Opressão e violência

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Haja vista que o adoecimento mental das pessoas trans advém muito das questões relacionadas a todo o contexto de marginalização e exclusão que essas pessoas sofrem. Então a psicologia e os profissionais de psicologia são extremamente importantes no processo de minimizar e atenuar esse sofrimento, e de ajudar que essas pessoas tenham um pouco mais de qualidade de vida durante a pandemia”.

O Portal (En)Cena entrevista a gestora pública Bianca Lopes, mestranda em saúde coletiva pela Universidade Federal de Goiás, pesquisando sobre o processo transssexualizador no SUS, atua como técnica de referência e Subcoordenadora para políticas para a população LGBT no âmbito da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás.

A gestora e mulher-trans identifica em sua fala a relevância dos aspectos sociais da pandemia para a saúde mental das pessoas trans, aponta boas práticas de políticas públicas de saúde desenvolvidas no Estado de Goiás e indica a relevância do comprometimento da psicologia e dos profissionais de psicologia em conhecer conteúdos básicos e experiências das pessoas trans para saber tratar adequadamente esse público apoiando o acesso a direitos e a qualidade de vida.

(En)Cena – Considerando o seu lugar de fala de: mulher, gestora pública, gestora pública, mestranda em saúde coletiva, subcoordenadora para a políticas para a população LGBT no âmbito da Secretaria de Saúde em Goiás e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID 19?

Bianca Lopes – Se pensamos todo um legado da história do Brasil, em um país que tem uma história baseada na colonialidade, regado com culturas e imposições cristãs, machistas, patriarcais que fora de tempos pandêmicos já era opressor em relação à mulher e a sua condição de subserviência dentro da sociedade. Tido isso como um valor amplamente retroalimentado em todas as classes sociais, a pandemia se traduz como potencializador de opressão e de violência de todas as naturezas contra a mulher.

De tal forma que a pandemia veio mostrar que o vírus não é biológico somente, ele é social também, porque se observamos todos os contextos de vulnerabilidades que o país tem, ela está entrelaçada com a desigualdade de gênero e a violência de gênero que as mulheres em todos os seus recortes sofrem neste país. Então eu creio que ser mulher durante a pandemia no Brasil é um fator da mais de risco à vida dessas brasileiras.

Fonte: encurtador.com.br/brDJK

(En)Cena – Na sua opinião, como podemos compreender o sofrimento emocional das mulheres trans no Brasil?

Bianca Lopes – Penso que a pandemia, com tudo que ela trouxe de ruim, talvez o aprendizado que possamos tirar disso é que o capitalismo mostra suas piores faces quando olhamos para as diferenças sociais e o quanto isso nos afeta. O quanto a nossa sociedade está mal estruturada. O quanto a falta de justiça social vulnerabiliza e mata pessoas. Quantas vidas poderiam ter sido salvas, se o governo se preocupasse com a vida das pessoas de fato, tanto quanto com a economia do país, como se essas questões fossem ambivalentes.

(En)Cena – Como a pandemia pode afetar a saúde mental das mulheres trans?

Bianca Lopes –  O sofrimento emocional das mulheres trans e travestis neste país é carregar nos ombros toda a força do ódio e opressão que a desigualdade de gênero pode proporcionar, e que pode ser mil vezes potencializada nessas duas formas de identidade.

Vivemos no país que mais mata pessoas trans no mundo, em que essas mulheres são assassinadas simplesmente por serem quem são e expressarem suas identidades.

De uma maneira muito contraditória, esse mesmo país, que ostenta esse vergonhoso ranking de exterminador de mulheres-trans e travestis[1], é um dos maiores consumidores de conteúdo adulto que tem a temática trans. Isso reverbera como um sistema de marginalização que potencializa bastante a vulnerabilidade dessas pessoas em um contexto completamente estruturado na família, na escola, no mercado de trabalho formal. E isso influencia muito o adoecimento mental dessas pessoas, o desenvolvimento de transtornos depressivos, de ansiedade, compulsivos. A exclusão social e o isolamento social não é uma problemática para as mulheres trans de agora, durante a calamidade da COVID 19. O isolamento social para as mulheres trans e travesti sempre existiu. Elas sempre foram excluídas da sociedade. Então agora, a pandemia vem potencializar esse extermínio, porque antes elas só tinham a rua a noite para trabalhar e garantir sua subsistência, agora está mais potencializado ainda porque, em tempos de distanciamento social, uso de máscaras, de higienização das mãos a atividade de emprego que elas têm não faz o menor sentido. E se a gente pensa num apoio do Estado para que elas possam de alguma maneira manter sua renda e tentar manter a sua saúde íntegra sem se expor ao risco de contágio, a gente está falando de algo completamente inacessível. A exemplo disso o próprio auxílio emergencial que foi uma política cheia de restrição desde o início, haja vista que a maior parte da população trans que está nas suas, nem documentos têm. Então quem nunca foi enxergada continua sendo negligenciada como sempre foi. Então a falta de dinheiro implica em mais vulnerabilidade, mais exposição às violências e todo um contexto de abandono nas ruas. Outras precisam voltar para famílias que são opressoras e passam a sofrer outros tipos de violência dentro do seio da família. Então, não existe saúde mental que dê conta, que faça com que as pessoas se sintam em paz, tranquilas, em relação a toda essa pandemia social que a gente vive também.

Fonte: encurtador.com.br/jEJMO

(En)Cena –Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?

Bianca Lopes – Penso que, para as mulheres no pós-pandemia nós precisamos ter mais consciência de classe. Nós enquanto mulheres precisamos nos organizar e nos articular mais politicamente, fortalecer nossas classes. Conseguirmos reverberar consciência de classe, fomentar isso dentro da sociedade em todos os níveis, em todas as classes, para fortalecer e enaltecer a força da mulher como uma forma de revolucionar e promover mudanças, romper com paradigmas na nossa sociedade para que a gente possa um dia olhar para trás e perceber que pudemos caminhar um pouco com os aprendizados que tivemos durante a pandemia, para a emancipação da mulher. Para que nós consigamos diminuir um pouco mais essa diferença de gênero e romper um pouco mais com as garras nefastas do capitalismo e do machismo que tanto nos fere, nos rouba e nos corrompe enquanto seres plenos que somos.

Fonte: encurtador.com.br/oAB56

(En)Cena – Como funciona o seu trabalho como subcoordenadora para a políticas para a população LGBT no âmbito da Secretaria de Saúde em Goiás (SSG)?

