Reflexões sobre uma vida

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Neste mês de agosto, mais precisamente dia 15, foi meu aniversário. Não me importo muito com isso, nunca importei. Os meus sim, adoram, fazem apologia sobre.

Não há como, de alguma forma não me contagiar com tantas manifestações de carinho vindas de todos os lados. Este ano me quedei a prestar atenção em cada uma dessas mensagens (são todas lindas e com particularidades e minúcias únicas).

Vi que as pessoas que me amam e consequentemente admiram, lembram-se de mim como eu era, isso me fez pensar em um trecho da canção Lista de amigos de Osvaldo Montenegro: “Quantos defeitos sanados com o tempo eram o melhor que havia em vc.”

Tentei sanar várias coisas que eu julgava que eram defeitos e que algumas pessoas apontavam como sendo, no entanto, as pessoas me lembram e me enaltecem através do que deixei para trás.

Deixei de falar o que eu achava, na hora do fato ocorrido (isso incomodava), deixei de dançar, cantar alto e de falar palavrões (nem eram tão palavrões… eram sim rsrs). Deixei de ser tãooooo sincera, as pessoas não gostam, preferem seguir cegas, deixei que elas seguissem cegas, não sou a palmatória do mundo.

Segundo Selwyn Duke em 2009, “Quanto mais à sociedade se distancia da verdade, mais ela odeia quem as revela” (SELWYN DUKE, 2009)

Até semestre passado, brigava, ficava indignada, com os grupos de faculdade, como assim, como essas pessoas não se comprometem com suas responsabilidades escolares, como deixam nas costas do outro um dever que também é dele, como conseguem ficar nas costas do colega que se mata de estudar?

Em 2013 a APA já tinha uma definição para estes comportamentos e o denominava de narcisista, dando-lhe a seguinte descrição: “Indivíduos com falta de empatia e senso de direitos, tendo comportamento explorador e usando os demais em benefício próprio” (APA, 2013).

Pois bem, hoje sei que esta forma de agir pertence apenas ao outro, sigo sem questionar.

Talvez eu tenha apenas me anestesiado, tornado sem propósito, minha intencionalidade de chamar a atenção do outro com meus cartazes vermelhos brandindo dentro de minha ilusão de mudança de comportamentos. Meu grito foi se tornando solitário, assim como na poesia, meu poema se tornou preso, inacabado e não dito.  Não me importo mais com isso, e continua acontecendo, todo o tempo.

Fonte: Imagem de Sasin Tipchai por Pixabay

Enfim, em todos os casos cansei de julgamentos, cansei de pessoas sem compromisso. Hoje faço o que tenho que fazer e de uma forma ou de outra, continuo aprendendo, com os meus erros, e com o dos outros.

Perdi o melhor que havia em mim? Talvez sim, mas me sinto mais em paz sem ter que gritar erros tão aparentes de quem não quer enxergar. Talvez também, confesso, eu esteja acometida por um profundo enfado numa luta com o que tenho de ideal e o que existe de realidade. Talvez eu esteja frustrada com minhas ações sem efeito, talvez…

Penso também, que meu discurso poderá ter alguma empáfia de boa moça, não é minha intenção, talvez eu esteja (claro, que estou), bem inacabada e por isso, vejo sombras distorcidas através da minha própria caverna.

Escrevi este texto ano passado, e ele nunca me pareceu tão atual, a única ressalva que eu faria é que neste ano poucas pessoas se lembraram, talvez tenha sido pelas máximas que descrevi no ano passado, já não sou tão esfuziante como antes, sigo minha trajetória sem alarde, e sem querer seguidores, nem de likes faço questão.

As pessoas no dia a dia gostam de quem lhes prestem reiteradas curtidas, quem lhes cultuem, os egos estão inflados, e cada vez mais egoístas. A famosa frase faça ao outro o que desejas para ti, não se aplica na contemporaneidade, o que se aplica é fazer a mim, só a mim e se der tempo entre um minuto e outro, faço ao outro, mas apenas se der tempo.  Posso estar sendo pessimista, atribuo ainda ao meu enfado, talvez esteja longe da verdade do outro, mas o que seria a verdade no outro, e em mim mesma?

