“Coringa”: cultura cosplay e copycat gerou o Palhaço do Crime

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Concorre com 11 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Ator, Fotografia, Figurino, Direção, Edição, Cabelo e Maquiagem, Trilha Sonora Original, Edição de Som, Mixagem de Som e Roteiro Adaptado.

Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos.

Para muitos pesquisadores em Sincromisticismo, desde que o Coringa surgiu em 1940 nas HQs, o personagem transformou-se em uma forma-pensamento autônoma, um arquétipo que paira sobre o tempo. Mas como produto da indústria do entretenimento, ele também reflete o espírito de cada época, do Coringa bufão de Cesar Romero nos anos 1960 psicodélicos à inteligência sinistra do Coringa de Heath Ledger. Em “Coringa” (Joker, 2019) o Príncipe Palhaço do Crime ganha uma atualização, dessa vez um “spin off”: as origens do Coringa numa Gotham City vintage, mas que pode muito bem ser o espelho da nossa época. O Coringa de Joaquim Phoenix (numa interpretação assustadora onde, mais uma vez, um ator pagou o preço psíquico para encarnar o personagem) reflete a atual onda de ódio e ressentimento articulados pela Deep Web, fóruns e chans na Internet e pelo populismo de direita. Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual dominada por um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle.

O Palhaço do Crime; O Príncipe Palhaço do Crime; O Flagelo de Gotham; Arlequim do Ódio; O Bobo do Genocídio; O Ás de Valete. Ou simplesmente “Joker” ou Coringa, supervilão criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane e que apareceu pela primeira vez em Batman #1, de abril de 1940.

De acordo com o plano inicial, o Coringa deveria ter morrido na sua primeira aparição, mas foi providencialmente poupado por uma decisão editorial, permitindo que fosse progredindo até se tornar não apenas um palhaço psicopata. Coringa tornou-se o arquétipo do psicopata: no ranking das mais populares formas-pensamento do século XX, ele é praticamente um deus.

Fonte: página oficial do filme

Numa espécie de “top of mind” das marcas dos personagens das HQs feita durante a produção de Batman do diretor Tim Burton, a pesquisa apontou que a bat insígnia ocupava a segunda colocação, logo após a imagem do sorridente rosto do Coringa – hoje o Coringa ocupa o segundo lugar no Top 100 dos vilões das HQs.

Como poderoso arquétipo ou forma-pensamento com forte energia psíquica capaz de influenciar não só as mentes como as próprias ações, o personagem acumula um histórico de estranhos efeitos nos atores que o encarnam, assim como inúmeros relatos de efeitos copycats – ataques e atiradores figurando como cosplayers assassinos na vida real – veja os links ao final.

Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos.

Fonte: página oficial do filme

Coringa (Joker, 2019), do diretor Todd Phillips (Se Beber, Não Case e Escola de Idiotas), é uma incursão ao mesmo tempo vintage e realista, bem diferente das versões cinematográficas do Coringa: sem aspirações artísticas vanguardistas de Jack Nicholson, ou a inteligência cínica e sombria de Heath Ledger, ou ainda a comprometedora versão de Jared Leto, na qual o Coringa parecia mais um tipo de MC ostentação.

O logotipo retro da Warner Bros. que abre o filme indica que estamos em algum lugar entre as décadas de 1970 e 80. Os planos de câmera e a direção de arte que reconstroem a Gotham City emulam a estética do novo realismo Hollywood daqueles tempos em filmes como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982) – filmes protagonizados por anti-heróis perdedores em sociedades duras e violentas.

Coringa é um estudo triste, lento e caótico das origens do icônico vilão das HQs. Alguém que não é visível, anônimo numa cidade em crise econômica e imersa em sacos de lixo causada por uma greve dos serviços públicos.

