El Camino de Compostela

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Nada tão humano quanto viver na terra sonhando com a redenção do paraíso, ter os pés colados ao chão pelos infinitos entardeceres, mas lançar a alma nas divinais manhãs onde sempre se reacende a esperança da eternidade.

Vida, mistério absoluto, cega tanto os arraigados à razão quanto os sedentos apenas de fé. Ninguém, por mais que anseie se liberta da ameaça constante do nada, da ‘coisa alguma’. Animais comem, se reproduzem e simplesmente morrem. Gente não, gente sonha, reza, ama, odeia e faz poesia para suportar o gosto amargo da fruta que ceifou pra sempre o éden. Maldita sina essa voracidade por conhecimento e o desejo de maravilhar-se com palavras, sons ou cores, pois advêm invariavelmente dessa fome, desalento e desamparo.

Definitivamente não há criação sem dor… Todos ao nascer partem para empreender longa caminhada, seja ela qual for e por onde quer que siga, ou ainda, quanto tempo dure. Só se para quando se morre. Chegar é que é a morte, já o viver é um eterno caminhar onde cada descanso traz nova cidade, novo espetáculo, novos atores…

Fui longe, muito longe para tentar decifrar a vida e não decifrei nada. Ao invés disso vi gente do mundo todo andando incansavelmente por pequenos e intermináveis caminhos de terra carregando a vida nos ombros. Vi outros já meio sem vida fugindo da morte estampada pela ausência radioativa dos cabelos, dos pelos… Vi muitos deles falando sozinhos com Deus, pedindo, brigando, agradecendo, praguejando.

Vi Deus entrando por rajadas de luz em florestas escuras de hayas e pinheiros onde se respirava o frescor das flores silvestres e o doce aroma das maçãs que iam caindo pelo caminho. Decifrei encruzilhadas e cruzei montanhas íngremes, guiado apenas por flechas amarelas pintadas toscamente em pedras no chão, mas com precisão absoluta que me levaram de vilarejos a palácios de épocas muito remotas. Cheguei às portas da cidade de Tiago e vi profetas enlouquecidos pregando o evangelho a paredes seculares que, cansadas, os escutavam pacientes enquanto artistas de rua entoavam árias em meio à revoada de pombos na imensa praça tomada por esfarrapados que riam e choravam a conquista do ‘caminho’.

Cheguei ao mar e vi do alto de um penhasco o ‘fim do mundo’ onde as almas dos tempos antigos davam saltos para o purgatório tentado encontrar logo o paraíso tão desejado. Vivi mil anos de História no interior de catedrais góticas onde a penumbra e o cheiro de vela trouxeram o passado no mais completo silêncio, fazendo ecoar vozes de reis e plebeus que ali foram devorados pelos séculos, desaparecendo por completo na mais profunda escuridão do tempo que inexoravelmente se foi.

Peregrinos, cavaleiros templários, andarilhos, artistas, todos iguais. Somos eles carregando o fardo da existência por entre longos caminhos que serpenteiam o viver com bosques, florestas, campos floridos e desertos. A vida é o Caminho de Compostela, nós, os peregrinos que buscam incessantemente sentido e razão. Que poesia, humor e humildade possam ser algumas das verdadeiras armas que valham a pena para que, se ao menos não podemos derrotar o inevitável, tornemos a jornada mais bela e suave, seja a nossa, a de seres amados ou simplesmente a de andarilhos desconhecidos que estarão sempre ao nosso lado.

Não sei se isso é uma espécie de oração cristã, mas se o for, que assim seja: amém.

 


Fotos: Lincoln Almeida

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Domínio Químico do Cotidiano

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Novamente a Napalm Sistema de Som investe seus ruídos analógicos & digitais na temática da biopolítica e seus emaranhados econômicos, criminológicos, normativos…

Na faixa Domínio Químico do Cotidiano – gravada no Cerrado Tocantinense e mixada no Pampa Gaúcho – compartilhamos o pensamento do professor de Sociologia e Antropologia da Universidade de Strasbourg, David Le Breton exposto na obra “Adeus ao Corpo: antropologia e sociedade” publicada originalmente em 1999.

Com sua visão critica frente a percepção do homem contemporâneo sobre seu “acessório corpo” o autor provoca nossa visão cotidiana com fatos dignos das narrativas futuristas e fantásticas de escritores do naipe de Julio Verne, H.G. Wells e William Gibson.

Para o Portal (En)cena o NSS selecionou fragmentos sobre as tecnologias psicofarmacológicas, que como qualquer invenção instrumental do homem pensante foi traduzida para as mais diversas oportunidades.

Atualmente a industria farmacêutica psicotrópica se presta para os mais variados momentos culturais: desde o controle disciplinar químico em prisões, manicômios judiciários, hospitais e/ou alas psiquiátricas, abrigos e centros socioeducativos (1) até o uso “recreativo” de jovens que no intituito de resistir aos seus diagnósticos aproveitam a disponibilidade para catalisar entretenimentos em coquetéis de faceirice dosados com produtos lícitos e ilícitos oferecidos no amplo e veloz mercado globalizado.

Ressaltemos que a Trilha em voga pauta mais uma tecnologia do mundo hodierno e que de modo algum a NSS utiliza uma nostalgia romântica de radicalidade contra essas maravilhas do mundo contemporâneo, entendemos que pela diversidade de usos culturais é apropriado trazer a temática a baila sem preconceitos ou moralinas ascéticas que por ventura possam ser encontradas em receituários alheios.

Referência

Le BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade; tradução Marina Appenzeller. – Campinas, SP: Papirus, 2003.

[1] Sugerimos aos interessados nessas questões de políticas públicas verificar com os órgãos responsáveis pelas Políticas de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente o montante de orçamento investido pelos Centros Socioeducativos de Internação na aquisição de psicofarmacos bem como verificar desse montante quais as fórmulas e laboratórios recebem as maiores fatias do mercado. Pode-se também comparar os diagnósticos, os receituários e os investimentos para entender a peculiaridade de cada “espaço pedagógico”. 

Faça o download da trilha: http://ulbra-to.br/encena/download/2012/01/26/Dominio-Quimico-do-Cotidiano/download

 

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