Sobre as verdades Nietzsche diz,

“As verdades são ilusões que foram esquecidas enquanto tais. Metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas de seu sentido, moedas que perderam o seu cunho e que agora são consideradas, não só como moedas, mas como metal.” (NIETZSCHE, 2005, p.13). Citação que reitera minha forma atual de crenças.

De ontem afirmo o que digo, de hoje, acredito que minha imaginação percorreu um caminho solitário e utópico, me levando a ter considerações menos afetiva em relação aos meus próximos, o que indubitavelmente me leva ao mesmo patamar de comportamento dos mesmos, porém, a mim imputo o enfado, mas jamais a irresponsabilidade de desistir do que a mim é conferido.

Continuo me parabenizando, entre tropeços e percalços, continuo lutando e tentando mesmo em desesperança, fazer do meu entorno um lugar melhor. Enfim, feliz niver pra mim e para quem está por fazer. Sejam quem quiserem ser, mas tentem ser uma versão melhor de vocês mesmos.

REFERÊNCIAS

AZZI, Isabel Cristin de Souza (2007). Realidade: uma razão que não se explica, mas se crê. https://doi.org/10.1590/S1516-14982007000200007  . Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/NgGGQV5PtFLJCYh3xvKHJDD/?lang=pt#. Acesso em 24/08/2022

CANDIDO, Juaridi;  et.al (2020) Essa eu vou postar: Explorando as relações entre narcisismo, uso do Instagram e a moderação da autoestima. Psicol. Conoc. Soc. vol.10 no.2 Montevideo  2020  Epub 01-Ago-2020. Disponível em: https://doi.org/10.26864/pcs.v10.n2.3 . www.scielo.edu.uy/scielo.php?pid=S1688-70262020000200038&script=sci_arttext. Acesso em 24/08/2022.

PACHECO Clarissa (2022). Frase sobre “ a Sociedade se distanciando da verdade”, não é George Orwell. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/george-orwell-quanto-mais-a-sociedade-se-distancia-da-verdade/. Acesso em 24/08/2022

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Verdade: qual nos libertará?

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Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Como identificar a verdade libertadora numa galáxia de fake-news, ideologias e opiniões? Há quem tenha as suas verdades que estão atreladas aos próprios valores da pessoa. São verdades subjetivas. Podemos compartilhar delas ou contestá-las; aplaudi-las ou vaiá-las. Mas onde está a verdade libertadora? Para mim, está na realidade e no nosso comportamento.

Verdade incontestável: a realidade. Nossos desejos não a influenciam. Há quem adie exames médicos temendo o diagnóstico. Adiá-los não muda o resultado. Enfrentá-lo é angustiante, mas é o primeiro passo rumo à cura se houver doença. Covid: trágica e real. No mês de março, 201 entes queridos perderam a vida para o vírus; em julho, foram mais de 32.000. É como imaginar a queda de quase 110 aviões com 300 vítimas fatais no mês de julho. E há quem suponha que o vírus seja invenção da mídia, quem duvide das mortes e quem acredite em caixões vazios. Coveiros 10diariamente carregam lágrimas, dores e sonhos destruídos. Somos livres para fugir da realidade, mas não para escapar das consequências do que não queremos ver.

Fonte: encurtador.com.br/syIQ5

Verdades contestáveis: as individuais. Há quem ao lidar com fracassos financeiros, profissionais e pessoais culpa os outros ou algo, ou lamenta que confiou nas pessoas erradas. Há sempre sinais de alerta rondando nossas vidas. Precisamos estar atentos. Assumir nossa parte nos próprios fracassos, é investir na sanidade mental. Senão, seremos meros espectadores lamuriantes da vida.

Verdade incontestável: somos todos pecadores. O filósofo Baltasar Gracián escreveu: “Melhor não errar nem uma vez do que acertar cem. Ninguém olha diretamente para o sol quando ele brilha, mas todos o fazem quando ocorre um eclipse. Os acertos, por mais numerosos que sejam, não atraem metade da atenção de um único fracasso. Os perversos são mais conhecidos pelas críticas do que os bons pelos elogios. Esteja certo de que a malevolência notará todos os seus defeitos e nenhuma de suas virtudes.” Gracián faleceu em 1658. Suas palavras mostram que os atuais cancelamentos e justiças virtuais são o hábito milenar de atirar pedras em nova roupagem. É de se supor que quem as atira jamais pecou.

