Gemma) são uma óbvia referência à série de pinturas de Magritte chamada “Império das Luzes” (1947-1965). Magritte foi o mestre dos paradoxos visuais – embora o cotidiano possa dar a impressão de normalidade, existem anomalias em toda parte: uma esquisitice terrena que está por trás do dia-a-dia, e que deveria ser revelado pelo surrealismo.

Fonte: encurtador.com.br/GLN37

Esse é o propósito de Finnegan: o estranho lugar que Tom e Gemma ficaram prisioneiros por algum propósito inescrutável de um demiurgo alienígena, apenas revela o absurdo das relações conjugais institucionalizada pela ordem familiar que congelam e suprimem as necessidades humanas.

Ao lado do azul daquele céu surrealista, a cor verde é onipresente: gramados paredes das casas e ambiente. O verde está associado a algo quintessencial, a uma transmutação química que pode resultar tanto na vida quanto no envenenamento: de um lado a fotossíntese, ar e natureza; e do outro, processos tóxicos e veneno. Subúrbios de classe média são ambientes tóxicos e sufocantes.

E o número 9. Desde a música “Revolution 9” dos Beatles, esse número está associado na cultura pop a “loops” (da mesma forma como a música dos Beatles foi construída na engenharia de som), passando pelo filme Número 9 (The Nines, 2007) ou a animação 9 – A Salvação (2009).

Pela simbologia mística, o número 9 representa finais de ciclos – é o número de meses da gestação, por isso carregando o simbolismo do esforço e sinalizando o fim de um processo. Representa a jornada completa: seu início e término. Assim que termina, tem-se um novo início a partir do número 1.

Assim como o loop representado pelo final do filme no qual o garoto que cresceu compulsoriamente criado por Tom e Gemma assume o lugar do velho corretor de imóveis. Para levar mais jovens casais para a armadilha cósmica do subúrbio Yonder.

Aquele lugar que será a sua última casa, assim como o seu casamento, a família e o emprego.

FICHA TÉCNICA:

VIVARIUM

Direção: Lorcan Finnegan

Elenco: Imogen Poots, Jesse Eisenberg, Senan Jennings, Eanna Hardwicke

Ano: 2019

País: Bélgica, Dinamarca, Irlanda

Gênero: Ficção Científica/Mistério

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Como envenenar psiquicamente um povo no filme “Os Demônios”

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“Caça às bruxas”, às “apostasias” e “exorcismos” eram meros álibis para ocultar perante o povo os interesses políticos da Igreja que direcionavam o xadrez político das monarquias absolutistas.

Fonte: encurtador.com.br/vzAQ2

“Os Demônios” (“The Devils”), de Ken Russel, é um filme tão blasfemo, obsceno e relevante hoje quanto foi em 1971. Um terror religioso épico e uma contundente crítica do abuso do poder político. Um filme sobre fatos históricos ocorrido no século XVII (um padre condenado à fogueira acusado de bruxaria), filmado no século XX, mas que continua atual no século XXI: os tribunais eclesiásticos da Inquisição foram muito mais do que produtos do fanatismo religioso. Foram instrumentos de “lawfare” para a dominação política da Igreja. Em “Os Demônios” a Inquisição é um instrumento de uma estratégia mais ampla que hoje chamamos de “Guerra Híbrida”: como envenenar psiquicamente uma cidade através da sua maior vulnerabilidade: um Convento de freiras dominadas pela histeria de massa é o pretexto para derrubar a liderança do padre Urbain Grandier, opositor à monarquia absolutista de Luís XIII e do Cardeal Richelieu.

Concebemos a Inquisição e a caça às bruxas na Idade Média como um fruto da ignorância e do fanatismo religioso. Até onde o obscurantismo religioso pode levar o homem à intolerância, guerras e violência.

Mas pouco se fala de como os tribunais eclesiásticos instituídos pela Igreja Católica a partir do século XIII foram deliberados instrumentos de lawfare– manobras jurídico-legais como substituto da guerra convencional visando objetivos políticos. O objetivo era combater a heresia religiosa – movimentos que na verdade foram reações à crescente corrupção moral do clero e a posse de riqueza extrema.

“Caça às bruxas”, às “apostasias” e “exorcismos” eram meros álibis para ocultar perante o povo os interesses políticos da Igreja que direcionavam o xadrez político das monarquias absolutistas. “Cuspir na cruz”, “blasfêmia”, “ações homossexuais”, “beijo indecente” entre outras figuras acusatórias nada mais eram do que instrumentos de lawfare: sob tortura, fazer o acusado confessar todas as acusações para justificar ações militares.

“Os Demônios” nos anos 1970

Baseado na história verídica de Urbain Grandier, padre católico que foi executado em 1634, sob acusações de bruxaria, o diretor Ken Russel produziu Os Demônios adaptado de uma peça de teatro de 1960 de John Whiting e do livro de Aldoux Huxley, “Os Demônios de Loudun”.

Com uma forte marca da revolução sexual dos anos 1970, o filme mistura iconografia religiosa com suntuosas imagens de orgias e profanação ultrajante de símbolos católicos, o que despertou a ira de grupos religiosos na época e a proibição da exibição em diversos países. Mesmo com a imposição da Warner Bros. de uma série de cortes como, por exemplo, na sequência do “estupro” de uma estátua de Jesus Cristo.

Para finalmente o filme ser esquecido com o sucesso do lançamento no mesmo ano de Laranja Mecânica, de Kubrick, pelo mesmo estúdio da Warner Bros.

Os Demônios foi promovido na época como um “terror religioso” (cuja violência gráfica e iconografia influenciaram filmes como O Exorcista), mas é um filme que dá a exata dimensão política dos atos de inquisição da Igreja: como o Cardeal Richelieu, primeiro ministro de Luis XIII, utilizou-se dos tribunais eclesiásticos para arquitetar o absolutismo na França e da liderança do país na Europa. E o seu alvo era a cidade progressista de Loudun, onde protestantes e católicos viviam em harmonia. Bem diferentes dos planos de Richelieu, que liderava uma sanguinária perseguição de protestantes como bode expiatório para a consolidação de um governo absolutista baseado a na aliança da Igreja e do Estado.

Fonte: encurtador.com.br/epvzS

Sob um discurso nacionalista, o cardeal pretendia botar abaixo o muro que cercava a cidade, cuja força era a liderança política e espiritual do padre Grandier. Por isso, ao invés de armas e soldados, Richelieu optou por aquilo que hoje chamaríamos de “guerra híbrida” – aproveitar-se dos pontos fracos daquela província (intrigas, luxúria, avareza, sacrilégios, medo e ganância) para envenenar psiquicamente o povo. E, finalmente, conseguir impor um tribunal da Inquisição na cidade para executar seu principal líder: Urbain Grandier.

Ao lado do massacre dos gnósticos Cátaros, no século XII no sul da França, a morte de Grandier na fogueira foi uma das ações políticas mais infames da História.

O Filme

O filme é estrelado por Oliver Reed como o padre Grandier, com o típico sex appeal dos anos 1970 – espessa cabeleira e um farto bigode. Sua beleza e eloquência nos discursos inspira admiração em todas as jovens da cidade. Mas principalmente as jovens freira no claustro do Convento Ursuline e, em particular, a líder: a corcunda irmã Jeanne (Vanessa Redgrave). Ela alimenta eróticas fantasias com o padre, enquanto se masturba secretamente pelos cantos. Corroída pelo complexo da sua deformação física, culpa e luxúria.

Porém, essa mistura de poder e sedução inebria Grandier que peca principalmente pela falta de cautela: engravida a filha de um administrador da cidade, enquanto expulsa dois “médicos” com seus métodos primitivos para combater a peste negra que assola a região – além de hemorragias controladas, também picadas de vespas nas feridas dos doentes agonizantes.

Fonte: encurtador.com.br/puQVX

Logo nas cenas iniciais, Os Demônios dá uma amostra o tom de loucura que Ken Russel dará à narrativa: o rei Luís XIII (Graham Armitage) entra em um palco como uma Vênus de Milo travesti, enquanto o Cardeal Richelieu (Christopher Logue) boceja entediado na plateia. Para mais tarde, o mesmo Luís XIII, desta vez com um enorme e cômico chapéu cowboy branco, fazer tiro ao alvo, no jardim do Palácio, com hereges protestantes fantasiados de pássaros negros – “bye, bye blackbird!”, gargalha o rei enquanto acerta mortalmente mais um “herege” …

A loucura se estende ao Convento de Ursuline, decorado inteiramente em um branco modernista que lembra tanto a estética dos filmes de Kubrick, quanto a atmosfera de um hospital psiquiátrico.

Irmã Jeanne é possuída por ciúme raivoso ao descobrir que Grandier está apaixonado e se casa com a jovem Madeleine (Gemma Jones), uma das candidatas a se tornar mais uma freira do Convento.