Bianca Lopes – Meu trabalho é oferecer apoio técnico na estrutura e para os 243 municípios goianos para implantação da política nacional de saúde integral da população LGBT+, conforme ela está instituída desde dezembro de 2011 pela portaria ministerial. Eu ofereço apoio técnico, consultoria e capacitação para a Secretaria de Saúde em Goiás (SSG) e para os municípios em relação ao enfrentamento do preconceito institucional e sistêmico, no combate à discriminação pelas questões relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transsexuais. No que tange a temas como o respeito ao nome social, às especificidades relacionadas à linha de cuidados do processo transsexualizador. Condução dos processos técnicos burocráticos dentro das câmaras colegiadas de discussões dentro da estrutura de Estado. Além de promover a cooperação da gestão com as instituições de ensino e os serviços da linha de frente, tentando promover a articulação para que os profissionais e estudantes da saúde e áreas afins possam ter contato com a base conceitual e as experiências da população LGBT+ como parte da sua formação. Para que possam, no futuro, compreendendo o público em questão, de modo crítico reflexivo, não estabelecer dificuldades de acesso à saúde, mas promover o cuidado específico para que essas pessoas se sintam acolhidas nos serviços de saúde e, é claro, no SUS – Sistema Único de Saúde.  Então o profissional de psicologia e a própria psicologia se traduzem em instrumentos importantes para mitigar os efeitos negativos que a pandemia tem para a sociedade, mas sobretudo para a população trans que está mais vulnerável.

(En)Cena –   A partir das suas experiências neste trabalho, como você definiria os maiores desafios e as maiores conquistas em termos de políticas públicas para mulheres trans na atualidade?

Bianca Lopes – Atuando como gestora pública na Secretaria de Saúde em Goiás (SSG) o que eu avalio como grandes avanços em termos de políticas públicas que contemplem direitos e acesso à cidadania de pessoas trans, sobretudo de mulheres trans, destaco talvez a rede de ampliação do processo transsexualizador no SUS, tanto em serviços ambulatoriais quanto hospitalares. Considero um avanço muito grande a conquista do nome social, o decreto do nome social no estado de Goiás que existe desde 2016.

A participação na audiência pública da Defensoria Pública da União para a escrita da minuta do provimento que dá direito às pessoas trans de retificarem seus nomes, prenomes e gênero no registro civil no cartório, foi um momento histórico em que pudemos estar presentes, foi representativo, com muitos avanços.

Penso que todas as atividades que desenvolvemos até agora, os fóruns e as capacitações, em que a temática da população LGBT+, sobretudo as questões interligadas à identidade de gênero, como capacitação profissional contribuíram muito para o acesso dessa população à saúde no âmbito do Estado de Goiás.

Ainda temos outro avanço exclusivo no Estado de Goiás e referência nacional. Foi uma apresentação que fizemos no nosso plano estadual de saúde do quadriênio 2019/2023, por meio da Secretaria de Saúde, em que conseguimos colocar como prioridade um cofinanciamento estadual para que fomente que municípios possam implementar a política do processo transssexualizador de uma maneira descentralizada.

Mas ainda temos muitos desafios. A interseccionalidade ainda não é uma realidade muito concreta. Haja vista que precisamos fazer com que o reconhecimento das mulheres trans seja feito de maneira mais ampla dentro da estrutura técnico burocrática estatal. Os textos das políticas, das portarias, dos decretos, das notas técnicas contemplam de uma maneira sistematizada e reiterada os direitos que essa população tem. Mas os sistemas de informação e de reconhecimento de gênero ainda se baseiam muito ainda em sexo biológico. Isso ainda inviabiliza muito o acesso à cidadania e a direitos da população trans num âmbito geral.

Outro quesito de desafio são os reconhecimentos dos direitos sexuais reprodutivos das pessoas trans. Que isso seja resguardado sobretudo o direto de serem pais e mães. Que sejam respeitadas de acordo com sua identidade de gênero as condições dos homens-trans que sejam pais gestantes e as condições das mães-não gestantes, nos casais trans centrados.

São avanços para os quais ainda temos que caminhar muito investindo no fomento de pesquisas relacionadas à saúde da população trans que levem em consideração todas as questões relacionadas à saúde e à harmonização, as intervenções cirúrgicas a médio e longo prazo, as transformações bioquímicas que esses corpos terão ao longo do tempo. É preciso que invistamos mais nessas questões para que essas pessoas tenham mais qualidade de vida e segurança no seu processo de afirmação de gênero.

Fonte: encurtador.com.br/apqu5

(En)Cena –   Como a psicologia pode colaborar para apoiar pessoas trans, especialmente, durante a pandemia?

Bianca Lopes  – A psicologia sempre foi fundamental no processo de afirmação de gênero das pessoas trans. Principalmente para as pessoas trans que recebem o acesso a uma psicologia verdadeira, que acompanha, aconselha e faça uma escuta ativa para essas pessoas. Uma psicologia preparada e capaz de fazer esse acompanhamento. Haja vista que o adoecimento mental das pessoas trans advém muito das questões relacionadas a todo o contexto de marginalização e exclusão que essas pessoas sofrem. Então a psicologia e os profissionais de psicologia são extremamente importantes no processo de minimizar e atenuar esse sofrimento, e de ajudar que essas pessoas tenham um pouco mais de qualidade de vida durante a pandemia. A problemática maior diz que, apesar de nem todos os profissionais da psicologia terem habilidades para lidar com todas as questões que demandam da população trans, que não se esgotam apenas nas questões de identidade de gênero mas toda a completude e a complexidade que atravessa a vivência dessas pessoas, o distanciamento social, a suspensão de serviços de saúde não essenciais, que não estejam ligados à COVID 19, afastaram a maioria dessas pessoas dos serviços de saúde e dos profissionais que as acompanham. Foram poucos os serviços que conseguiram manter o atendimento por meios de telemedicina, ou de alguma maneira. Isso inviabilizou muito a continuidade desse processo. Mas os profissionais e serviços que conseguiram manter esse elo, essa assistência continuada, mesmo que a distância, com certeza mitigaram um pouco o impacto da pandemia na saúde mental das mulheres trans e são fundamentais para que essas pessoas tenham mais qualidade de vida nesse período tão difícil para todo mundo.

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Psicologia em Debate Especial discute cinema e sexualidade no CAOS 2019

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O acadêmico e professor Sonielson Luciano de Sousa apresentou o filme ‘A garota dinamarquesa’

Nesta quinta-feira (23) aconteceu o Psicologia em Debate como parte da programação do CAOS 2019. Na ocasião,  três salas comportaram temas relacionados a sexualidade, sendo: Cinema e Sexualidade, Cultura e Sexualidade, Saúde e Sexualidade.