Fonte: encurtador.com.br/hjopM

Verdade verdadeira. Há quem prefira se embrenhar numa teia de mentiras para justificar erros ou comportamentos. A verdade tem a vantagem de ser econômica por ser uma só, poupar a memória de estresse desnecessário e poder ser repetida. Verdade e liberdade caminham juntas. Uma pessoa que tema ter sua casa e sua vida investigadas, aprisionou sua liberdade e tornou-se exilada na vida. A frase da escritora Helen Keller (1880-1968) reflete, para mim, essa verdade que liberta: “nunca se pode concordar em rastejar, quando se sente ímpeto de voar.”

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O Homem é condenado a ser livre: sob ótica sartreana

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Seguindo uma ótica Sartreana, pautando-se numa visão existencialista propriamente dita, Deus de fato não possui existência no plano real, mas no imaginário de cada ser e, portanto, individual. Ainda assim, o homem com todas as suas crenças e perspectivas afirma a presença de Deus como forma de explicar as circunstâncias do mundo em que ele se insere.

Pensar em um mundo sem a presença Deste, é perceber, interpretar o homem enquanto responsável pelos fatos e situações que o perpassam, o que é, de fato, doído, angustiante e desesperador, isto equivale a dizer que, então, o homem é o dono dos acontecimentos prazerosos e não-prazerosos que acontecem a ele, já que és sujeito de escolha.

Este é um ponto crucial e paradoxal dos escritos de Jean-Paul Sartre. Se Deus não existe, o homem deve a partir de si mesmo criar, construir sua própria razão de existir e ser/estar no mundo, pois o ser nasce nada, e precisa procurar estratégias para se consolidar e tornar alguém, não há parâmetros exatos para tais questões, ela por si mesma não detém de sentido.

Fonte: encurtador.com.br/gvwzR

E nessa ótica, o sentido é incerto, duvidoso. Mas para que esta busca de sentido seja de fato concretizado, idealizado é necessário ter a plena liberdade, no sentido de ter a possibilidade de fazer/ realizar tudo aquilo que não está determinado, e isso significa, por vezes, ir além do dito moral, ético que está permeado no social, seguindo e sendo de alguma os seus próprios juízos.

O homem deve dialogar com a vida, e procurar singularmente o sentido para esta, fazer-se enquanto tal, e isto não quer dizer que o encontrará, o sentido é incerto, mas que na realidade é uma construção em vão, a vista que ela em si mesmo não tem sentido.

As consequências desencadeantes pela intensa busca de sentido existencial  pode resultar em uma série de questões psicológicas, emocionais e físicas. O ser humano deve procurar e/ou criar a razão pela qual existe, pode não encontrá-la, não construí-la e não vivê-la, e sequencialmente, cair na obscuridade do não-sentido, já que não existem garantias. Consequencialmente, ter de lidar com a incerteza do sentido.

Fonte: encurtador.com.br/epY04

E nisso, podem se deparar com vivências, experiências que estão se tornando corriqueiras na atualmente, a saber,  a dor de existir, o vazio, a angústia – a náusea e por último, a morte. De tudo isso emerge o sentimento de impotência perante a vida humana.

Nesta busca de sentido para sua existência, o sujeito  tem a total liberdade para construir a si mesmo, definindo-se por si mesmo quem ele é, já que de início não há possibilidade de definir o homem, pois a existência precede a essência, em última instância o homem nasce despossuído de tudo, projeta-se e passa a se moldar, fazendo suas próprias escolhas, e em consequência disso,  ter de se confrontar com a possibilidade de negar a um Deus, já que a liberdade somente existe se não há a interferência de um ser supremo para dar apoio, mostrar caminhos, ou para ser usado como desculpas para determinados comportamentos.

Contudo, o resultado disso tudo pode ser a angústia existencial/ vazio existencial de perceber-se enquanto responsável pelo que te acontece, se vendo não mais com a possibilidade de culpabilizar o ambiente externo, ou mesmo não sentir que ela é de sua responsabilidade.