Enquanto até aqui todas as histórias com o vilão o figuram como um personagem (caricato sempre em tons fortes sem muitas sutilezas), aqui Todd Phillips, ao lado do roteirista Scott Silver, estão mais interessados na composição mental, moral, emocional e física de um homem simples e esquecido e que se tornou o Coringa

Isso exigiu um tour de force do ator Joaquim Phoenix (e, como sempre, o arquétipo do Coringa cobrou-lhe o preço emocional e psíquico para encarná-lo, clique aqui): a atmosfera é sempre acinzentada e os planos de câmera sempre fechados no ator – tanto seu rosto como seu corpo são minuciosamente observados por nós, assim como sua lenta transformação no palhaço do crime.

O filme até aqui provocou críticas divididas em torno do debate de como Coringa representa temas sombrios atuais (principalmente a desigualdade e intolerância ao lado do crescimento do ressentimento e ódio), além de cadeias de cinema nos EUA proibirem a entrada de cosplayers do personagem – clique aqui.

Nesse ponto é que Coringa se torna ainda mais interessante: ficção e realidade se tocam quando o próprio Coringa figurado no filme é um produto da mídia que, afinal, não resiste a um personagem com uma boa storyline e punchline. Tirando do anonimato um perdedor que repentinamente vira um símbolo político de explosão da revolta e ressentimento, criando um gigantesco efeito copycat – aproximando-se da realidade.

Fonte: página oficial do filme

O Filme

Gotham City. Os moradores estão imersos em montes de sacos de lixo na frente de cada porta, sob um céu sempre de cor chumbo. Os tempos são difíceis: há desemprego, pobreza e falta de perspectiva. E um novo candidato a prefeito: o milionário Thomas Wayne (Brett Cullen), que apenas desperta o ressentimento outrora latente.

Alheio a tudo isso, encontramos Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), um cara aparentemente gentil que gosta de fazer as pessoas sorrirem. Ele é um palhaço profissional com uma relação problemática com seus colegas da agência de clowns e um aspirante a comediante de stand-up.

Ele é uma das vítimas de “tempos malucos”. Ele próprio é um ex-interno de um hospital psiquiátrico vivendo à margem da sociedade tentando ter um emprego regular – sobe escadarias sem fim, passa por corredores mofados em uma vida de cortiços sombrios, caixas de correios vazias e elevadores quebrados.

Ele é espancado, zombado e abusado. Não se envolve com o mundo. A vida cotidiana para ele é difícil, pois as regras e os códigos que estruturam a sociedade permanecem desconhecidas para Arthur. Sua condição é de alienação, em grande parte devido a uma condição mental que causa risadas incontroláveis (geralmente nas piores situações) enquanto os olhos estão cheios de dor e tristeza.

“Só não quero mais me sentir tão mal”, sussurra Arthur para a assistente social que o acompanha: ele quer mais remédios, além dos sete prescritos. Logo mais não terá nenhum, com a política de austeridade da prefeitura que está cortando todos os serviços sociais.

É um sistema que agora não tem mais tempo ou recursos para gente como ele. Isso será simplesmente o início da descida do caminho para encontrar o Coringa dentro de si mesmo.

Fonte: página oficial do filme

Mas tudo muda quando, com muita relutância, aceita um revólver de um companheiro de trabalho para se proteger dos assédios de um palhaço que trabalha nas ruas. Em um metrô barulhento, sujo e pichado de grafites pela primeira vez Arthur revida e atira em três jovens yuppies grosseiros de Wall Street – depois do assédio malsucedido em uma mulher, resolvem descontar sua raiva no pobre palhaço.

Após essa primeira explosão de violência brutal, Arthur adquire autoconfiança. Seus movimentos se tornam elegantes, seu corpo magro e arqueado agora é ágil, gracioso. As mortes no metrô ganham as manchetes na TV, desencadeando um gigantesco efeito copycat: centenas de pessoas saem às ruas com máscaras de palhaço para se levantar contra os ricos.

Não era o tipo de reação que Arthur queria… mas é uma reação e ele aceita. Afinal, faz ele saber que existe e que suas ações significam algo para alguém. Cria-se então um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle – manifestantes nas ruas usam a máscara do palhaço, incitando Arthur a dar continuidade a sua nova persona. Aos poucos, Arthur descobre que o seu talento não é o humor, mas a expressão da raiva multiplicada.