Esse será o ponto fraco que será explorado pelo Barão De Laubardemont (Dudley Sutton), enviado pelo Cardeal para dar o golpe político em Grandier: a cada vez mais explícita lascívia e ciúmes de Irmã Jeanne será a evidência de possessão demoníaca – ela acusará Padre Grandier de bruxaria. Não demorará muito para uma histeria coletiva dominar o Convento e todas as freiras acusarem o padre, enquanto (atiçado pelo Barão) o Convento torna-se uma imensa orgia de profanação de estátuas, crucifixos e velas.

Fonte: encurtador.com.br/BILMV

O veneno e o golpe

Aliada à peste negra, o medo da bruxaria envenena psiquicamente toda a cidade. Para finalmente justificar a instauração de um tribunal eclesiástico, cuja missão de exorcismo (liderado por Padre Barre – Michael Gothard -, que mais parece um ator perdido do elenco do filme hippie Hair) é apenas o pretexto para finalmente derrubar os muros da cidade.

Em desespero, Padre Grandier alerta que será o fim da liberdade e da convivência pacífica entre protestantes e católicos. Enlouquecida pela atmosfera de caça às bruxas, o povo pouco se importa: quer apenas a justiça e a fogueira.

Fonte: encurtador.com.br/jKLPV

É assustadora a atualidade do golpe político vivido pela cidade de Loudun no século XVII. A Igreja já tinha inovado a propaganda política ao explorar as imagens, tanto nas catedrais (afrescos, estátuas e vitrais) como na arte (o Barroco) como forma de dominação das massas – que a Publicidade no século XX sofisticaria com os meios de comunicação eletrônicos.

Mas a Inquisição foi mais uma estratégia visionária de dominação política da Igreja. Sem exércitos ou guerras, criar uma sofisticada máquina de lawfarepara criar uma rede de confissões e delações alimentada pelo medo de hereges, demônios e bruxos.

Hoje, lawfare é mais uma etapa do que se define como “Guerra Híbrida”: como envenenar psiquicamente uma nação até leva-la à autodestruição.

FICHA TÉCNICA

Os Demônios

Título original: Les Démons
Direção: Ken Russel
Elenco: Vanessa Redgrave, Oliver Reed, Dudley Sutton, Michael Ghotard, Gemma Jones, Graham Armitage
Ano: 1971
País: Drama
Gênero: Drama/Thriller
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It – Uma Obra-Prima do Medo: o palhaço e os medos da infância

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“Crianças, a ficção é a verdade dentro da mentira, e a verdade desta ficção é bem simples: a magia existe.”
Stephen King

Stephen King e a obra-prima do medo

Este escritor é, talvez, a maior referência mundial no gênero terror/terror psicológico. Suas obras fazem jus ao sobrenome que soa tão assustador hoje em dia. Agora, imagine aos 19 anos, quando começou sua carreira como autor. Inspirado em obras como Hobbit, de J. R. R. Tolkien, o jovem King tentou criar o seu próprio universo, ser diferente, não se prender ao que havia lido e aprendido, por mais fascinante que fosse.

Uma curiosidade é que parte de suas histórias são ambientadas ou tem algum tipo de ligação com o estado do Maine, Estados Unidos, local onde nasceu. Por exemplo, as adaptações como Conta Comigo (1986), Cemitério Maldito (1989) e It: Uma Obra Prima do Medo (1990) se passam, de alguma forma, nesta localidade. Ou seja, não são apenas universos, mas ninhos, como se tudo tivesse acontecido com o próprio Stephen King.

O autor também tem a “mania” de criar personagens que o representam nos contos. Em “It”, o personagem William Denbrough (Jonathan Brandis) é um garoto que escreve contos de terror e sonha ser escritor. Já tinha feito isso com Gordie Lancaster (Wil Wheaton), em “Conta Comigo”. É uma forma mais enfática de mostrar a todos como funcionam seus pensamentos, como ele reagiu ou reagiria às situações que apresenta.

Curiosidades à parte, Stephen King é conhecido não só pelo talento em criar sensações de medo nos leitores/espectadores, mas por dar vida ou poder às coisas. Pennywise, por exemplo, é fruto da aversão coletiva instaurada após John Wayne Gacy ter assassinado mais de 30 crianças, em Chicago, se fantasiando de palhaço para atraí-las. E o filme aborda bem isso, já que “A coisa” também é um tipo de espírito maligno que se aproveita da inocência de indefesos.

Com o iminente lançamento do remake de It, King foi alvo de inúmeras críticas de palhaços profissionais. Para eles, o filme afeta o julgamento do público quanto à profissão, denegrindo suas imagens e, por consequência, influencia nos negócios. Em resposta, em seu perfil oficial no Twitter, o escritor disse:

Os palhaços estão com raiva de mim. Desculpem, a maioria (deles) são ótimos. Mas… crianças sempre tiveram medo de palhaços. Não matem os mensageiros pela mensagem

Stephen King.

Se pararmos para pensar, o autor tem razão. Em algum momento de nossas vidas sentimos medo de coisas ou seres de aparência amigável e que não deveriam representar um tipo de ameaça. Então, por que ainda sentimos medo?

O medo e as respostas emocionais condicionadas

Algo certamente curioso são os motivos pelos quais as pessoas sentem emoções, nesse caso o medo e aversão. Segundo Moreira e Medeiros (2007), os reflexos e respostas emocionais inatos são uma forma mínima de preparação para interagirmos com o ambiente que nos cerca, em relação de valor com a sobrevivência. As emoções não surgem “do nada”, precisam de um determinado contexto e interagem com nossa fisiologia, sendo em grande parte relações entre estímulos e respostas (comportamentos respondentes, ou seja, não controláveis).

Com os estudos Ivan Pavlov sobre os reflexos, atualmente sabe-se que os organismos podem aprender novos reflexos, e a isso se deu o nome Condicionamento Pavloviano. Desse modo, se os organismos podem aprender novos reflexos, também podem aprender a sentir emoções que não estavam em seu repertório comportamental quando nasceram (MOREIRA; MEDEIROS, 2007).

No filme, um grupo de amigos de infância é convidado a se reunir novamente em sua cidade natal, Derry, pelo único membro que permaneceu morando ali por todos esses anos, Mike Hanlon. Mike os convoca a cumprir uma promessa que fizeram quando crianças: regressar se “It” ou “A Coisa” voltasse a atacar. A partir desse ponto, o espectador passa a descobrir aos poucos quem é Pennywise e o que aconteceu em Derry.

Assim como ocorre naturalmente durante o desenvolvimento, Os Sete Sortudos (Lucky Seven originalmente) também aprenderam seus medos. O medo de cada um deles possuí características diferentes, que foram exploradas por Pennywise. Sobre o aprendizado do medo, no ano de 1920, James B. Watson (1878 – 1958) ficou conhecido com o caso do pequeno Albert e o rato. Watson tinha a intenção de verificar se o Condicionamento Pavloviano (aprendizagem de novos reflexos) teria utilidade no estudo de emoções.

Watson realizou seu experimento com Albert, um bebê de dez meses, para o qual foi apresentado um rato, do qual ele não apresentava medo (MOREIRA; MEDEIROS, 2007).  Emparelhou-se então o estímulo do rato com um barulho alto, o que fazia com que Albert se assustasse e chorasse. Após emparelhamentos sucessivos, somente a presença do rato fazia com que Albert tivesse medo. Com isso, Watson provou que as emoções podem ser aprendidas e modeladas (MOREIRA; MEDEIROS, 2007).

Cada flashback para a infância dos personagens mostra ataques “personalizados” que Pennywise realizou: como o medo que Richie tinha de Lobisomens, devido a um filme de terror; o ataque contra Eddie nos chuveiros, envolvendo sua vergonha quanto ao seu corpo e biotipo; e a experiência que Bill teve com a perda de seu irmão, relembrada no ataque que sofreu. O medo e a aversão tanto de Albert, quanto das crianças do filme, possuem a mesma natureza: Experiências condicionantes.

Coulrofobia: o medo de palhaços

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), a Coulrofobia (fobia de palhaços) se encaixa na categoria de Fobias Especificas nos Transtornos de Ansiedade. A característica essencial das fobias específicas é medo ou ansiedade acentuados acerca do objeto ou situação (estímulo fóbico), nesse caso, envolvendo figuras que representem palhaços. “O medo, ansiedade ou esquiva causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo” (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 197).

Seu desenvolvimento pode ser ocasionado geralmente por eventos traumáticos, observação de outras pessoas que passam por um evento traumático, um ataque de pânico inesperado na situação que virá a ser temida ou ainda por transmissão de informações (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Dessa maneira, a polêmica envolvendo tanto o filme de Tommy Lee Wallace, quanto o livro de King, se deu pelo aumento de casos de Coulrofobia, principalmente nos Estados Unidos.