Fonte: encurtador.com.br/jpSX8

Para Jean-Paul Sartre a liberdade é palavra tem demasia correlação com o termo responsabilidade. A primeira aparece em Sartre de uma maneira a soar estranheza, mas logo faz emergir-se da segunda, o que minimiza controvérsias. A verdade é que o homem é dono de si e escolhe como agir frente a diversas circunstâncias que perpassam a vida humana diante das possibilidades que são apresentadas, em busca de seu sentido, pois para tal é preciso de liberdade,  mas logo tem se reparar com os resultados consequentes destes comportamentos, ou seja, a liberdade é custosa. O homem é livre para escolher como agir em determinadas circunstâncias, mas também deverá arcar com as consequências sociais interpeladas pelo seu agir diante de si e dos outros.

Referência:

SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo.1946

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Aproximações e distanciamentos: além da insubstancialidade

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De acordo com Joaquim Monteiro (2015), até bem pouco tempo a Filosofia da Religião se calcava, basicamente, em problemáticas que tinham como base a dinâmica das construções argumentativas em torno do teísmo, seja na tentativa de corroborá-lo, seja na tentativa de desenvolver um arcabouço de conhecimentos que gira em torno de conceitos como “essências, substâncias e Verdade” (MONTEIRO, 2015, pág. 3), que invariavelmente tenderiam a convergir para a questão da existência (ou inexistência) de Deus. Assim, elas [as tendências] teriam desenvolvido um quadro temático

extremamente limitado na medida em que consideram o teísmo como a questão central e a essência auto evidente da religião. A meu ver, este posicionamento das tendências dominantes da filosofia da religião acaba limitando-se à reconstrução de algumas temáticas tradicionais, obstaculizando desta forma um questionamento mais radical a respeito do que constitui a essência das religiões. (MONTEIRO, 2015, pág. 3)

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Joaquim Monteiro diz que não há dúvidas de que “a filosofia precisa interessar-se pelas asserções de verdade das religiões” (idem, pág. 4), mas que as perspectivas e problematizações levantadas neste âmbito teriam que levar em conta as principais configurações antagônicas – históricas e/ou contemporâneas – para que se evite cair numa postura limitante, numa polarização entre o teísmo e o materialismo mecanicista. Haveria, portanto, outras matizes para delinear tal diálogo. Monteiro lembra que o Budismo, por exemplo, não se enquadraria em nenhuma destas duas vertentes. Para ele,

o discernimento da impermanência, da insatisfatoriedade e do vazio de categorias como os “agregados” […] exclui de forma radical a perspectiva teísta, mas ao mesmo tempo, a distinção clara presente na filosofia budista entre os “dharmas da mente” e os “dharmas da forma”, assim como a resoluta negação de que os “dharmas da mente” possam se extinguir naturalmente constitui-se como uma clara recusa de qualquer perspectiva de um materialismo mecanicista. (MONTEIRO, 2015, pág. 4)

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O monge trapista Thomas Merton estabeleceu profícuo diálogo com os budistas

As implicações primeiras desta constatação, de acordo com Monteiro, é a de que “na medida em que uma das religiões mundiais explicita um ponto de vista crítico em relação tanto ao teísmo quanto ao naturalismo esse ponto de vista não pode ser ignorado por uma filosofia da religião” (idem, pág. 5). Com isso, sendo o Cristianismo – e todas as suas vertentes filosóficas – a maior expressão atual do teísmo, e embora as tendências da Filosofia da Religião tenham atingido elevados patamares de rigor e sofisticação “através dos procedimentos da filosofia analítica” (idem, pág. 3), elas precisam de contraposições filosóficas radicais para que possam levar algumas questões até as suas últimas consequências. Desta forma,

Uma interrogação radical a respeito da essência da religião não pode ignorar de forma alguma que o pensamento budista representa o contraponto filosófico mais forte ao ponto de vista dos monoteísmos. Uma filosofia da religião que ignore esta realidade do Budismo como o mais forte e mais sistemático contraponto ao teísmo entre as religiões mundiais está fracassando de forma essencial em sua interrogação sobre a essência da religião por mais rigorosos que possam ser os seus instrumentos lógico-semânticos.  (MONTEIRO, 2015, págs. 4 e 5)

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Monges cristãos visitam comunidade budista (tibetanos) no Nordeste da Índia

Joaquim Monteiro diz, no entanto, que “não é fácil pensar o vínculo necessário existente entre a filosofia e a religião em meio ao pensamento budista” (idem, pág. 5).  Isso porque, no cerne do Budismo, pressupõe-se “uma passagem da ignorância para a sabedoria mediada pelo ensinamento do Buddha” (idem, pág. 5). Por esta ótica, o exercício da filosofia se dá “como um processo de auto conhecimento e de auto transformação” (idem, pág. 5). E embora essa definição possa parecer vaga, é importante destacar aqui que a filosofia budista “não só pressupõe um conjunto de conceitos articulados de forma clara e rigorosa, como possui também uma história do desenvolvimento de suas temáticas” (idem, pág. 5).