No final, humor e explosão da raiva e violência são a mesma coisa: é tudo uma questão de timing.

Fonte: página oficial do filme

O Coringa do nosso tempo

Arthur sonha em sair do anonimato de humilhações da vida de um zé-ninguém, até descobrir que o talk show de Murray Flanklin (Robert de Niro, numa perfeita alusão aos filmes Rei da Comédia e Taxi Driver) apenas o convidou para mais uma vez ser humilhado – um vídeo de um show de stand up bizarramente sem graça de Arthur foi o motivo da produção convida-lo.

O Coringa desse filme definitivamente tem algo a dizer sobre o nosso tempo. O Coringa de Christopher Nolan em O Cavaleiro das Trevas era uma agente do caos que queria provar que no final as pessoas são terríveis e cruéis e escondem tudo isso com hipocrisia. Mas Nolan mostrou que Gotham se recusava à explosão de uns contra os outros.

Mas em Coringa temos o contrário: Arthur é perturbado e violento e todo mundo ao redor dele é cínico e paranoico. Os ricos e as estrelas da mídia são terríveis e as pessoas comuns ainda piores – uma multidão de saqueadores, assassinos que está apenas em busca de um pretexto para entrar na selvageria.

Fonte: página oficial do filme

Cada Coringa refletiu o espírito da sua época: o Coringa de Cesar Romero da década de 1960 era um bufão engraçado e sintonizado com a psicodelia da era hippie. O Coringa de Jack Nicholson aspirava ser um vanguardista que transformava o crime em arte – releitura de Tim Burton associada à estética dark de seus filmes. O coringa de Heath Ledger era cerebral e adulto. Ao contrário de Jared Leto, sintonizado com a cultura jovem contemporânea.

E o Coringa de Joaquim Phoenix reflete a atual onda de ódio e ressentimento bem sucedidamente articulados tanto pelo populismo de direita internacional quanto pela Deep Web, fóruns e chans na Internet: “Incels” (Celibatários Involuntários), “Hominis Sanctus”, PUA (Pick-up Artists), formas violentas de socialização masculina (macho alpha etc.) e uma variedade de pseudociências e conspirações LGBTs e feministas contra os homens.

O príncipe do Crime de Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual – uma máscara ou persona (assim como foi o efeito copycat da máscara do Anonymous nas manifestações de rua) que empodera o ressentimento de uma massa de excluídos da globalização. Só que levados a autodestruição e anomia, bem ao gosto da atual extrema-direita, a “alt-right”.

Se Nolan ainda buscava um fio de resistência humanista em Gothan City contra a pegadinha macabra do Coringa, aqui a dupla Todd Phillips e Scott Silver joga literalmente o Coringa nos braços das massas que reconhecem nele sua própria crueldade e selvageria.

O resultado do filme Coringa é a resposta do porquê o sombrio supervilão bufão é tão fascinante e sedutor quanto Batman: ambos são movidos pelo ódio e ressentimento, porém com os sinais trocados.

FICHA TÉCNICA:

CORINGA

Título original: Joker
Direção: Todd Phillips
Elenco: Joaquim Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy;
Ano: 2019
País: EUA, Canadá
Gênero: Drama/Suspense

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Trolls: implementação de valores na infância

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Com uma indicação ao OSCAR:

Melhor Canção Original (Can’t Stop the Feeling).

Banner Série Oscar 2017

Se há algo que todo mundo concorda é que sempre é possível encontrar uma música que representa perfeitamente do que se está sentindo! E, às vezes, elas são grandes influentesnos estados emocionais, como a alegra e a tristeza. Nisso, há quem diga que a vida é digna de uma trilha sonora. E no filme Trolls (2016), dirigido por Mike Mitchell e Walt Dohrn e produzido por Dannie Festa e Gleen Berger, esta ideia é muito bem ilustrada.