“Eu sou todo pesadelo que você já teve.”

 

Essa série de elementos aversivos para os personagens também têm um apelo para o espectador (vale aqui uma menção à cena do bueiro, por exemplo), somado à aparência e comportamento de Pennywise, incomodam em um horror diferente do convencional. Ao invés dos sustos sucessivos comuns nos filmes do gênero, IT tem o poder de literalmente perturbar e afligir a quem assiste, algo que seria um ponto interessante a ser explorado no reboot de 2017, que infelizmente não contará com a empolgante atuação de Tim Curry.

REFERÊNCIAS:

MOREIRA, Márcio Borges; DE MEDEIROS, Carlos Augusto. Princípios básicos de análise do comportamento. Artmed Editora, 2009.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V). Trad. Márcia Inês Corrêa Nascimento et. al. 5. ed.  Artmed, 2014.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

IT – UMA OBRA-PRIMA DO MEDO

Diretor: Tommy Lee Wallace
Elenco: Tim Curry, Richard Thomas, Annette O’Toole, Jonathan Brandis, Brandon Crane;
País: EUA
Ano: 1990
Classificação: 16

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Westworld: um parque de diversão para adultos

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Imagine só um lugar onde você pudesse fazer tudo o que quisesse e no qual fosse possível dar vazão aos seus impulsos mais secretos, pecaminosos e violentos sem quaisquer riscos ou consequências? Você consegue imaginar um lugar assim? Você gostaria de ir para um lugar como esse? Feliz ou infelizmente tal lugar ainda não existe na vida real, onde diversões possuem riscos e, muitas vezes, efeitos colaterais. Mas na ficção ele se chama Westworld, um parque de diversão para adultos que é tema de uma série de mesmo nome lançada em outubro pelo canal HBO.

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Inspirada em um filme homônimo lançado em 1973 – no Brasil ele se chama  Westworld – Onde ninguém tem alma (um ótimo subtítulo!) – a série possui um argumento semelhante mas tenta (e consegue) ir além, muito além da produção que a inspirou, tanto no enredo quanto no visual. A história básica de ambos é praticamente a mesma: em um parque voltado para adultos, especialmente para homens, androides com aparência humana atuam como anfitriões de “convidados” humanos que desejam viver romances e grandes aventuras no Velho Oeste – no filme original, além do Velho Oeste existem outros dois cenários: o mundo medieval e o mundo romano.

A grande questão tanto do filme quanto da série é que os androides são tão incrivelmente semelhantes aos seres humanos, que é praticamente impossível distingui-los – Westworld se configura, neste sentido, como um imenso Teste de Turing (na verdade, os androides são tão reais que seria mais correto dizer que o parque venceu o Teste de Turing).

Uma diferença crucial, no entanto, é que somente anfitriões podem se “ferir” e “morrer” – na realidade, nenhum é de fato ferido ou morto, pois são máquinas e não seres vivos, apenas o parecem sê-lo; os convidados estão, pelo menos em um primeiro momento, protegidos (o filme de 1973 deixa claro que os revólveres possuem sensores que impedem anfitriões e convidados de atirarem em convidados, mas não parece haver qualquer impedimento para que convidados firam ou matem convidados com outras armas; já a série, pelo menos até onde assisti, não deixa claro se anfitriões podem de fato ferir convidados com socos ou facas, por exemplo, ou se convidados podem atirar em convidados).

De fato há uma grande preocupação dos administradores do parque com a segurança dos convidados. No filme há uma cena em que uma cobra robótica morde um visitante, o que deixa a equipe transtornada. Um dos administradores então afirma ser “imperdoável ferir um hóspede”; e complementa: “Se não pudermos garantir a segurança dos hóspedes teremos sérios problemas”. A preocupação é legítima. Se os convidados pagam caro para ir a este parque (o filme fala em U$1000,00 por dia), o mínimo que esperam é que voltem inteiros da experiência.

Mas se a expectativa dos administradores diz respeito, dentre muitíssimas outras coisas, à segurança dos convidados, as expectativas destes vão muito além. O que eles esperam é não só voltarem vivos, mas também e principalmente viverem experiências intensas de sexo e violência que não podem colocar em prática na vida real com pessoas reais. Em Westworld tudo é permitido. Se quiserem roubar, podem; se quiserem matar, podem; se quiserem estuprar, podem.

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Fonte: http://migre.me/vyfnp

Os convidados – majoritariamente homens – podem tudo. Como bem afirma Robert Ford, criador e administrador de Westworld na série, “os convidados gostam de poder. Como não podem tê-lo lá fora, eles vem aqui”. Os anfitriões foram criados – embora não o saibam – justamente para atender, entreter e satisfazer os convidados. Um dos protagonistas do filme afirma, nesse sentido, que “essas máquinas são servas do homem”. Pois é disto que se trata: de um exercício de poder, de dominação, de soberania e de masculinidade (de fato não há ambiente mais masculinizado e viril do que o Velho Oeste do parque).

Em Westworld os convidados são deuses que tudo podem. Lá, ao contrário da vida real, eles não estão submetidos a regras, a leis, a tradições, a rotinas e a constrangimentos de qualquer tipo. Lá eles podem ser e fazer o que quiserem, quando quiserem e da forma como quiserem. Como afirma Ford para sua equipe, os convidados “não querem histórias que lhes digam quem são. Eles já sabem quem são. Eles vem porque querem vislumbrar quem poderiam ser”. É possível ver nesta fala de Ford que um dos objetivos do parque é propiciar uma experiência de autoconhecimento para seus clientes.

Mas para além disso, a ideia central é que consigam colocar em prática, pelo menos no tempo em que estiverem no parque, tudo aquilo que não conseguem fazer no mundo real. Se na vida cotidiana, não conseguem ou não podem se aproximar de certas mulheres, lá todas estão à sua inteira disposição; elas foram concebidas justamente para atender aos desejos dos homens – e com uma “vantagem”: elas não se lembrarão de nada no dia seguinte, aconteça o que acontecer.

Se na rotina do dia-a-dia não convém esmurrar e muito menos matar as pessoas que lhe incomodam, lá isto é permitido e mesmo estimulado. Foi contrariado, questionado ou ironizado por alguém? Então atire! E pode atirar à vontade, pois no dia seguinte todos os anfitriões estarão novos em folha, prontos para serem mais uma vez alvejados por tiros. Quer roubar um banco e ainda sequestrar e estuprar a filha do banqueiro? Pode fazer sem medo, pois em Westworld você não será punido e não haverão consequências reais. Lá não há leis, não há moral, não há restrições. Lá, ao contrário do que ocorre na vida real, todos os convidados possuem total ou, pelo menos, grande controle do rumo dos acontecimentos. Eles sabem que tudo terminará bem e que eles serão, pelo menos por um instante, protagonistas e heróis de alguma história grandiosa. Lá eles são especiais.

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Fonte: http://migre.me/vyfpW

De uma forma geral, o filme e a série possuem uma visão bastante negativa (ou será realista?) do ser humano. Liberto das amarras da sociedade, o homem livre é um ser puramente sexual e violento, parece nos dizer Westworld. E talvez seja realmente assim. Em sua clássica obra O Mal-estar na civilização, Freud argumentou justamente nesta direção. Segundo ele, viver em sociedade implica necessariamente na repressão e sublimação de grande parte de nossos impulsos sexuais e agressivos, o que traz como consequência  uma permanente e inevitável sensação de mal estar.

Em sociedade não conseguimos e provavelmente nunca conseguiremos nos sentir plenamente satisfeitos. Viveremos eternamente frustrados e incompletos, sempre desejando aquilo que não temos e nem podemos ter. E talvez por isto todos ou muitos de nós nutramos internamente um enorme desejo de liberdade, um anseio permanente de nos libertarmos de tudo e de todos para que possamos viver e ser e fazer o que bem entendermos. Talvez por isso também nos regozijemos com obras de arte ou jogos (e Westworld é, em sua essência, um jogo) que permitem que vivamos experiências radicais e perigosas em ambientes controlados e seguros.

É como se ao assistirmos um filme de terror, por exemplo, pudéssemos dar vazão aos nossos medos mais profundos sem que de fato sejamos afetados. Como afirma um criador de jogos de terror realistas no episódio Playtest da série Black Mirror, “sempre gostei de fazer o jogador pular. Assustado. Se assustar e pular. Depois você se sente bem. Fica radiante. Por que? Por causa da adrenalina? Sim. Mas principalmente por ainda estar vivo. Você encarou seus maiores medos em um ambiente seguro. É uma libertação do medo. Você se liberta”. O objetivo de Westworld é semelhante: permitir ao convidado vivenciar experiências radicais em um ambiente controlado e seguro e possibilitar, com isso, que ele se sinta livre, leve e solto.