A meu ver, o campo das temáticas da filosofia budista se define por um lado através da consolidação da “teoria dos dharmas”16 na escola Sarvãstivãda, e por outro, em função das sucessivas críticas desenvolvidas em relação a esta teoria por escolas posteriores como a Sautrântica e a Yogacãra. Nesse sentido, é possível falar não só de temáticas teóricas constitutivas da filosofia budista, como também de uma história da filosofia budista. (MONTEIRO, 2015, pág. 5)

 De acordo com Joaquim Monteiro, há uma explicação sobre a “teoria dos dharmas”, empregada num âmbito mais restrito [de estudo do Budismo], que aponta para a categorização dos “5 agregados”, das “12 entradas” e das “18 esferas”, sendo estas últimas uma tentativa de abarcar a chamada “gênese condicionada”. Esta divisão elucida uma das questões centrais para a discussão filosófica oriental, a da diferenciação entre dharma e fenômeno.

Especificamente sobre as “18 esferas”, trata-se das

6 bases sensoriais (os cinco sentidos mais a mente entendida como um processo de captação dos processos mentais imateriais), os 6 objetos (os objetos dos cinco sentidos e os eventos mentais sem referência sensorial) e as 6 consciências que surgem da interação entre as bases e os objetos. Essa categoria analítica possui dois aspectos importantes. No primeiro deles, ela inclui toda a experiência possível, mental e sensorial. Ou seja, essa categoria pressupõe a capacidade de abarcar em si a totalidade da experiência possível. Na segunda, ela pressupõe a análise das características comuns de todas as “18 esferas”, ou seja, da impermanência, da insatisfatoriedade e do vazio de ãtman comuns a todas essas “18 esferas”. Essa segunda característica nos conduz ao problema de sua relação com o mais importante objeto de negação na filosofia budista: o conceito de ãtman”. (MONTEIRO, 2015, pág. 7)

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Vale destacar que, ao não aceitar o conceito de ãtman, a negação se dá pela própria categorização das esferas, tendo em vista que a existência do “ãtman só poderia se dar como algo idêntico às esferas, como idêntico a alguma das esferas em particular ou como distinta de todas as esferas” (Idem, pág. 7). Desta forma, caso uma existência seja pensada pela ótica das “esferas”, como cada “uma das esferas está associada a um domínio específico da experiência, existe aí o referencial concreto de consciências auditivas, mentais ou visuais mas absolutamente nada que possa tornar-se o referencial do ãtman” (idem, pág. 7).

Desta forma, levando-se em conta que todas as esferas são “impermanentes e insatisfatórias nenhuma delas apresenta a característica do ãtman”. Já sobre a diferença entre dhama e fenômeno, Monteiro diz que a categorização pelas “18 esferas” também acaba por elucidar os contrastes.

No que diz respeito ao conceito de “fenômeno” como aquilo que aparece ou aquilo que vem à luz, em contraste com a “ideia do gato” presente no mundo platônico das ideias, o gato concreto sujeito ao nascimento e à morte como um indivíduo seria o “fenômeno”. Ou seja, conceito de gato como “fenômeno” implica em sua unidade. No entanto, o conceito das “18 esferas” decompõe essa unidade em uma multiplicidade. (MONTEIRO, 2015, pág. 7)

Desta forma, em Monteiro (2015), a aplicação do conceito de “dharma” à análise da experiência conduz necessariamente à dissolução da unidade em multiplicidade. No entanto, surge um problema ainda não resolvido e que, portanto, poderia ser alvo de novas investigações em trabalhos futuros: é possível estabelecer mediações entre o autoconhecimento e autotransformação subtendido na filosofia budista com as provocações concretas de historicidade, ética e política?. Monteiro diz que esta indagação está em aberto e que aponta para um sentido de “liberdade absoluta” e “liberdade relativa”, no arcabouço filosófico budista.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Editora Vozes, 4ª. Edição, 1999;