O acadêmico e professor Sonielson Luciano de Sousa apresentou o filme ‘A garota dinamarquesa’, abordando a questão da transsexualidade como forma de experienciaçao da sexualidade. Ainda foi possível elucidar temas como Estruturalismo, Pós-Modernismo, Pós-estruturalismo.

Fonte: Arquivo Pessoal

Evidenciou-se como os movimentos da sexualidade contemporânea mostram a necessidade de se ter um olhar singular e relativo para cada indivíduo, entendendo que  a expressão da sexualidade não possui um única e correta forma, mas se mostra fluida e complexa.

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Saúde e Acolhimento das Pessoas Trans é tema de 4º Fórum Permanente de Saúde Mental

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O evento aconteceu no dia 3 de abril, as 14h, no Auditório Central do Ceulp. Fizeram parte da mesa como mediadores: Dhieine Caminski (Psicóloga Especialista em Saúde da Família e Gerente de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de Palmas), Byanca Marchiani (Presidente da Associação das Travestis e Transexuais do Estado do Tocantins), Jéssica Bernardo Rodrigues (Área Técnica do Departamento de Apoio à Gestão Participativa/SGEP/MS). O evento foi voltado para a importância de um profissional da área de saúde estar bem preparado para efetuar um acolhimento humanizado aos transexuais.

Bianca relatou que não teve muito apoio de associações durante seu processo transexualizador, já que aqui no Estado do Tocantins as mesmas são escassas. Com 7 anos usando hormônio, surgiu nela a necessidade de organização, como a aceitação do nome social e uma boa elaboração do serviço de saúde publica para este publico. Declarou sentir muita necessidade de uma história de mudança da narrativa de vida dos transexuais, já que a maioria se encontra na prostituição.

De acordo com dados da Atrato – Associação Das Travestis e Transexuais Do Estado Do Tocantins, foi registrado que 90% dos travestis e transexuais que residem em Palmas estão na prostituição por falta de oportunidades de trabalho. O quadro de escolaridade se encontra com  apenas 59,4% das trans que estudaram até o 3º ano do ensino médio e em relação a violência física, 96,4% já sofreram ataques físicos, até mesmo pela própria família. No ano de 2017 foram registrados em Palmas apenas 3 casos de transfobia e homofobia, sendo que acontece com frequência e devido ser sempre alvo de violência e desrespeito, muitas trans se abdicam de irem em busca de seus direitos.

Outro assunto discutido foi que a estigmatização da população trans dificulta no resultado de um bom acolhimento, ainda há uma dificuldade de entender que são pessoas como qualquer outra, sendo preciso a necessidade de reconhecer a humanidade no outro. Outra questão que dificulta é o fato da comunidade supracitada estar sempre em estado de exasperação, isto porque é sempre alvo de violência. De acordo com a Atrato foram registrados no Brasil 3,7 a cada 100 mil pessoas do grupo LGBT sofrem violência, enquanto em Palmas este numero é extremamente alto, sendo 15,8 a cada 100 mil.

Em outro momento, Felipe Pinheiro relatou que iniciou seu processo transexualizador por conta própria, não teve direcionamento e a partir de muita procura foi garimpando os profissionais de saúde para lhe ajudar no processo. Relatou ter sentido muita desrespeito devido a demora por parte de profissionais em agilizarem seu processo, não se sentindo amparado. E ressaltou a importância de fazer exames rotineiros para não colocar a saúde em risco.

Rafael outro mediador que compôs a mesa, disse que é preciso uma ampliação do acesso da comunidade trans aos programas de saúde e direitos oferecidos, com respeito a totalidade. O mediador fez um questionamento ´´Por que precisamos discutir este assunto?“ em seguida respondendo que ´´somos uma sociedade marcada pelo escravismo e patriarcado, mulheres e negros sem autonomia. Este cenário vem se modificando, mas se encontra muito presente o machismo, o racismo e a LBGT fobia“.

Rafael ainda ressaltou a importância de um espaço de informação para discussão de gênero, pois o resultados das mesmas são determinantes sociais e é necessário que se faça parte da política de saúde. É preciso uma maior reflexão, com intuito de garantir acesso em todos os espaços da sociedade, seja na saúde, lazer ou trabalho. Declarou ´´muitos profissionais da saúde não assumem a discriminação, mas reproduzem através de aceitação de comentários e da reprodução de humor negro. Precisamos compreender a nossa responsabilidade enquanto profissionais e sociedade. O Estado brasileiro precisa se responsabilizar pela vida e segurança destas pessoas“.

Por fim o fórum terminou com perguntas/reflexões do publico presente. A acadêmica de Psicologia do Ceulp Ulbra, Monique Débora, relatou que é visível a quantidade dês colegas de curso que ainda se mantém neutros, e muitos justificam com a religião. A acadêmica gerou reflexão. ´´O que Deus fala pra você não tem de ser imposto pra vida do outro. Não existe uma Psicologia Cristã. O curso de Psicologia do Ceulp favorece, mas muitos acadêmicos não adentram a este campo. Que psicologia estamos construindo? Precisamos de mais psicologia e menos cristianismo. Podemos ser cristãos e ainda assim ter uma postura cientifica, a psicologia é uma ciência e não uma religião“, declarou.

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Psicóloga especializada em sexualidade humana fala sobre a transexualidade

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Priscila Junqueira, sexóloga e psicóloga destaca os pontos traumáticos na transição de gênero

Em “A Força do Querer”, a personagem Ivana, interpretada pela atriz Carol Duarte, está passando por momentos decisivos para descobrir sua verdadeira identidade de gênero. Acompanhada por uma psicóloga, a personagem irá perceber que, além de homem trans, ela também pode ser homossexual.

Segundo a sexóloga e psicóloga especializada em sexualidade humana, Priscila Junqueira, a identidade de gênero, diferente da orientação sexual, é o ato de se sentir pertencente à outra identificação, diferente da biológica, ou seja, uma criança pode nascer menina e se identificar com o feminino, ou não. Ou pode nascer um menino, e pode se identificar ou não com o masculino.

Apesar de parecer simples na teoria, a condição de ser “trans” é muito mais complexa na prática. Além de acarretarem problemas como a não aceitação na sociedade, problemas na hora de conseguir um emprego, conquistar a mudança de sexo e o nome social, existem outros obstáculos ainda mais graves que influenciam o fator psicológico.

O processo de descoberta, se dá através da disforia de gênero, que além de ser um sentimento de inquietude e incômodo ao ver que o corpo não reflete com o que realmente é, acarreta outros problemas como ansiedade, angústia, depressão, e até mesmo tentativa de suicídio, e automaticamente transforma os sentimentos internos em problemas familiares e profissionais, influenciando o preconceito diário.