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Fonte: http://migre.me/vyftO

No entanto, uma importante lição dos filmes de ficção científica é que nada é totalmente controlado e seguro, especialmente aquilo que é criado pelo homem. Desde a publicação do livro Frankenstein em 1818, esta ideia de que artefatos criados pelo homem podem sair do controle e se voltar contra o próprio homem, é repetida continuamente em inúmeras obras de arte. Pense por exemplo nos filmes Jurassic Park, Blade Runner, A mosca, O Exterminador do futuro, Inteligência artificial, Eu robô, O planeta dos macacos – A origem, Ex Machina, Transcendente, dentre muitos outros. Embora estas obras sejam muito diferentes entre si, todas compartilham da mesma premissa: quando o homem resolve bancar Deus e criar ou modificar a vida, inevitavelmente sua obra sairá do controle e ele acabará por pagar um alto preço por sua ousadia. Westworld não escapa desta premissa.

No filme de 1973 a situação começa a sair o controle quando uma cobra morde um convidado. A partir daí tudo vira um completo caos e os anfitriões acabam por matar todos os convidados, à exceção do protagonista. Já na série, o desenrolar do descontrole ocorre de uma forma mais lenta. Os anfitriões aos poucos começam a demonstrar comportamentos não-programados e a apresentar memórias de antigas atualizações.

Até o último episódio que assisti, a situação ainda não saiu totalmente do controle mas já dá para imaginar que isso ocorrerá em breve. E isto nos traz de volta à questão de se realmente é possível conceber um ambiente totalmente controlado e seguro. A resposta de Westworld e de toda uma tradição de filmes e livros de ficção científica é clara: não, o homem nunca terá total controle, nem do próprio destino e nem do destino daquilo que cria. As criações humanas serão sempre imperfeitas e incontroláveis, à imagem e semelhança de seus criadores.

Observação: eu acabei esquecendo de mencionar, mas as enormes semelhanças entre Jurassic Park e Westworld não são simplesmente mera coincidência. As histórias de ambos foram criadas pela mesma pessoa: Michael Crichton, que é autor do livro original e do roteiro de Jurassic Park assim como do roteiro do filme Westworld, que inspirou a série. O canal College Humor fez uma compilação das incríveis semelhanças entre as duas obras – veja aqui.

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“Sexta-Feira 13” e as instâncias da personalidade em Freud

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Com todo, el grado em que este trabajo de cámara fuerza La identificación del espectador com el asesino sigue siendo uma cuestión abierta a debate.
Paul Duncan

Em 9 de maio de 1980, estreou nas salas de cinema americanas uma das mais prolíficas e improváveis séries de terror da história do cinema: Sexta-feira 13 (Friday the 13th). A história do assassino que persegue jovens em um acampamento aterrorizou multidões e lucrou com o medo: o primeiro longa custou míseros 500 mil dólares e teve o saldo final de cerca de 40 milhões.

No lado oposto, a crítica especializada da época nunca entendeu o desejo do público de ver e participar de uma chacina – por que ao contrário dos antecessores do gênero, em Sexta-feira 13 – e seus congêneres – o expectador observa tudo a partir da perspectiva do serial killer, com todos os detalhes sórdidos: o voyeurismo, a perseguição, o acuamento para, por fim, o assassinato. Logo, o público passou de mero expectador para cúmplice na história. Para Jonathan Penner

[…] no existe una respeuesta fácil al interrogante de por qué las películas gore gozan de tanta popularidad. […] lo que no puede negarse es que estas películas atraen a um público muy diverso em momentos muy distintos y por razones diferentes, y que continuarán generando acalorados debates em hogares, aulas y tribunales (JONATHAN PENNER, p. 26, 2008).

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No total, em três décadas, temos doze filmes acompanhando a saga do assassino mascarado e suas brutais e criativas formas de matar – que só as mentes sem limites dos roteiristas de Hollywood são capazes de conceber. O último capítulo, lançado em 2007, arrecadou, para surpresa de muitos, quase cem milhões de dólares ao redor do mundo. Feito invejável para uma franquia que consiste basicamente em jovens, drogas, sexo e morte. Mas o que há de tão especial nesse produto que se tornou objeto de culto? Porque as massas ainda respondem a essa experiência de encontrar a representação de um bicho-papão e sentir medo e terror associados à punição de comportamentos considerados subversivos na sociedade ocidental? Acredito que, literalmente, Freud explica!

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O Id, o Ego e o Superego – Juventude, a garota final e Jason

Na teoria psicanalítica, Freud desenvolveu uma topografia do aparelho psíquico necessária para estruturar e explanar os conteúdos mentais e sua atuação e dinâmica na personalidade do homem. O primeiro sistema, segundo Talaferro, consistiu em dividir a psique em três planos delimitados

[…] Deve-se considerar que são forças, investimentos energéticos que se deslocam de certa forma, que têm um tipo de vibração específico e que vão todas estruturar os três sistemas que Freud denominou e dividiu topograficamente em Inconsciente, Pré-consciente e Consciente, cada um deles com características determinadas (TALAFERRO, 1996, p. 38).

Mas o que nos importa aqui é sua segunda teoria, que trouxe a tona as três instâncias da psique: o id, o ego e o supergo.  A instauração dessa nova perspectiva, segundo Laplanche e Pontalis (2001, p 125) trouxe a possibilidade de novas orientações, ampliando a base psicanalítica da análise além do inconsciente, voltada para a análise do ego e dos mecanismos de defesa do superego. Essa dinâmica existente entre as três instâncias pode ser, analogamente, transportado para o universo presente nos dois primeiros filmes da série Sexta-feira 13; assim, talvez a psicanálise consiga explicar porque filmes do gênero até hoje atraem tanta audiência.

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O Id ou a geração “Sexo, Drogas e Rock & Roll”

O acampamento Cristal Lake é o local onde ocorrem os massacres de praticamente todos os filmes. E é bem apropriado: ele se restringe a algumas casas construídas a beira de um lago no meio da floresta para receber turistas e jovens nas férias. Essa peculiar característica será destrinchada em um artigo posterior, mas para facilitar a visualização, podemos identificar todo o cenário bucólico/selvagem, presente nas produções do gênero, como um reservatório de lembranças e impulsos recalcados ou latentes que encontrarão meios de vir à tona, geralmente, da maneira violenta. Mas para isso, o conteúdo precisa encontrar o espaço perfeito para agir, e a inserção de jovens sendo vigiados por outros jovens, sem qualquer interferência adulta, é a maneira perfeita para que o ID coloque em prática todas as suas vontades e desejos, em teoria, sem receios de repreensão ou punições. Para Zimerman

Do ponto de vista topográfico (…) o ID é fundamentalmente constituído pelas pulsões. Sob o ponto de vista econômico, o ID é a um só tempo um reservatório e uma fonte de energia psíquica. Do ponto de vista funcional, ele é regido pelo princípio do prazer  (ZIMERMAN, 1999, p. 83).

Aqui, então, teríamos a juventude como a representação perfeita das pulsões do Id. Para Zimerman a pulsão (1999 p. 117) é uma fonte de excitação que estimula o organismo a partir de necessidades vitais interiores e o impele a executar a descarga desta excitação para um determinado alvo. O corpo em Cristal Lake é sensorial, observamos em uma escala cada vez maior os jovens buscarem um direcionamento para suas necessidades. É visível que todos eles carregam uma grande carga de energia que precisa ser liberta. Para Laplanche e Póntalis (2001, p. 394) uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal; o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional. A chegada dos jovens ao acampamento leva a demonstrações eróticas subliminares, sua exposição não é apropriada, ainda, ao local e nem ao horário, pleno dia.

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Então temos o redirecionamento dessa energia, inicialmente, para o trabalho corporal, organização e manutenção do local, e, posteriormente, para objetos que cada vez mais dominam e desarmam as fortalezas do ego: comida, álcool e drogas. Tudo isso avançando em escala crescente enquanto o dia se esvai e a escuridão se aproxima. Esse investimento pulsional, para Zimerman (1999, p. 118) alude ao fato de que certa quantidade de energia psíquica esteja ligada a um objeto, tanto externo como ao seu representante interno, numa tentativa de reencontrar as experiências de satisfação que lhe estejam correlacionadas.

Assim, temos uma preparação do corpo, uma eroginização para na entrega total ocorrer a satisfação final. Mas existe um grande obstáculo perante o descarregamento indiscriminado da libido, que pode tanto intervir quanto proibir ou punir. O descontrole das pulsões do ID traz a tona aquele que será a lei e o juiz, a mãe e o pai, a instância psíquica que ditará os limites e as regras que devem ser seguidas para manter o equilíbrio em Cristal Lake, ou melhor, a homeostase psíquica.