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Os trolls são criaturinhas fofas, coloridas, de cabelos metamórficos e muito felizes (muito mesmo)  que resumem suas vidas em cantar, dançar e abraçar. Visualmente, elas evocam as características dos Os Smurfs (2011) e destoam consideravelmente das ilustrações de trolls gigantes, selvagens e monstruosos apresentadas em Harry Potter e a pedra filosofal (2001), O Senhor dos Anéis: o retorno do rei (2003) e Os Hobbits: uma jornada inesperada(2012). Assim, os novos trolls descontroem todos os conceitos prévios sobre seu povo e sua forma de viver, neste contexto eles são os duendes da sorte (aqueles que você com mais de 20 anos já colecionou em sua penteadeira) e vão cativando o telespectador infantil ao decorrer do filme.

Trolls em Harry Potter e Senhor dos Anéis
Trolls em Harry Potter e Senhor dos Anéis

Como a maioria das animações infantis sobre comunidades distintas em Trolls também há quem banque os vilões e o outro grupo que são suas vítimas. Aqui os vilões são os Bergens, monstros que estavam sempre amargurados, não sabiam cantar, nem dançar e tão pouco abraçar. Um dia sentiram inveja da felicidade que os trolls possuíam e um dos Bergens comeu um troll e sentiu tanta felicidade, consequentemente espalhou-se o mito que um Bergen só encontraria a felicidade apenas dessa forma. Daí surge o Trollstício, comandado pela Cheff de cozinha, onde Bergens aprisionam os coloridinhos para comê-los num dia especial no intuito de sentir a tal felicidade.

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A incessante busca pela felicidade não é peculiar dos Bergens, para Dai Lama tal busca está presente na humanidade como objetivo de vida (2000). Segundo Ferraz et al (2006) “a felicidade é uma emoção básica caracterizada por um estado emocional positivo, com sentimentos de bem-estar e de prazer, associados à percepção de sucesso e à compreensão coerente e lúcida do mundo”. E Comte-Sponville afirma que o que falta para ser feliz quando se tem tudo é sabedoria, pode-se inferir que isso era algo não muito presente nos Bergens.

Vinte anos depois de fugirem dos Berngens, a princesa dos trolls, Poppy (Anna Kendrik), dá a maior festa (quase uma rave) de todas para comemorar a libertação. Isso chama a atenção da Cheff banida pelo seu grupo por causa da fuga dos trolls) e esta vai capturá-los, grande parte se esconde, mas os amigos mais próximos de Poppy são levados. Tal possibilidade de a festa atrair os Bergens foi cogitada pelo único troll triste, descorado, “paranoico” e ignorado pelo grupo, chamado Branch (Justin Timberlake).

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Do mesmo modo, Briget (Zooey Deschanel), a camareira real, é uma raridade entre os Bergens, pois com seu jeito meigo e submisso acredita que existe outra forma de encontrar a felicidade, para ela seria o reconhecimento e a correspondência do seu amado crush príncipe Grisel. Esta personagem é uma referência ao conto da Gata Borralheira, mais conhecida pelo público atual como a Cinderela.

Poppy, a princesa que nunca havia enfrentado dificuldades na vida e sempre se matinha otimista, decide resgatar os amigos indo até a cidade dos Bergens, acompanhada de Branch com todo o seu pessimismo. É gritante a dicotomia entre a felicidade e a infelicidade durante o longa, marcada pelas cores, brilhos e sobretudo nas canções. Porém, aos poucos os mocinhos mostram que é possível ter momentos de felicidade quando se cultivam práticas na vida que propiciam emoções alegres. Ainda, contrapõem a ideia dos heróis devem vencer os vilões, mostra uma nova perspectiva de que é possível ensiná-los o respeito, e no caso a serem felizes, transmutando-os dos papéis de vilões para amigos dos mocinhos.

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Esta obra da DreamWorks, que é encantadora ao público infantil e previsível ao público adulto, faz mérito ao seu gênero: comédia musical. Além de uma aquarela de pigmentações, alta qualidade cinematográfica 3D e canções perfeitamente arranjadas às cenas em que as músicas conseguem traduzir os sentimentos, o que se sobressai na obra são os valores (morais e imorais) embutidos em cada personagem. A solidariedade e perseverança do Rei Pepe (troll); o otimismo e resiliência da Princesa Poppy; a liberdade, união e respeito com os trolls; o desrespeito e alienação nos Bergens; o empoderamento em Briget; a corrupção em Creek; e a perseguição ao poder na Cheff.