Na trama esse conflito interno que Ivana sente vem desde criança, ela foi imposta pela mãe para viver uma feminilidade que não fazia parte do seu interior e com isso ela deixa de entender o real sentido da pessoa que  é. Segundo Priscila Junqueira, desde a infância os transexuais sentem que seu corpo foi trocado, ela explica uma parte essencial de como deve ser feito o tratamento psicológico: “Cabe ao profissional contribuir para que essa pessoa primeiro sinta-se acolhida na sua dor e assim poderão caminhar para um autoconhecimento e conflitos diminuídos. Com ajuda profissional a pessoa poderá entender o que está acontecendo, e ser orientado a buscar a terapia hormonal, e até mesmo a cirurgia de redesignação sexual, caso deseje, e receber orientações legais quanto a todo processo”.

Ivana se desespera na frente do espelho. Foto: João Miguel Júnior/ TV Globo. (Fonte: https://goo.gl/jX9AsT)

Na novela da Glória Perez, ela relata as diferenças, vemos isso com o personagem Nonato, interpretado por Silvero Pereira, que é um travesti que ama seu corpo e não tem problemas com sua identidade de gênero. Isso é abordado de forma nítida mostrando as diferenças.

 “O transexual é diferente de travesti. Os travestis irão usar roupas do sexo oposto durante parte da vida para ter uma experiência temporária ou permanente de ser do gênero oposto. Eles podem enfrentar os mesmos conflitos que os transexuais, além de encarar a falta de  respeito a diversidade sexual” – explica Junqueira.

Existe muita confusão com relação às diferenças de orientação sexual e identidade de gênero, mas a sexóloga pontua: “A orientação sexual irá fazer com que a pessoa busque relacionamentos afetivos-sexuais com pessoas do mesmo sexo (homo), sexo oposto (hetero) e ambos (bi). Já a identidade de gênero a questão é o sentir mulher ou homem”.

Apesar do tema ser discutido no horário nobre da televisão brasileira, ainda existe muitas barreiras ao falarmos sobre transexualidade, Para Priscila Junqueira, a educação é fundamental, pois se torna um incentivo falar sobre o assunto em vários lugares, permitindo que esse pré-conceito se quebre.

 

Sobre Priscila Junqueira

Priscila Junqueira. Foto: arquivo pessoal.

Priscila Junqueira, é Mestre em Ciências – Faculdade de Medicina da USP; Especialista em Sexologia – Faculdade de Medicina da USP; Especialista em Coordenação Grupoanalítica – Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo – SPAG-Campinas.
Além disso, é professora universitária e atende em consultório particular. Em 2009 recebeu o prêmio de melhor pôster com o tema: Qualidade de sono e qualidade de vida, comparação entre mulheres portadora de HIV e não portadoras. Priscila também teve participação em diversos capítulos de livros consolidados e participação em Congresso, como o XV Congresso Brasileiro de Sexualidade Humana.

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Sexualidade trans e identidade de gênero

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Nota: Relato de Experiência elaborado como parte das atividades da disciplina de Antropologia do curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra, sob supervisão do prof. Sonielson Sousa.

Recente Psicologia em Debate discorreu sobre Sexualidade trans e identidade de gênero, a partir de pesquisa realizada pela acadêmica de Psicologia do Ceulp/Ulbra Fernanda Bonfim. O transgênero é o indivíduo que não se identifica com seu sexo biológico. A identidade seria, neste caso, de como essa pessoa se vê, se sente, se percebe e é percebida.

Os transgêneros podem ser homossexuais ou heterossexuais. São considerados homossexuais quando se relacionam com o mesmo gênero de sua escolha de identidade (quando uma pessoa é biologicamente mulher, mas sua identidade de gênero é homem e este se relaciona com um homem). E são transgêneros heterossexuais quando se relacionam com o sexo oposto a sua identidade de escolha (quando uma pessoa biologicamente é mulher, com identidade de gênero sendo de homem e se relaciona com uma mulher). É possível observar a manifestação da transgeneridade bem cedo na vida de um sujeito, através das escolhas que essa pessoa faz por suas roupas, seus interesses e desejos por temas e objetos que seriam “comuns” ao sexo biológico oposto ao seu.

Fonte: http://zip.net/bbtKMx

A cirurgia para adaptar o corpo é realizada depois que um diagnóstico é fechado por vários profissionais, que incluem psiquiatras, psicólogos, entre outros. No Brasil, o Sistema Único de Saúde, pela portaria Nº 457, autoriza que a partir dos 18 anos de idade a pessoa pode dar início ao tratamento para adequação de sexo, que dura dois anos, até que o diagnóstico seja concluído. Porém a cirurgia só pode ser realizada a partir dos 21 anos de idade (BRASIL, 2008). Até o ano de 1985 a homossexualidade era considerada um transtorno mental pelo Conselho Federal de Medicina, e no final dos anos 80 vários organizações iniciam um amplo processo de despatologização desta orientação, que passa a ser considerada dentro da diversidade humana.

Sampaio e Coelho (2013) ao citar Harper e Scneider (2003), afirmam ser este grupo marginalizado pela discriminação, violência sofrida principalmente em seu convívio familiar e social em algum momento, geralmente na adolescência, ao qual a pessoa se encontra em maior fragilidade, o que pode dificultar o acesso a educação, melhores vagas de emprego e moradia. A estimativa de vida para os transsexuais é de no máximo 35 anos de idade, pelas violências acometidas a eles, sendo que 20% dos crimes são cometidos contra jovens com menos de 18 anos. Somente 10% dos crimes viram processo e 31% das vítimas são alvejadas com arma de fogo.

Fonte: http://zip.net/bqtLSC

Algumas ponderações podem ser observadas a partir da palestra, sobretudo ao ter feito a analogia de “ser cristão e por isso preconceituoso”, “gays perseguidos por pessoas cristãs”. Como se, no fritar dos ovos, a culpa fosse de Cristo. Das duas uma, ou há ensinos errôneos sobre o que o Evangelho realmente ensina sobre ser cristão, ou ouvintes relapsos que dão sua própria interpretação. E, ainda, a soma dessas duas ações que criam generalizações de fontes interpretativas erradas. Se Jesus Cristo fosse preconceituoso, ele não teria estado no meio de todos os tipos de sujeitos – os marginalizados da época.