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O Superego ou a sede de controle extremo de Jason Voorhees

Há aqui uma peculiaridade, que reforça o papel do vilão como uma faceta do Superego descrito por Freud: somente no segundo filme Jason ataca ferozmente os jovens em Cristal Lake. A “encarnação da morte” no primeiro capítulo é vivida por sua devotada e vingativa mãe, Pamela Voorhees (Betsy Palmer).

É coerente e, até, interessante analisarmos essa transferência de poderes de mãe para filho de acordo com a formação do superego (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p. 498): “(…) a criança, renunciando à satisfação dos seus desejos edipianos marcados de interdição, transforma o seu investimento nos pais em identificação com os pais, interioriza a interdição.” Ter a mãe como a figura que se interpõe de maneira cruel diante excitações juvenis nos remete a condição do superego como agente de controle, por vezes, tirânico das pulsões do Id. Zimerman define supergo como

[…] uma estrutura composta por objetos internalizados, aos quais geralmente atribui-se um caráter persecutório, de intensidade maior ou menor e que, por meio de mandamentos, opõe-se às pulsões do Id, faz ameaças e um boicote às funções do ego, distorce a realidade exterior e, ao mesmo tempo, submete-se a ela, cumprindo as determinações sobre o que o sujeito deve e o que não deve fazer, o que sempre provoca nele um estado mental de culpas, acompanhado de medo e atitude defensiva (ZIMERMAN, 1999, p. 133).

Pamela em nenhum momento hesita ou demonstra culpa diante de seus atos, porém quando seu filho, Jason Voorhees assume o papel da mãe, como um baluarte sanguinário da moral e dos bons costumes, encontramos resquícios de piedade, mesmo que seja acessos de esquizofrenia onde a figura materna ainda mantém controle. Ao retirarmos as referências fantásticas que colocam Jason como uma “máquina invencível de matar” – às vezes com poderes paranormais – podemos afirmar que o verdadeiro mal, aquele que não remete a piedade ou arrependimentos, provem da mãe, Pamela, e sua ânsia incansável por vingança.

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Como regra clássica dos slashers movies da década de 80, drogas, sexo e, principalmente, o gênero feminino, remetem a morte. Não é somente a maconha ou a ânsia da cópula que trazem a fúria do superego nestes filmes, a presença feminina instiga a crueldade, reforça a perversidade sádica do supergo sobre o ego, decorrente das investidas do Id. Além de Sexta-feira 13 temos Halloween (1978) e O Massacre da Serra Elétrica (1974) com exemplos de personagens femininas que são mortas sem o uso de drogas ou a sugestão de sexo. Basta ter peitos!

Para o público, majoritariamente masculino, a mensagem poderia não ser clara, mas existia: o sexo feminino – com características de sedução e independência – não são aprovados. É preciso eliminar essa figura que demonstra poder e atitude e preservar somente a que traga a pureza e a inocência no seu caráter e a virgindade do corpo. Essa garota é a “final girl”, a última garota, a única que pode trazer o equilíbrio entre essas duas forças. Entre as pulsões do Id e os mandamentos do Superego, temos aquele que procura manter-se intacto nessa batalha: o Ego.

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O Ego ou a “Final Girls”

Observe a garota do centro, na foto acima. Entre os jovens, ela destoa – suas roupas têm cores neutras e cobrem todo o corpo e seu cabelo a deixa bem distante do arquétipo feminino que as outras personagens querem vender, beira a androginia. Alice (Adrienne King) é uma das monitoras do acampamento, ela é responsável, durona e mantém-se distante dos convites para o uso de drogas ou sexo que parecem pulular de forma convidativa por todos os cantos em Cristal Lake. Ela é a representação do Ego. Para Lanplanche e Pontalis (2001, p. 498), há uma relação de dependência do ego, do ponto de vista tópico, tanto para com as reinvidicações do id, como para com os imperativos do superego e exigências da realidade.

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Cada “final girl” da franquia representaria, assim, uma resolução desse conflito interno constante entre a pulsão e o controle. No primeiro capítulo, o ego, representado por Alice, deixa o superego interditar toda forma de expressão psíquica do id, de maneira gradual e silenciosa. Lanplanche e Pontalis ressaltam que a censura exercida pelo superego é inconsciente

[…] o sujeito que sofre de compulsões e interdições comporta-se como se estivesse dominado por um sentimento de culpa acerca do qual, porém, ignora tudo, de forma que podemos chamá-lo sentimento de culpa inconsciente, apesar da aparente contradição dos termos (LANPLANCHE E PONTALIS, 2001, p. 498).

Logo, as transgressões, impulsionadas pelo id, que observamos no desenvolvimento da história soariam mais emergentes do que o perigo de interdição encarnado pelo superego. Para Alice, a sobrevivência torna-se primordial quando percebe que o que está ocorrendo em Cristal Lake não é uma paz advinda pós-satisfação dos prazeres, mas sim de uma eliminação contínua de todos aqueles que resolvem não seguir “as regras da casa”. E isso, quando ocorre de maneira silenciosa, surge como ameaça a integridade do próprio ego. Assim, após a última garota escapar das investidas do id, cabe, como resolução, enfrentar a censura do superego.

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A franquia sem fim ou o eterno conflito

O intuito do texto foi identificar e analisar as instâncias das personalidades descritas por Freud presentes na franquia Sexta-feira 13. Esse mecanismo presente na construção dos roteiros, e repetido exaustivamente em continuações e outros filmes do gênero, parecem influenciar mais o inconsciente do expectador do que este possa imaginar. Em seu argumento simples podemos fazer correlações que, talvez, possam explicar porque tal “receita” permanece, praticamente, inalterada até hoje. É claro que o gênero conseguiu superar clichês e criar novos clássicos, do mesmo modo que a psicanálise ampliou seu conhecimento sobre a mente humana. Uma das características mais marcantes é a mudança radical da Final Girl para o desenvolvimento da história; esta ganhou mais complexidade, o que acaba impulsionando mudanças nas necessidades do id e nas exigências do superego. Há filmes em que a protagonista, ao final, se alia ao seu algoz e encontra sua paz nessa comunhão. Mas essa análise fica para outro texto.

REFERÊNCIAS:

DUNCAN, Paul. (Org). Cine de terror. Ed. Taschen. Espanha, 2008;

LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2001;

TALAFERRO, Alexandre. Curso básico de psicanálise. Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2001;

ZIMERMAN, David E. Fundamentos Psicanalíticos. Ed. Artmed. Porto Alegre, 1999.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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SEXTA-FEIRA 13

Direção: Sean S. Cunninghan
 Elenco: Betsy Palmer, Adrienne King, Jeannine Taylor
País: EUA
Ano: 2009
Classificação: 18

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A Bruxa: o combustível do horror é a mente

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Bruxas e a moralidade de puritanos da América colonial do século XVII narrado com explícitas alusões à família que se autodestrói no filme “O Iluminado” de Kubrick e a referência visual do quadro de Goya “O Sabá das Bruxas”. Tudo leva a crer que “A Bruxa” (The Witch, 2015) é mais um filme do gênero terror com sustos, sangue e perseguições. Mas o estreante diretor Robert Eggers sabe que a mente é o verdadeiro combustível do horror: mantém o espectador no fio da navalha entre a realidade e a ficção: a dúvida se o elemento sobrenatural sugerido no filme é real ou se atmosfera claustrofóbica da moralidade puritana foi capaz de criar bruxas e demônios. O resultado é uma verdadeira psicanálise dos arquétipos do horror e das bruxas que sempre foram “bodes expiatórios” dos horrores que povoam nossas mentes.

Desde que Linda Blair vomitou um líquido verde e girou a cabeça em O Exorcista em 1973, o gênero terror acabou confundindo-se com efeitos especiais, monstros dismórficos e muito sangue e vísceras espirrando para a câmera. Foram décadas de serial killers do outro mundo como Jason e Fred Krugger, zumbis e bruxas cujas vassouras se transformam em arma mortal para decepar cabeças.

Décadas que acabaram fazendo o gênero esquecer os seus fundamentos no distante expressionismo alemão de Fritz Lang, Robert Wiene e Murnau onde o víamos o horror muito mais no rosto dos protagonistas (olhando para o contra-campo – aquilo que está fora do enquadramento), na cenografia fantástica e na atmosfera de pesadelo. O terror e o susto substituíram o horror humano diante do próprio Mal.

Mas o filme A Bruxa, na estreia do diretor Robert Eggers em longas metragens, resgata esse horror fundamental e esquecido nos últimos tempos: um profundo e inquietante conto do folclore da Nova Inglaterra em uma América colonial. Perturbador e totalmente inesquecível.