GUERIZOLI, Rodrigo. Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”? – Cadernos de Filosofia Alemã (nº 11 | P. 57 – 82 | JAN-JUN 2008). Disponível em < http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/download/64788/67405 > – Acesso em 06/09/2015;

NORBU, Lama Zopa. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube de Autores, 1ª. Edição, 2010;

USARSK, Frank. O Budismo e as Outras. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2009;

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1995;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013;

DOURADO, Saulo Matias. A distinção entre vontade própria e desprendimento em Mestre Eckhart. Revista de Filosofia v.6, n.2, dezembro/2012;

WILKINSON, P. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. Tradução de Beth Vieira. 2ª edição. São Paulo. Publifolha. 2002;

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O Movimento Focolares. Disponível em < http://www.focolare.org/pt/in-dialogo/grandi-religioni/ > – Acesso em 15/07/2015;

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XAVIER, Maria Leonor. O Cristianismo e a Filosofia Ocidental – I Colóquio sobre Filosofia da Religião (2001). Disponível em < http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html > – Acesso em 15/09/2015;

SCHUON, Frithjof. De l’Unité transcendante des Religions. Disponível em < http://www.frithjof-schuon.com/unite.htm > – Acesso em 26/09/2015;

MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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Sobre a tragédia do Charlie Hebdo: Humor X Fundamentalismo

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Ao ingressar na linguagem o ser humano perdeu para sempre o paraíso. A linguagem como recurso simbólico – nosso instrumento para lidar com o mundo – não é capaz de alcançar o real ou a “coisa em si”, sendo assim, a verdade que alcançamos em qualquer aspecto, será sempre uma meia verdade. Isso quer dizer que no campo da linguagem, qualquer tipo de discurso que se utilize produz alguma espécie de mal-entendido. Em resumo: somos seres condenados ao mal-estar.

 

 

Mas o que cada um fará com este mal-estar é diverso e singular. Entretanto, para efeito deste ensaio vou agrupá-los em dois tipos. Há formas discursivas que assumem e acolhem o mal-estar e outras que negam ou rejeitam o mal-estar e que representam, basicamente, duas maneiras de lidar com a verdade. No primeiro grupo estão as formas discursivas que entendem que não existe uma verdade única ou A Verdade, o que existe são meias verdades, ou seja, diferentes maneiras de enxergar uma mesma coisa. No segundo grupo estão as formas discursivas que acreditam que exista um saber universal e imutável. Neste modo de lidar com a realidade acredita-se ser possível se livrar do mal-estar buscando A Verdade; uma única verdade totalizadora capaz de responder todas as questões e, consequentemente, anular todas as diferenças.

No evento ocorrido na França onde religiosos fundamentalistas atacaram o jornal Charlie Hebdo, ao que parece, em retaliação às charges de humor que estes publicavam sobre o Islamismo, temos representantes dessas duas maneiras de lidar com o mal-estar. O humor é uma forma discursiva que acolhe e assume o mal-estar. O humor não nega o mal-estar, pelo contrário, ele sobrevive do mal-estar. Sua intenção é exatamente provocar riso a partir do mal-entendido. Ao avacalhar e desmoralizar o mal-estar, o humor denuncia-o e ao mesmo tempo lhe da leveza, tornando-o acessível ou suportável.

Já o discurso religioso – especialmente no caso das religiões fundamentalistas – tem a pretensão de rejeitar o mal-estar. Acreditam que exista uma verdade totalitária e imutável – exatamente a que professam ou que acreditam – única capaz de dar conta de todo e qualquer mal-estar. A proposta neste caso é: “Aceitem a minha Verdade – a única – e se livrem do mal-estar”. E certos de que estão diante dA Verdade, esses “religiosos” por vezes se tornam capazes de quaisquer atos extremos em nome dela. Em nome desta Verdade Universal pretendem apagar as diferenças, mesmo que para isso precisem fazer uso de medidas violentas.

Jacques Lacan, psicanalista francês, chamou este modo discursivo que tenta encontrar o Todo Saber ou o Saber Universal, de Discurso Universitário. Sua intenção ao levantar tal tema em 1969, era fazer uma crítica ao que a ciência e a própria psicanálise vinham se tornando, especialmente nas Universidades: saberes dogmáticos, engessados e duros.