Em nenhum momento Jesus desprezou, julgou, condenou ou incitou algum tipo de violência a quem quer que seja. Aliás, Ele acolhia, recebia e era recebido por pessoas que também eram desprezadas ou criticadas. Jesus confrontou “os seus”, os escribas e fariseus, como diz o texto em Jo1:11, “Veio para o que era seu e os seus não o receberam.” Se Jesus se apresentasse na contemporaneidade, é com estas pessoas que ele estaria.

REFERÊNCIA:

BÍBLIA. Português. Bíblia On-line. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/jo/1>. Acesso em: 06 jun. 2017.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Cirurgias de Mudança de Sexo são Realizadas pelo SUS desde 2008. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/03/cirurgias-de-mudanca-de-sexo-sao-realizadas-pelo-sus-desde-2008>. Acesso em: 05 jun. 2017.

SAMPAIO, Liliana Lopes Pedral; COELHO, Maria AThereza Ávila Dantas. A TRANSEXUALIDADE NA ATUALIDADE: DISCURSO CIENTÍFICO, POLÍTICO E HISTÓRIAS DE VIDA. Ufba, Bahia, v. 1, n. 1, p.1-12, 13 jun. 2013.

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Transexual: construção enquanto Mulher

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Insegurança, deslocamento, desconforto, curiosidade, medo e conflito são o que muitas mulheres em corpo de um homem passam. E isto existe há anos luz, no entanto nunca foi tão discutido quanto no momento em que vivemos. Milhares de mulheres lutam todos os dias para serem vistas como mulheres, mas o  “estranho” ainda causa desconforto em muitos. Tais desconfortos são muitas vezes introjetados, o que é um grande problema, pois é um desconforto disfarçado de conforto, resultando em atos violentos contra o “estranho” e recebendo apoio e encobrimentos de milhares de outros disfarçados.

Fonte: http://migre.me/wcRm1
Fonte: http://migre.me/wcRm1

Bauman (1998) diz que cada sociedade tem seu padrão de pureza, e esses padrões mudam de época em época, varia de cultura para cultura. Os padrões de pureza são normas criada pela sociedade em relação ao que é normal ou não. E as pessoas que não estão dentro destas normas tornam-se entraves em relação a organização do meio, são visto como esquálidos e tratadas como tais, são os estranhos: “O oposto da ‘pureza’ – o sujo, o imundo, ‘os agentes poluidores’ – são coisas ‘fora do lugar’'”BAUMAN, 1998, p.14).

Um exemplo de estranhos são os trans. Isto porque fogem da normatividade e da limitação da ordem social em questão. O mais lastimoso desta não aceitação são os atos de violência física, que é usada como forma de repressão e indignação. De acordo com a Organização das Nações Unidas, o Brasil é o pais que mais mata travestis e transexuais. Uma pesquisa realizada entre Janeiro de 2008 a março de 2014 foi registrada 604 mortes no país. O site Correio 24 horas mostra que só em 2014 houve 134 mortos e em 2016, 144 mortes. Isto mostra que hoje o assunto é mais debatido, no entanto há poucas melhorias, já que a repressão e o ódio pelo diferente é camuflado.

Esta camuflagem faz reinar a incerteza e acaba limitando o futuro destas mulheres e da própria sociedade. Resulta em uma sociedade conflituosa, devido a não flexibilidade e a poucas adaptações a mudanças. Logo, muitas destas mulheres vivem sob o medo e sem esperanças, já que não há garantias de um futuro seguro.

Talita Costa. Fonte: http://migre.me/wcRnB
Talita Costa. Fonte: http://migre.me/wcRnB

Talita Costa, 36 anos, estudante de Serviço Social e que reside na cidade de Palmas há quase 20 anos vive na pele este medo e incerteza. Talita diz que descobriu-se mulher ainda quando criança: “… ao invés de escolher as coisa que meu pai fazia, preferia me inspirar nas coisas que minha mãe fazia… em outro momento quando eu tinha 8 anos de idade, eu lembro que estava  beira do rio com minha família, e eu estava cm minha irmã, que é mais nova que eu 3 anos e eu escutei eles comentando que as minhas pernas eram mais bonitas e femininas do que as da minha irmã e isto me marcou muito, e eu nunca mais esqueci, pois eu também olhava pro meu corpo e não era igual o dos meus amiguinhos… eu não me identificava como um menino desde criança. Na puberdade foi a certeza, pois eu não me atraia por mulher e me via em trans como a Roberta Close. Eu via as mulheres bonitas passando e os homens desejando  e mexendo, era aquilo que eu queria ser. Eu não queria ser a engraçada, a bicha amiga etc., eu queria ser mulher.”

Modelo brasileira transsexual Lea T. Fonte: http://migre.me/wcRy9
Modelo brasileira transexual Lea T. Fonte: http://migre.me/wcRy9

O relato de Talita reafirma a famosa frase de Simone de Beauvoir:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo.  — O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição, pp. 9.

Assim como Talita, milhares de mulheres lutam todos os dias para serem reconhecidas como tais. Um exemplo de superação e esmagadora dos limites impostos pela sociedade é Luma Andrade, que tem doutorado em Educação pela UFC – Universidade Federal do Ceará, é considerada a primeira travesti a ingressar em um curso de doutorado no Brasil, e hoje atua como professora. Luma que recebeu o nome de João Filho Nogueira de Andrade ao nascer, conquistou em 08 de março de 2010, sem ter passado pela operação de mudança de sexo, o direito de mudança de nome em seus documentos. Luma Oliveira é mulher, é travesti, é militante, é professora e uma fonte de inspiração.

Luma Andrade. Fonte: http://migre.me/wcRpk
Luma Andrade. Fonte: http://migre.me/wcRpk

Ser estranho tem para muitos hoje um significado muito genérico, é visto como algo inferior. Logo muitos passam a vida seguindo ordens de autoritários. Isto por que desde que se nasce, o indivíduo já recebe uma carga enorme de informação do que é certo e do que é errado. A subjetividade tende a ser anulada para a então aceitação do meio, seja da família, dos amigos, da igreja ou da sociedade. Ser “estranho” é preciso ser visto como autenticidade.

Na ciência há exemplos de vários estranhos, tais como: Charles Darwin, Thomas Edison e Albert Einsten. Estes foram contra a normatividade de suas épocas, por isto foram rejeitados e vistos como esquálidos, mas hoje são vistos como gênios. É natural que o Homem duvide e questione para tornar então autoridade de si, as mulheres trans são autoridades de si e isto preciso ser respeitado e por que não, admirado?!