Mas um ponto fora da curva dentro das atuais convenções hollywoodianas do gênero. Tanto que o diretor encontrou dificuldades para encontrar financiamento. Entre outras produtoras, precisou também de uma produtora brasileira, a RT Features (responsável por filmes como Tim Maia e O Cheiro do Ralo), que apostou em um filme estranho aos clichês atuais gênero.

Nas entrevistas com a imprensa especializada, Eggers afirma que o filme foi, de um lado, o resultado de vinte anos de paixão e desconstrução do filme O Iluminado de Kubrick e, do outro, o fascínio pelos filmes de horror inglês da Hammer (produtora de filmes dos anos 1960) inspirados em contos do folclore daquele país.

O processo de autodestruição de uma família como em O Iluminado e as personagens das bruxas do folclore, cuja melhor tradução visual está nas pinturas de Goya, foram os principais elementos para a construção do filme A Bruxa. Para tanto Eggers fez uma extensa pesquisa sobre a vida familiar e o folclore da década de 1630 na Nova Inglaterra, algumas décadas antes do infame julgamento das bruxas de Salém – onde 20 pessoas, a maioria mulheres, foram julgadas e executadas.

Mas principalmente o filme A Bruxa busca o horror que está dentro de nós: a forma como projetamos no outro um bode expiatório para tentar expiar o Mal que instituições como a família e a religião criam e que levam elas próprias à autodestruição.

O Filme

A narrativa acompanha uma família de agricultores que foi excomungada de uma comunidade puritana depois de o pai William (Ralph Ineson) acusar os laços religiosos frouxos que sustentariam aquela sociedade. William muda-se com sua família para uma cabana isolada ao lado de uma floresta fechada e sombria, vendo a possibilidade de praticar uma vida mais próxima a Deus e dos fundamentos da religião puritana.

Mas o otimismo e o fervor religioso começam a ser postos em prova quando a filha adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy) não percebe o desparecimento do bebê da família enquanto brincava com ele. Então o espectador é introduzido a uma figura encapuzada correndo com o bebê através da floresta.

O que se segue é o centro do conflito do filme: a família luta em manter a fé em Deus diante de tal tragédia. Além disso, as coisas continuam a piorar com a pobre colheita do milho e o perigo da família morrer de fome com a aproximação do inverno.

A fé dos membros inclui a mãe Katherine (Kate Dickie), o filho pré-adolescente Caleb (Harvey Scrimshaw) e dois jovens gêmeos indisciplinados Jonas (Lucas Dawson) e Mercy (Ellie Grainger). O tempo inteiro oscilam entre as questões puritanas sobre o pecado original, o destino do bebê após a sua morte ou se eles foram redimidos aos olhos de Deus. É possível ir para o céu se você pecou? Podemos saber com certeza se Deus perdoa? O que significa permitir a entrada do pecado em sua vida? E como podemos identificar as consequências?

Essas dúvidas começam a atormentar cada vez mais os corações e mentes da família enquanto os infortúnios vão se sucedendo, o que se transformam em suspeitas de uns contra os outros. Alguém deve ser o responsável pela má sorte. Se não é Deus, com certeza será alguns deles.

O susto e o medo

O filme lida com o medo e não com sustos. O filme sugere que há alguma coisa de sinistra e sobrenatural no interior da floresta que cerca a cabana. Mas Eggers sabe que o verdadeiro poder de filmes como esse não é mostrar um vilão icônico e familiar para o gênero. Há uma dúvida sobre a existência real de algum círculo de bruxas no interior da floresta, ou se a própria floresta sombria não passa de uma projeção da crescente paranoia e ansiedades religiosas daquela família.

Há diversos sub-plots no filme (a relação de Caleb com o pai, a incompetência do pai em manter a subsistência da família, a crescente histeria religiosa da mãe, mentiras e hipocrisias que aos poucos vem à tona etc.).

Mas todos esse subtemas terminam na menina Thomasine. Ela está entrando na puberdade, tornando-se um fator de desequilíbrio na dinâmica familiar. Sutilmente, Eggers mostra como a natural sensualidade de Thomasine começa a afetar a todos, a cada um de uma maneira diferente.

O que impressiona é como a moralidade puritana torna cada membro daquela família duro consigo mesmo: se todos são filhos do pecado original, então somos naturalmente culpados e condenados ao inferno desde o início, tornando a vida uma série de gestos e penitências que buscam pedir o perdão de Deus.

O inferno puritano procura um bode expiatório

Com esse inferno psíquico puritano somada a série de infortúnios que atinge a família, a pressão torna-se cada vez mais insuportável para todos. Como em qualquer instituição social, essa pressão deve ser necessariamente aliviada pela busca do chamado “bode expiatório”- alguém deve ser o culpado por não ter fé suficiente ou de simplesmente ser um traidor.

O que Eggers faz no filme é uma verdadeira psicanálise dos contos de fadas, no melhor estilo do livro clássico Psicanálise dos Contos de Fadas de Bruno Bettelhein. A figura mítica da bruxa surge como um recurso desesperado para manter uma família ou comunidade coesas quando estão à beira da autodestruição. As acusações dos pais contra Thomasine onde tentam encontrar alguma lógica religiosa para acusa-la de bruxaria foram retiradas das pesquisas do diretor sobre os relatos do Julgamento das Bruxas de Salém. Somado ao assustador design de áudio e os sets unicamente iluminados por velas e lampiões, cria-se uma atmosfera claustrofóbica que em muitos momentos faz o espectador lembrar do filme O Iluminado.

A mente é o combustível do horror. Eggers sabe disso e mantém a narrativa e os espectador no fio da navalha – os constantes enquadramentos com os personagens olhando aterrorizados para o contra-campo; as sequências das imagens da floresta profunda sugerindo às vezes o horror sobrenatural e, outras vezes, apenas o medo natural diante das intempéries; a ameaça de alguma força demoníaca que parece crescer ao mesmo tempo em que se acumulam as tensões e são reveladas as mentiras e hipocrisias daquela família puritana. E a dúvida permanente do espectador entre a realidade e ficção, bruxas reais ou delírios de puritanos atormentados pelo culpa e pecado.

Eggers conseguiu fazer uma história arquetípica do horror da Nova Inglaterra após pesquisas junto a historiadores, museus de história natural e os arquivos do infame Julgamento de Salém. Mas, principalmente, também conseguiu fazer uma psicanálise dos colonos puritanos que iniciaram a América.

Assistindo ao filme, fica a questão que continua martelando a mente desse humilde blogueiro: qual as conexões desse horror gótico do século XVII com o mundo moderno? Como esses medos puritanos que, foram a base cultural da América, continuam presentes no mundo atual? Principalmente em um mundo onde a cultura norte-americana é irradiada para todo o planeta através da indústria hollywoodiana.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A BRUXA

Diretor e Roteirista: Robert Eggers
Elenco: Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie, Harvey Schrimshaw;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 16

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The Walking Dead – Dias Passados

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Walking Dead 1

“Ela não merecia isso. Ninguém merece isso.”

Dale (personagem)

Febre mundial, a franquia The Walking Dead não só ressuscitou a cultura dos mortos vivos, como a tornou uma marca da sociedade moderna – tal como os vampiros – com seguidores fervorosos de todas as idades. O sucesso sazonal destes sub-arquétipicos (o arquétipo principal representado seria a Morte, ou a eterna fuga dela) atrai a atenção para uma análise mais profunda dos significados que o material pode trazer e, talvez, encontrar a essência que agrega e leva a uma identificação coletiva com a obra.

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Campeão de vendas nas livrarias e bancas, líder de audiência na TV, tornando-se um dos programas mais populares dos últimos anos e fenômeno de popularidade onde é exibido, a série The Walking Dead merece respeito. Não credito o seu reconhecimento com caráter de admiração do produto em si, mas sim devido a sua capacidade de adentrar de uma maneira tão massiva no inconsciente popular em uma época que prima pela diluição da atenção nos programas de entretenimento. Por isso a necessidade de analisar de maneira sucinta, sem preconceitos de suas origens, a razão de tal fascínio por essa obra que já está marcada como representação do nosso tempo.

Optei por fazer uma análise dos quadrinhos no lugar do seriado, por ser a fonte primeira onde o criador, o americano Robert Kirkman, expõe de maneira subjetiva seus conceitos de moral, ética, política etc. Ao serem adaptados para a televisão muitos detalhes são perdidos, a cronologia pode ser alterada e fatos podem ser modificados drasticamente a favor de uma audiência ou censura; nas revistas encontramos o material puro para ponderação.