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Destarte, Trolls é um filme para a família inteira assistir e que auxilia os pais na exemplificação dos comportamentos adequados e inadequados perante ao meio social. Vale ressaltar que do começo ao fim nos produz desejos de cantar, dançar e, especificamente, repensar a nossa busca pela felicidade, se esta está sendo alcançada em decorrência ao sofrimento do outro ou não.

REFERÊNCIAS:

COMTE-SPONVILLE, A.A Felicidade,desesperadamente. Martins Fontes. São Paulo, 2001.

DALAI LAMA, H.H, e HOWARD, C. Cutler, M.D. A arte da felicidade. Martins Fontes. São Paulo, 2000.

FERRAZ, Renata Barboza; TAVARES, Hermano; ZILBERMAN, Monica L..Felicidade: uma revisão. Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 34, n. 5, p. 234-242,    2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832007000500005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 25  de fevereiro de 2017.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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TROLLS

Diretores: Mike Mitchell (V) e  Walt Dohrn
Elenco: Anna Kendrick e Justin Timberlake
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: Livre

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Coringa e o arquétipo do Louco

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“Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas.” (Trecho do discurso de Michel Foucault na sua aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970.)

(Coringa – personagem de histórias em quadrinhos da DC Comics – Arte: Alex Horley)

Joker (Piadista, na tradução), ou Coringa, é um dos principais e mais famosos vilões da HQ’s do Batman. O personagem sempre fez sucesso entre os leitores de HQ, mas caiu mesmo no gosto popular com a interpretação de Heath Ledger em The Dark Knight (2008). O longa dirigido por  Christopher Nolan, nos apresenta uma leitura mais realista, psicótica e cruel do personagem. É tão real, que quase podemos nos ver no personagem, e talvez seja este o diferencial que atraiu a atenção do público nessa franquia. Por meio da projeção de nosso eu na personalidade doentia do palhaço, trazemos à tona características particulares até então negligenciadas. A conscientização dessas características tão nossas, ou que almejamos serem nossas, nos permite perceber aspectos desconhecidos de nossa própria personalidade, auxiliando no autoconhecimento.

Em realidade, a projeção acontece de forma tão contínua e inconsciente que costumamos não dar atenção de que ela está acontecendo. Não obstante, tais projeções são instrumentos úteis à conquista do autoconhecimento. Contemplando as imagens que atiramos na realidade exterior, como reflexos de espelho da realidade interior, chegamos a conhecer-nos. (NICHOLS, 1997, p.20).

Não há consenso na história, e nem no surgimento do personagem do Coringa. Sua primeira aparição nos quadrinhos foi na revista Batman #1 de 1940. O personagem teria sido criado por Bill Finger (1914 – 1974) co-criador e roteirista do Batman. Finger teria se  inspirado em uma foto de Conrad Veidt no filme “The Man Who Laughs” (1928).

(Conrad Veidt em The Man Who Laughs, 1928).

O passado mais aceito, e popularmente mais citado vem da HQ A Piada Mortal editada por DC Comics em 1988. A edição especial traz um Coringa assombrado pelo seu passado, e disposto a provar a qualquer custo, que a loucura está ao alcance de todos os homens. Nas falas do próprio personagem: “A loucura é a saída de emergência” de nossa sanidade.

Nessa edição, nos vários flashbacks o Coringa aparece como o saqueador Capa Vermelha que na tentativa de dar uma vida melhor à esposa grávida, planeja assaltar a fábrica de cartas de baralho onde trabalhou. O vilão seria originalmente um engenheiro em uma fábrica de produtos químicos que, ao perder o emprego, tenta a vida, sem sucesso, como comediante. Enquanto planeja o assalto, ele é informado pela policia que sua esposa gravida morre em um acidente doméstico. Desolado, o vilão prossegue com a ideia do assalto, mas ainda sem muita experiência, acaba sendo flagrado no ato e, num rápido confronto com o Batman, cai no tonel de produtos químicos. Todos acreditam que Capa Vermelha teria morrido no incidente, mas ele reaparece saindo da água, já com a pele branca e cabelo verde, sendo o Coringa.