Atriz Laverne Cox, que interpreta a personagem Sophia Burset na série Orange Is The New Black. Fonte: http://migre.me/wcRsP
Atriz Laverne Cox, que interpreta a personagem Sophia Burset na série televisiva Orange Is The New Black. Fonte: http://migre.me/wcRsP

O homem é um ser subjetivo, isto por que ninguém é igual a ninguém. E esta diversidade é uma das maiores riquezas do homem. O Homem nasce com competências, identidade e personalidade desconhecidas. Com o tempo ele vai se identificando, se moldando e se descobrindo. Esta é a diferença entre o Homem e um objeto. O objeto inicia objeto e termina objeto, já o Homem nasce Homem, se modifica e morre da forma como ele quiser.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudio Matinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 1998.

https://nacoesunidas.org/violencia-contra-pessoas-trans-e-extremamente-alta-nas-americas-apontam-onu-e-parceiros/

http://www.correio24horas.com.br/blogs/mesalte/assassinatos-de-transexuais-e-travestis-cresce-22-em-um-ano-no-brasil-bahia-teve-9-mortes/

O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição

11 gênios e inventores que foram subestimados e rejeitados antes de alcançar o sucesso

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“A Garota Dinamarquesa” e o fim da era das certezas

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Com quatro indicações ao OSCAR:

 Ator (Eddie Redmayne), Atriz Coadjuvante (Alicia Vikander), Figurino e Design de Produção 

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Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Entendemo-nos porque nos ignoramos.
A vida que se vive é um desentendimento fluido,
Uma média alegre entre a grandeza que não há
E a felicidade que não pode haver.

 Fernando Pessoa, in “Mensagem”.

Garota Dinamarquesa 1

Dirigido por Tom Hooper, “A Garota Dinamarquesa” é um drama norte-americano que concorre a quatro estatuetas no Oscar 2016 (Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Design de Produção e Melhor Figurino) e aborda um dos temas mais atuais e instigantes das ciências humanas, a teoria queer. O longa é baseado num romance sobre a vida de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener e foi uma das primeiras pessoas a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo no mundo. A obra traz questões ontológicas e existenciais, além de abordar com singularidade “o relacionamento amoroso do pintor dinamarquês com Gerda (Alicia Vikander) e sua descoberta como mulher”.

Coincidentemente ou não, dias depois de ler uma curta análise sobre as últimas obras de David Bowie, por ocasião de sua morte, e de perceber a forma sensível e apurada com que ele lidou com a destruição das bases do pensamento que prevaleciam até o início do século XIX, acabei por assistir o filme americano que ecoa, em alguma medida e dentre outras coisas, com os excertos pulverizados nas produções de Bowie – um “camaleão” que compendiava na aparência e no fazer artístico, parte da dinâmica social e psicológica das últimas décadas.

Assim como em Bowie, “A Garota Dinamarquesa” – além de apresentar-se como um relato histórico acurado para a teoria de gênero – tem como pano de fundo a consolidação da simbólica morte do Deus cristão (já profetizada por Nietzsche), a compreensão de tempo e espaço pela via da relatividade de Einstein (este, não iremos nos aprofundar) e, por fim, a descoberta do inconsciente por Freud – ampliada magistralmente por Jung. Somados, tais pontos levariam a um “alargamento” do que viria a se configurar como uma espécie de autopoieses do indivíduo e a um amadurecimento do humanismo liberal contemporâneo. Além, claro, de referendar as posições que questionam a “rigidez” com que eram tratados os papéis sociais destinados a homens e mulheres.

Garota Dinamarquesa 2

E de que forma estes aspectos estão presentes enfaticamente em “A Garota Dinamarquesa”? Na medida em que o longa retrata a fase aguda da transição de uma época calcada em certezas absolutas para um período profundamente permeado pelo sentido de que tudo o que pensávamos até então poderia estar errado, a começar pela “austera” delimitação de homem/mulher.

Dentre os tópicos mais tocantes, o fato de a efervescente sociedade moderna, a partir de Freud, perceber que poderia haver “outro ser humano dentro do ser humano”, aliada à revolução copernicana de Kant, resultou na formação de indivíduos com um profundo sentido de autopercepção, de “delimitação e identificação do eu em contraposição ao outro” e, por fim, detentor de uma estrutura interna mínima – já sem tanta pressão das convenções coletivas – para pôr em prática as argúcias pessoais mais originais, como a troca de sexo por entender que a genitália herdada (no nascimento) não corresponde ao panorama psíquico adulto.

Garota Dinamarquesa 3

Há, portanto, a consolidação “da morte do Deus cristão” na medida em que se coloca em xeque – e mesmo rechaça-se – a legislação externa (transcendental) sob a própria vida. Além disso, os sujeitos passam a abraçar – inclusive com o ônus decorrente das escolhas, como fica claro no filme – suas existências, a partir de suas próprias vontades, o que acaba por transformar estes indivíduos em protagonistas, logo, em criadores e responsáveis por pavimentar seus futuros. Trata-se de um processo que ainda está em formação e que já se mostrou como um dos mais emblemáticos na recente história da nossa espécie, cujos resultados ainda são imprevisíveis.

Transgerenidade

Lili Elbe é um marco para a teoria queer, justamente por compor o balizamento, a gênese – na prática – de um movimento de “política pós-identitária” que tenta superar a abordagem binária homem-mulher. Pelo estudo/observação das minorias sexuais, tendo por base disciplinas como sociologia, filosofia, antropologia, psicologia e estudos culturais, dentre outras, pretende ampliar o entendimento acerca da constituição sexual. Os componentes sociais passam a ocupar forte espaço, em detrimento da predominância do viés exclusivamente biologicista (determinista).

Trata-se de uma abordagem que nega a oposição entre homens e mulheres, e que enxerga na cultura e trocas sociais – e o impacto que as mesmas exercem sob os indivíduos – a verdadeira origem do processo de “sexualização” do sujeito. Desta forma, a heterossexualidade, a homossexualidade e a bissexualidade não passariam de formações de identidades sociais estabelecidas, com a primeira (aceita como “normal”) prevalecendo sobre as duas últimas (“desviantes”); as três expressões, para a teoria de gênero, ainda são fruto de culturas sexuais normativas, limitantes e, em alguma medida, excludentes entre si.

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A transexualidade, a travestilidade e a intersexualidade, por sua vez, são apontadas como culturas sexuais não hegemônicas. Logo, têm caráter subversivo e diametralmente oposto às normais sociais prescritas, sobretudo no que tange ao comportamento sexual e às relações amorosas de maneira geral.