Apesar das semelhanças com o seriado, o nível de violência visual é alto nos quadrinhos, porém tudo em preto e branco. Em um enredo onde a qualquer momento alguém pode ser canibalizado ou ter a cabeça decepada por um machado, foi uma escolha sensata, já que as páginas da revista procuram ser o mais detalhista possível e o esmero e criatividade ao demonstrar as várias possibilidades de desconstrução de músculos, articulações e vísceras que são apresentadas constantemente, de maneiras chocantes, sempre surpreendem. Na TV temos o choque, a cena acontece, surpreende, no entanto há um continuum que necessita substituir um fato pelo outro a favor da atenção da audiência. Já na literatura há, em especial nesse gênero, o horror diante do que é apresentado e, a depender do nível de violência que algumas páginas trazem, ficamos inertes e boquiabertos segurando o livro e encarando a página por algum tempo, diante do assombro que a história nos coloca. Outro detalhe dos quadrinhos: o que na cultura popular ficou conhecido como zumbis ou mortos-vivos, tal termo não é citado em nenhum momento neste primeiro volume; a nomenclatura clássica ganhou as seguintes variantes: “os andantes”, “os errantes” ou “os mordedores”; estes são alguns dos nomes que foram escolhidos para nomear aqueles seres em decomposição e eternamente famintos. É bom salientar que a simbologia que os “mortos-vivos” de TWD trazem não é tão diferente daquela iniciada por George Romero em seu A noite dos mortos-vivos (1968), mas se distancia em significado quando comparados ao mesmo mal epidêmico de filmes como Extermínio e Guerra Mundial Z – mas essa questão fica para outro artigo.

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A primeira coletânea que será analisada aqui corresponde aos números um ao seis com o título nacional de Dias Passados (Days Gone By, 2003), publicado pela editora HQM no Brasil. Nele somos apresentados ao protagonista da série, o oficial Rick Grimes, policial do estado da Georgia; através desse homem observaremos as transformações que essa “epidemia” estará impondo. Escolher um policial, pai de família, que tem valores éticos e morais fortes é uma forma do escritor colocar à prova os conceitos e ideologias do leitor. Existia uma sociedade pautada por leis e regras, se elas serão úteis nesse “novo mundo” é algo que o texto sempre trará a tona. Uns desejarão retomar a antiga ordem, para outros é necessário uma adaptação, se não uma transformação social adequada diante da derrocada do cenário social vigente.

O INÍCIO DO FIM

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A primeira ideologia posta em prova logo nas primeiras páginas – e que será recorrente durante todos os números – é a segurança. A representação de um sistema de segurança frágil onde os meios de contingência da violência não asseguram total proteção e paz social como utopicamente prega, toma forma no tiroteio em que Rick é baleado. Alvejado gravemente na troca de tiros: o primeiro pilar social, a segurança, é demolido em uma única página de The Walking Dead.

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Em seguida, Rick acorda em um hospital. O silêncio não assusta, já que isso é uma característica do local; falta de assistência, não. Ao sair pelos corredores, encontra tudo deserto. Nada de médicos ou enfermeiros e, aparentemente, ele é o único doente. Ao chegar ao elevador encontra uma pessoa morta. Desesperado, chega ao refeitório. Ao adentrar a sala – em uma pequena ironia – encontra várias pessoas em estado de putrefação se movendo. Aqui, pela primeira vez, Rick enfrenta um desses mortos. Ele tenta dialogar, mas percebe que a comunicação não tem efeito, sua única alternativa é recuar.  Ele sai do hospital abandonado sem compreender o que acabou de acontecer.

Os avanços que tivemos na medicina permitiram ao ser humano vislumbrar uma extensão, cada vez maior, dos seus anos de vida. E essa evolução chegou a ponto de tentar deter os “sintomas” da velhice: falta de tônus muscular, perda de agilidade, problemas diversos nos organismo etc. No hospital é onde as limitações são “consertadas”, o paciente busca uma solução para se manter tanto interna quanto externamente condizente com os parâmetros de uma pessoa saudável. Observar, nos quadrinhos, homens e mulheres andando pesadamente, em decomposição pelos corredores é a pá de cal sobre a única possível solução de cura para o problema da epidemia. No despertar de Rick neste pesadelo é dito, de forma indireta, que nem sempre a ciência vai ter respostas e, muito menos, a cura. Temos a queda de mais um pilar social: a ciência. Para os leitores, que já entendem o que está ocorrendo, fica sensível que o problema dos mortos vivos não pode ser contido nem pelos cientistas e muito menos pelo sistema de segurança da sociedade.

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Ao ir para a rua, Rick percebe o abandono a que a cidade foi deixada, não há nenhum ser vivente, nem pessoas ou bichos. O que ele encontra são “monstros” com características que lembram humanos, em decomposição, inertes ou rastejando pela cidade. Tudo é muito difícil de entender, não é possível digerir o horror e a estranheza que o cerca, então ele vai atrás da única referência de humanidade que ainda lhe resta: sua família. Ao chegar a casa, percebe que tudo foi abandonado. Após o choque do medo vem o desalento da solidão e uma entrega sobre a aparente pressão que está sofrendo com os fatos vividos. Isso, até ser surpreendido com uma pancada na cabeça. Metaforicamente era preciso abandonar velhos padrões para entender o que estava ocorrendo; não será apegado a um mundo que não existe mais que ele terá alguma resposta e muito menos conseguira sobreviver se ainda tiver parâmetros de uma sociedade totalmente destruída, assim é necessário haver uma ruptura, uma separação entre o que era conhecido e o novo para sobreviver.

Morgan Jones explica a situação para Rick, e sem rodeios descobrimos que o sistema de informação ruiu com uma semana de crise. Durante a conversa dos dois, a primeira que Rick tem com uma pessoa depois que consegue escapar do hospital, pode-se notar ao fundo dois quadros onde temos duas cabeças de cavalo. A leitura que podemos fazer é que ambos estão cientes e dominantes de sua capacidade de racionalizar, o instinto é intrínseco às espécies, até na humana, mas a capacidade de mensurar os fatos e escolher a opção mais apropriada é comum somente ao homem e naquele momento temos a racionalização humana em foco.

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Ao buscar as armas e carros na delegacia, são expostas duas características que acompanharão toda a saga de The Walking Dead: as armas são a melhor resposta para uma sociedade doente que não ouve e nem dialoga e que o enfrentamento a esse grupo descontrolado só deve ocorrer em momentos de crise, o que diferencia os vivos dos “mortos” é a racionalização e a ponderação, isso permite segurança e controle da situação e uma diferenciação de quem age pela razão ao invés dos impulsos.

Nas últimas páginas do primeiro número, Rick retorna ao local onde encontrou um “andante” e atira na sua cabeça. Sinal que ele não encara aqueles seres como humanos, mas as lágrimas que escorrem dos seus olhos demonstram que há ainda uma identificação, pois no passado todos eram iguais.

EM BUSCA DO PARAÍSO PERDIDO

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A capa do segundo número é icônica para a saga, algo correspondente ao pôster da série na primeira temporada: Rick sobre um cavalo em uma estrada repleta de carros parados e pessoas mortas dentro. Um sinal que todos os referenciais que estão ligados ao conceito de civilização devem ser abandonados.

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Ao iniciar sua caminhada para Atlanta, Rick é levado na esperança de encontrar sua família e de ter respostas e assistência na capital. Na travessia, ele para em uma fazenda e encontra um grupo de cadáveres na sala. Vale ressaltar que a cena é rápida mas cheia de nuances: nela encaramos o resultado daqueles que não suportaram a pressão, ou seja, perderam a fé. O cenário delineia que era uma família religiosa – por causa da bíblia em suas mãos e a cruz na parede – e que o pai provavelmente decidiu matar a todos os familiares e depois tirar a própria vida. Ao contrário dos outros pilares que são destituídos e abandonados – ciência, segurança e família – a fé religiosa nunca é posta totalmente de lado no universo de The Walking Dead e sim renovada de acordo com as provações enfrentadas, adaptando-se a cada nova tragédia sem sentido que ocorre na saga.

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Ao encontrar um cavalo, a história coloca Rick com sua racionalidade ativa, o cavalo representa o controle apesar de tudo que ocorre a sua volta. Acredito que essa insistência em mostrar o animal é uma maneira de situar a importância do personagem para a história, Rick tem a capacidade rara de manter a racionalidade em momentos delicados. Aos poucos, Rick é colocado no caminho do herói.

Sair do interior e ir para uma metrópole é uma experiência, sua individualidade deixa de existir para adentrar a massa – aquela que adapta comportamentos, determina posições e modifica personalidades – e é difícil permanecer fiel a sua moral e valores diante de uma força que adentra sem qualquer sutileza e exige adequações que podem trazer conseqüências, desde a rejeição a um auto-isolamento. Rick adentra com seu cavalo a cidade e são logo cercados pelos “habitantes” de Atlanta; eles avançam famintos sobre os dois como predadores em matilha.