Sendo assim, o fundamentalismo ou dogmatismo não é privilégio das religiões, apesar de ficar mais obvio enxergar nelas este tipo de visão de mundo. Há fundamentalismos erigidos em nome da ciência e da psicanálise. Há fundamentalismos nos movimentos sociais e políticos. Há fundamentalismos no discurso ecológico e no feminista. E há fundamentalismos de esquerda e de direita.

Leonardo Pandura, no livro O Homem que Amava Cachorros, narra os últimos dias do revolucionário russo Leon Trotsky e parte do desenrolar da revolução comunista na Europa. O que mais me chamou a atenção no livro é de como os ideais da Revolução Comunista e da filosofia Marxista foram transformados num dogma burocrático, tão duro e engessado, como o de qualquer religião fundamentalista. A revolução comunista, que tem como princípio rejeitar o discurso religioso por considerá-lo reacionário, vai se tornando ela mesma, com o caminhar da revolução, um emaranhado de dogmas e burocracias que acabam por pretender o mesmo que qualquer fundamentalismo religioso pretende: perseguir uma verdade única e acabar com todas as diferenças. Trotsky, inclusive, é assassinado por este motivo.

O que quero dizer é que nenhum tipo de saber: científico, político, religioso ou filosófico, está imune ao fundamentalismo. Basta que se pretenda negar o mal-estar, perseguindo uma verdade única e acabando com as diferenças.

Voltando ao caso Charlie Hebdo, podemos até questionar o bom gosto do humor que produziam. Podemos até concluir que suas charges incitaram sim o ódio e a revolta de fundamentalistas religiosos. Mas não podemos de maneira nenhuma acreditar que, por causa disso, não deveriam ter produzido humor que produziram durante todos esses anos. Porque o humor não pode ser covarde, não pode evitar o mal-estar. E por rejeitar uma verdade que seja toda ou um único modo de enxergar o que nos cerca, o humor é sempre revolucionário. Mesmo que seja de mau gosto, mesmo que pise em minorias, mesmo que reforce estigmas, o que o humor tem a seu favor é sempre o fato rejeitar uma verdade única. O humor é capaz de aceitar o mal-estar como parte integrante da vida e das nossas relações, o que é fundamental para arejar o conjunto de verdades que vamos construindo sobre as coisas.

Isso não quer dizer que o humor esteja acima da lei, ou acima do bem e do mal. Se o humor ultrapassa limites legais estabelecidos deve responder e ser responsabilizado por isso, este é o preço que arriscam pagar por evidenciarem o mal-estar, faz parte do jogo. Mas, quando falamos do limite do humor, não é possível pensarmos que tal limite possa ser estabelecido à priori. Se burocratizarmos ou dogmatizarmos o humor, ditando normas e regras para que ele aconteça, iremos mata-lo, pois será mais um discurso cheio de verdades estabelecidas.

Os cartunistas da Charlie Hebdo, possivelmente, preferiram assumir o risco do humor que produziram. Mesmo não achando nenhuma graça de algumas charges que vi circulando por aí (quem sabe influenciada pela tragédia ocorrida) acredito que eles estavam certos em não se acovardarem diante da missão do humor: denunciar verdades únicas e imutáveis, desconstruir visões de mundo estreitas e fundamentalistas, desmontar dogmas e debochar de certezas.

Já temos gente demais vomitando certezas neste mundo. Já temos teorias, instituições, seitas, religiões, regras e livros de autoajuda suficientes para nos dizer como encontrar A Verdade, Verdade essa capaz de acabar com todo o mal-estar que não cessa de se impor sobre nós. Temos gente demais empunhando suas certezas como se fossem armas, e eles não recuam se precisarem atirar. E o humor será sempre um bom antídoto contra isso.

Eu não vou escolher um lado no caso Charlie, porque não tenho conhecimento suficiente da situação para fazê-lo. Não sei se eles foram longe demais, se ultrapassaram algum limite ético ou legal. Eu não sei como vivem as minorias islâmicas na França. E também não acho que empunhar uma caneta seja um ato inocente, e nesse caso, não havia nenhuma pretensão que fosse. Mas se eu tiver que escolher entre o fanatismo religioso ou qualquer outro tipo de fundamentalismo e o humor, eu fico com o humor. Sempre.

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