Isso se dá porque a teoria queer simplesmente afasta qualquer tentativa de emparedar os indivíduos em estruturas de caráter universal (homem ou mulher, homossexual ou heterossexual). Com isso, defende que cada pessoa contém uma gama de variações culturais – onde nenhuma pode reclamar superioridade sobre qualquer outra – que, por fim, acaba por nivelar todas as identidades sociais como anômalas. Esta abordagem tenta fazer cair por terra toda tentativa de classificação entre o “normal” e o “desviante”.

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Coadjuvante que se agiganta

No mais, a atriz Alicia Vikander encarnou uma Gerda de dá inveja a qualquer Ivete Sangalo da vida. De personalidade forte e destemida, ela se agiganta ao passar de apêndice (inclusive na falta de reconhecimento artístico, no início da carreira) à posição de destaque (indispensável, registre-se) no turbulento percurso que transformou Einar Mogens Wegener em Lili Elbe.

No ínterim, percebe-se em Gerda uma mulher que supera os próprios medos e apegos, e que transforma o amor conjugal numa expressão mais universal de afeto, em que o bem-estar do cônjuge vem em primeiro lugar, nem que para isso tenha que se sacrificar a própria vida.

Esta postura resultou numa total entrega e confiança por parte de Lili. Isso ocorreu porque as restrições que estreitam e aprisionam – e que poderiam muito bem estar no repertório de Gerda – foram substituídas pela constante tentativa de (re)conhecer o outro que, em certa medida, está além de qualquer classificação. Ao final, havia a tentativa (de Gerda) de “experimentar” a si mesma.  Trata-se de uma atitude que demonstra um elevado nível de maturidade e de desprendimento, em que pese os momentos de sofrimento e de angústia.

“A Garota Dinamarquesa”, com isso, acaba por se configurar numa obra que demonstra a complexidade – e grandiosidade – de parte da constituição humana. É um convite para se aproximar do “absolutamente outro”, num movimento em que o estranhamento e o medo devem ser superados pela empatia e pela abertura. Provavelmente é um filme que se tornará um clássico.

Crítica

Destoante desta posição, a teórica ateia, acadêmica, ensaísta, crítica de arte e crítica social americana Camille Paglia (que esteve recentemente no Brasil) diz que a teoria de gênero representa, em última medida, uma espécie de derrocada da civilização Ocidental. Homossexual assumida – e muito criticada pelo movimento feminista –, Paglia é autora do famoso livro “Personas Sexuais”, e apresenta-se como uma das intelectuais contemporâneas mais enérgicas na contraposição a elementos da citada teoria.

Para Paglia, apesar de ela própria ser muitas vezes identificada como transgênero, o que, em alguma medida, é verdadeiro – já que ao nascer ela não se identificou com o papel que lhe apresentaram na polarização sexual vigente à época –, ainda assim ela considera que só existam fundamentalmente dois sexos, o masculino e o feminino, que são determinados biologicamente. “De qualquer forma, comecei a escrever sobre a androginia, que está no limite entre estes dois polos, que fica na área cinzenta entre os extremos do cérebro. No entanto, trata-se de uma quantidade muito pequena de pessoas [que se enquadram na androginia, ou seja, gêneros autênticos que são ambíguos]”, diz Paglia, para quem “a propaganda dos transgêneros faz alegações muito infladas sobre a multiplicidade de gêneros”.

Camille Paglia diz que, mesmo atualmente com todos os avanços, a cirurgia de redesignação sexual “não pode mudar o sexo de ninguém […], uma vez que só se pode identificar como um ‘homem trans’ ou como ‘mulher trans’”. No entanto, defende a americana, “toda célula do corpo humano, o DNA dessa célula segue codificado para seu nascimento biológico”.

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Ela diz que o que mais a preocupa é a popularidade e a disponibilidade da cirurgia de redesignação sexual. “Alguém que não sente que pertence ao gênero biológico é encorajada a intervir no processo”, diz. Diferente do que ocorreu no caso de “A Garota Dinamarquesa”, onde Lili Elbe, já adulta, pondera e decide pela intervenção, atualmente “pais estão sendo encorajados a submeter às crianças a tipos de procedimentos […], como a utilização de hormônios para a desaceleração da puberdade, e até manipulações cirúrgicas”. Paglia considera estas investidas equivocadas, tendo em vista que “as pessoas devem esperar até terem idade para dar consentimento”. De acordo com a ensaísta e acadêmica, “até na adolescência é cedo demais para dar este salto [cirúrgico], já que as pessoas crescem, mudam [de ideia] e se adaptam”.

Por fim, Paglia diz que no estudo histórico realizado para o livro “Personas Sexuais” identificou padrões cíclicos, em que nas fases mais avançadas ou decadentes de uma cultura, “quando se começa o declínio [desta cultura] você tem um surgimento de fenômenos transgênero. Isso seria o sintoma do colapso de uma cultura”, fruto do liberalismo humanista contemporâneo. A teórica diz que o atual surgimento e recrudescimento do Estado Islâmico, por exemplo, é uma resposta a este movimento.

Curiosamente, em alguns países islâmicos considerados “linha dura” em relação à homossexualidade, como o Irã, é encorajada a cirurgia de mudança de sexo. Isso ocorre para que rapidamente os indivíduos que se julgam ter nascido com o sexo errado possam se enquadrar numa das duas polaridades heterossexuais dominantes. O país só fica atrás da Tailândia no número de cirurgias de troca de sexo. A homossexualidade (masculina, sobretudo) continua sendo punida com castigos físicos e até pena de morte.

Mais sobre “A Garota Dinamarquesa”

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À esquerda, Lili Elbe, quando se identificava como homem. Nas imagens do centro de da direita: Elbe nos anos 30.

De acordo com recente texto publicado no jornal El País, a história de “A garota dinamarquesa” começa em 1925. Einar e Gerda Gewener são um casal de ilustradores unido desde o começo do século XX. Casaram-se jovens, ele com 22, ela com 19, quando ainda estudavam na escola de arte de Copenhague. Einar é um paisagista de renome (ganhou o prêmio Neuhausens em 1907), e as delicadas ilustrações de Gerda mostrando jovens damas cheias de glamour aparecem habitualmente na Vogue francesa e na La Vie Parisiense. Um casal invejável e muito bem sucedido. Uma tarde, uma das modelos de Gerda não aparece no ateliê.

Einar se voluntaria para ajudá-la e coloca um vestido de seda que se transforma numa revelação vital. Sente-se tão à vontade com a roupa que decide passar a se vestir de mulher e a posar habitualmente desse jeito para sua esposa. Fará o mesmo também, esporadicamente, durante viagens à França e à Itália. Quando se instalam definitivamente em Paris, Einar abandona sua masculinidade e se apresenta ao mundo como Lili, a irmã de Gerda. Gerda mantém aventuras com outras mulheres, e os dois dão festas selvagens para o mundo artístico parisiense dos anos 1930. Essa é parte da extraordinária vida de Lili Elbe, uma das primeiras pessoas submetidas a uma cirurgia de mudança de sexo da qual se tem notícia.