A morte do cavalo simboliza a luta e os desafios que Rick terá de enfrentar dali para frente. O último resquício de civilização e racionalidade como o policial conhece devem ser transformados para que assegure sua vida. Pensar do mesmo modo, baseado nas mesmas estruturas, o fará cair entre a massa de “andantes” sem causa e sem rumo. Sua crença no aparato que uma sociedade moderna poderia oferecer não existe mais, o sentido de segurança, ciência e fé tem que tomar nova forma, a partir do interior, com regras próprias que o permita avançar rumo à sobrevivência.

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Nas últimas páginas deste capítulo, Rick é salvo por Glenn que explica toda a situação que ocorreu em Atlanta e o leva para um acampamento. Para sua surpresa, lá ele encontra, entre um grupo de sobreviventes, sua mulher e seu filho. A redenção e a esperança são oferecidas para o herói, mas a que preço?

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LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE?

O grupo que está no acampamento é uma representação nuclear de uma pequena cidade conservadora americana: jovens, idosos, crianças, trabalhadores e donas de casa; todos tentando emular um estilo de vida que não existe mais. A tônica aqui é manter firme a ilusão de que algo os tirará daquele pesadelo, enquanto isso não ocorre o melhor é esperar e sustentar o cotidiano e a saúde mental com banalidades que remetem aos “dias passados”.

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Uma das discussões levantadas neste capítulo é sobre a igualdade de gêneros. Enquanto Dona, uma senhora conservadora, mas consciente dos caminhos percorridos historicamente pelas mulheres, reclama sobre a clássica divisão de serviços, Lori, jovem mãe de classe média, não reclama e reafirma sua condescendência perante o papel que representa no grupo. Posteriormente, observamos Shane, Rick e Dale em uma caçada com posicionamentos machistas sobre as mulheres. A normatização do papel da mulher é algo natural ou imposto por uma sociedade patriarcal? As pressões impostas pelos eventos vindouros, no universo de TWD, demonstrarão que conceitos de gênero rígidos não significam vida longa para um personagem, a fragilidade, independente do sexo, é indicativa de morte.

Uma das características de TWD não são o perigo constante encarnado nos “andantes” e sim o comportamento de qualquer um dos sobreviventes que aparecem durante a saga. É quase impossível viver sozinho em um mundo com esses traços. Em grupos há maiores chances de sobrevivência, no entanto, a imprevisibilidade do comportamento humano é assustadora. O instinto de sobrevivência, a sede de poder e a intolerância são alguns exemplos que podem levar a ações extremas entre os componentes do grupo. No quarto capítulo a tragédia é desenhada em torno da possível obsessão de Shane com a mulher de Rick. Além de ficarem atentos com a voracidade dos “mordedores”, os impulsos passionais podem ser tão ou mais perigosos que eles e, sempre, surpreendentes.

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O REI ESTÁ NÚ

Para viver em comunidade é preciso regras, leis e aceitação, mesmo que silenciosa, de todos. A idéia inicial é permanecer no acampamento próximo a cidade e esperar uma possível ajuda do governo. Quem está a frente desta opinião é Shane que logo encontra um opositor em potencial. Depois de tudo o que Rick vivenciou antes de chegar a Atlanta, ele sabe que a situação é bem mais grave do que o grupo a qual se inseriu imagina; para ele as esperanças presentes são frágeis e que é necessário lutar pela sobrevivência e não esperar serem salvos. Essa percepção do protagonista reforça a queda de mais uma estrutura social: o Governo. Mais do que opiniões diferentes, são vidas que, indiretamente, estão nas mãos daquele que é considerado líder e uma decisão errada pode levar a morte de todos. Na discussão política dos dois sobre qual seria a melhor opção – permanecer ou sair do acampamento – a liderança vai muito além de uma representação de poder – como usualmente temos hoje – para literalmente ver as conseqüências de uma decisão errada modificar a dinâmica do grupo ou fazê-la sucumbir diante dos perigos que os cercam.

Rick sabe que é preciso correr riscos para manter sua vida e a do grupo, por que o que diferencia os vivos dos “mortos” é a capacidade de mover-se de forma ágil, racionalizar uma situação e optar pela melhor alternativa. Todos precisam aprender a se defender, mas para isso precisam de armas, então ele e Glenn vão em busca de algumas em Atlanta. Aqui temos o paradoxo do enredo: o que seria aquela massa de devoradores de carne que busca cegamente um desejo, mesmo que isso custe vidas? O que os diferenciam uns dos outros?

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Para o psicanalista Mario Corso (2013) “o fenômeno zumbi é a revolução francesa no território da ficção, a plebe angariando fatias de prestígio. Nossa ideologia prega a individualidade, devemos ser únicos, afinal, ser confundidos com a massa, ser ninguém, é o grande horror.” Perceba que “os andantes” parecem aquém do que os rodeia, a massa faminta que avança sobre os sobreviventes é uma ilusão, paradoxalmente não existe uma percepção do outro entre eles, existe uma ilusão de ser especial representada pela vontade infinita em consumir. Podemos fazer uma analogia com a sociedade atual que acredita na sua individualidade pela construção de um sujeito de consumo. Corso desenvolve que “o fenômeno zumbi sugere um cansaço também com essa ideologia individualista, nos aponta a luta inglória e sem sentido para despontar na multidão, como também a força dos excluídos.” Rick e Glenn passam sangue de um dos “mordedores” executados pelo corpo para se misturar a eles. Se misturar as massas na modernidade liquida é adequar-se a valores éticos, morais e ideológicos que não correspondem a sua personalidade, mas assegura a sobrevivência; qualquer sinal que demonstre que eles não seguem a “filosofia de vida” da massa que os cercam, trará a tona raiva, fúria e “fome” irracionais. Uma grande ironia para a sociedade atual.

TODOS OS MONSTROS SÃO HUMANOS” (da série American Horror Story)

Aos poucos, Rick começa a influenciar o grupo que o adotou. Todos começam a aprender a usar armas, inclusive seu filho de sete anos – um processo que remete as culturas antigas que através de rituais procuravam direcionar o crescimento espiritual e a representação do indivíduo no grupo ao qual está inserido; o pequeno Carl e as outras crianças sobreviventes serão os filhos dessa nova sociedade dura e implacável que não permite mais brincadeiras e sonhos de um futuro promissor. Sobreviver um dia de cada vez será a luta contínua dessa nova geração.

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A noite chega e todos estão reunidos se alimentando enquanto contam como eram suas vidas antes de chegarem ao acampamento. Lembrar dos familiares perdidos, da rotina que tinham e dos sonhos que não existem mais é uma constante em TWD; os personagens procuram incansavelmente entender todo aquele horror pelo qual passaram. Olhar o passado é uma forma de buscar detalhes ou respostas para toda aquela situação.

Durante a reunião, vários “mordedores” surgem pegando de surpresa o grupo. Atacados por todos os lados, alguns personagens sucumbem. A situação demonstra que os avisos de Rick estavam corretos, o único meio de continuarem vivos é saírem daquele lugar e se afastar da cidade. É um risco, mas em decorrência dos acontecimentos, soa como melhor alternativa. Menos para Shane.

 

EFEITOS COLATERAIS

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No último capitulo temos o fim da esperança. O objetivo principal passa a ser a sobrevivência. Não irei detalhar os acontecimentos que fecham esse primeiro volume – já há muitos spoilers em todo o texto, que a “cereja do bolo” seja saboreada por aqueles que comprarem a coletânea – o que fica evidente é a escolha do autor finalizar esse primeiro arco com uma tragédia entre os sobreviventes e não em um embate com os “andantes”. Assim ele se distancia do simples e barato horror que poderia emular nas páginas para se aprofundar no drama e nas transformações internas que aqueles personagens sofrerão durante a saga.

A presença dos “mordedores” é constante e eles representam a morte encarnada pronta para dar o bote, basta baixar a guarda e não estar atento. Porém, rastejando sorrateiramente pelos corações está o ódio, a inveja, a luxúria e a soberba para turvarem seu caminho. As três páginas finais demonstram, segundo o autor, que não é necessário ser mordido para se tornar um ser irracional movido por uma pulsão, viver já nos deixa a mercê de muitas outras.

Ao ler ou assistir a série sempre torcemos pelos mocinhos e nos identificamos com seus feitos de altruísmo e coragem, mas, subjetivamente, o autor parece apontar que se não estamos mais próximos da alienação dos “andantes”, é difícil escapar das fraquezas que levam a fragmentação e, consequentemente, a destruição decorrente das paixões humanas.

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THE WALKING DEAD – DIAS PASSADOS (VOL. 1)

Criador e Escritor: Robert Kirkman
Artista: Tony Moore
Editora: HQM

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