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html

________

* Disponível na Amazon.com, pela WS Editora.

REFERÊNCIAS:

Sinopse de “A Garota Dinamarquesa”. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140552/ >, Acesso em 16/01/2016;
David Bowie: sobre a vida, a morte e o significado da existência. Disponível em < http://www.fronteiras.com/entrevistas/david-bowie-sobre-a-vida-a-morte-e-o-significado-da-existencia >, Acesso em 15/01/2016;
Eddie Redmayne vive primeira trans conhecida em ‘A garota dinamarquesa’. Disponível em < http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html >, Acesso em 15/01/2016;
Análise da cena de ciúmes de Ivete Sangalo. Disponível em < http://www.brasilpost.com.br/anna-haddad/ciume-ivete-relacoes_b_8919598.html >, Acesso em 15/01/2016;
Roda Viva entrevista Camille Paglia. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=KlYR1isM2o8 >, Acesso em 15/01/2016;
Irã diz sim à transexualidade. Disponível em < http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/ira-diz-sim-a-transexualidade-aoao2u271id5pekjf50a13qry >, Acesso em 16/01/2016;
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Garota Dinamarquesa cartaz

A GAROTA DINAMARQUESA

Direção: Tom Hooper
Elenco:
Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Amber Heard, Tusse Silberg;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação:
14

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A militância que arrasa: Bruna La Close e a livre orientação sexual no Amazonas

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Respeito à livre orientação sexual e reconhecimento ao nome social. Duas grandes bandeiras do movimento LGBT do Amazonas, reunidos no Seminário Norte de Humanização em Manaus. O evento foi realizado pelo Coletivo Norte de Humanização, apoiado pelo Ministério da Saúde. Apesar do nome oficial, anotado em registro de nascimento e em outros documentos oficiais, o movimento pela livre orientação sexual em Manaus quer reverter os casos de constantes constrangimentos, vividos, sobretudo, nas instituições públicas.

O Portal (En)Cena entrevistou Bruna La Close, presidente da Associação Amazonense de Lésbicas e Travestis, que destacou o trabalho na Capital.

Bruna La Close em entrevista ao portal (En)Cena

(En)Cena – Na primeira roda do Seminário Macro Norte de Humanização em Saúde você pautou a importância do nome social para o movimento LGBT. Quais as implicações que a não observação desse direito traz para o usuário do SUS?

Bruna La Close – A Humanização em Saúde faz parte de todos os direitos humanos, não somente dos direitos de gênero. O não respeito ao nome social acontece somente na esfera da saúde, na educação e em várias outras políticas públicas onde o travesti é usuário. Existe, a prática de você chegar no local de atendimento e irem sempre pelo nome do RG [Carteira de Identidade]. Essa é uma luta que o travesti traz: o nome social, como eu me identifico naquele momento, esse é o principal empecilho que a gente encontra. O constrangimento, onde eu estou e como vou ser chamada e é isso que acontece. É o nome social o principal, porque representa o respeito: Como ela deve ser chamada? Como ela gosta de ser chamada? Como ela deveria ser chamada?

Bruna La Close – Foto: Divulgação

(En)Cena – Você acredita que os profissionais na hora dos atendimentos, em todas as esferas do serviço público, são maus orientados para o trato com as pessoas representadas pelo movimento GLBT, por exemplo?

Bruna La Close – Quando a gente fala em movimento, tem que tratar movimento com todas suas especificidades, ou seja, colocar um hétero para falar com um gay, evidentemente, ele vai ter empecilhos tanto da parte dele, quanto da parte do gay. Porque ele não tem uma capacitação por questões de linguajar diferenciado. Inicia desde o tratamento. O travesti gosta de ser tratado como ela, e não como ele. Por aí já inicia a falta de respeito e, às vezes, o diretor, gestor da pessoa que está atendendo, já discrimina sem saber. É onde entra a falta de humanização, de conhecimento e capacitação dessas pessoas para atender a comunidade LGBT.

(En)Cena – Sobre essas demandas, quais os impactos que a mobilização social já produziu nas políticas públicas aqui no Amazonas?

Bruna La Close – A gente já tem aqui no estado do Amazonas, através da Secretaria de Assistência Social – SEAS, e da SEMARG, um pequeno projeto que busca a inclusão do nome social dos travestis. Ele foi concretizado através do governo do Estado, foi sancionado, só que não tem prática. Aliás, o setor público municipal não reconhece, por mais que você exija, mas não reconhece, ou seja, foi publicado, mas não foi trabalhada essa questão dentro das próprias esferas para que seja resolvida, colocada em prática.

(En)Cena – Qual o tipo de ação quando há um tratamento que vocês não aceitam?

Bruna La Close – A gente denuncia, porque às vezes, através dessa situação de constrangimento, gera uma discriminação, gera uma fobia. Qual é o nosso principal parceiro de denúncia? É a imprensa, quando a gente denuncia na imprensa, rapidamente tem uma resposta, mas daquela situação localizada.

(En)Cena – É algo pontual, momentâneo?

Bruna La Close – Cito um exemplo: Universidade do Estado do Amazonas – UEA, uma universidade muito forte dentro do estado, que discriminou barbaramente um homossexual, foi resolvido e o professor se retratou, mas através do movimento. Mas como? O “Movimento La Close” chegou à Universidade e informou a denúncia.

(En)Cena – São conquistas no dia-a-dia?

Bruna La Close – Então, não são conquistas que se diga que o governo, a prefeitura e demais esferas estejam com o movimento, mas o movimento lutando paralelamente que conseguiu a conquista tal, no momento tal.

Bruna La Close em entrevista para a Rede Bandeirantes durante a Parada do Orgulho LGBT 2012 – Foto: Divulgação

(En)Cena – Teria mais alguma coisa que você gostaria dizer sobre a humanização em saúde? Como essa política pode ser fortalecida?

Bruna La Close – Política de humanização, como eu disse anteriormente, é chamar! Você não vai tratar de uma política de humanização sem chamar o usuário, a população, a pessoa que sofre na pele. É o usuário que vai saber discutir o que ele passa, a situação do posto de saúde, do hospital. O usuário tem que estar presente, por que discussão de gestor para gestor, diretor para diretor, vai ser só discussão, um apoiando o outro e não se tem resultado de nada. O caminho é trazer a população para discussão.

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