Contudo, essa teoria é desacreditada pelo próprio palhaço, quem em uma das falas afirma não ter certeza quanto ao seu passado, nem de como teria se tornado o coringa: “Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltiplas escolhas.” (Coringa – A Piada Mortal – DC Comics, 1988, p 40).

A história incerta do Palhaço se confunde com a do arquétipo do Louco do Tarô de Marselha. Segundo Sallie Nichols, O Louco (em nossos tempos a carta do Coringa, outro símbolo utilizado pelo vilão tanto nas HQ’s quanto nos cinemas) é um andarilho, enérgico, ambíguo e imortal. Segundo o autor, o Coringa seria o mais poderoso de todos os Trunfos do Tarô. “Por não ter número fixo, está livre para viajar à vontade, perturbando, não raro, a ordem estabelecida com as suas travessuras” (NICHOLS, 1997, p.35).

Nos quadrinhos o Coringa se diferencia dos demais vilões por ser o único a não querer a morte do Batman, mesmo quando tem a oportunidade de fazê-lo. Em seu discurso, ele parece ter um desejo inquietante de mostrar ao herói que ambos necessitam um do outro, em uma relação antagônica e de dependência mútua. Se considerarmos que o Coringa fora capaz de atos brutais como molestar e deixar paralítica a Batgirl Barbara Gordon, matar sem misericórdia tanto o Robin Jason Todd quanto a esposa do Comissário Gordon, pode-se concluir que a sobrevivência do homem morcego tem um significado maior para o vilão.

[…] o Louco se acha em tão estreito contato com o seu lado instintivo que não precisa olhar para onde vai no sentido literal: sua natureza animal guia-lhe os passos. Em algumas cartas do Taro o Louco é retratado como se tivesse os olhos vendados, o que lhe enfatiza ainda mais a capacidade de agir antes por introvisão do que pela visão, utilizando a sabedoria intuitiva em lugar da lógica convencional (NICHOLS, 1997, p.36).

Em A Piada Mortal, Coringa está determinado a mostrar ao herói que há um limite tênue entre sanidade e loucura, e que em muitos momentos a insanidade é o melhor conforto, um abrigo encontrado pelo homem. Batman parece ser um dos poucos que sempre entendem o real propósito de Coringa por trás de seus feitos lunáticos. Apesar da impetuosidade e do perfil sádico, psicótico, perverso e homicida, e de seus propósitos duvidosos, o vilão esconde uma inteligência superior, com conhecimento preciso em química, genética e engenharia; confundindo a mente daqueles que o desacreditam por sua aparência demente e improvável.

(A Piada Mortal – DC Comics, 1988, p 36).

Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular com o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber (FOUCAULT, 1970, p.11).

Nos quadrinhos o personagem chama a atenção pela caraterização: pele branca, cabelos verdes, boca vermelha, terno roxo, sempre ostentado um sorriso sádico.

(Representações da Carta do Louco (Coringa) em baralhos antigos, Fonte: NICHOLS, 1997).

A roupa colorida do Louco é o símbolo por excelência da união de muitas espécies de opostos. Suas cores variegadas e o seu desenho fortuito parecem indicar um espírito discordante: no entanto, dentro daquele caos aparente, discerne-se um modelo. Dessa maneira, o Louco se apresenta como ponte entre o mundo caótico do inconsciente e o mundo ordenado da consciência. (NICHOLS, 1997, p.36).

O sorriso constante e cristalizado do vilão se tornou uma marca, e o que deveria ser cômico e gracioso, passa a ser, nas mãos do Coringa, aterrorizador. Esse sorriso constante, mesmo diante da derrota em suas batalhas com Batman, às vezes, parece incomodar o herói. Aliás, perverter a real significação das coisas parece ser a principal habilidade do palhaço, que o faz, sempre com uma pitada de loucura. Seja nas suas vestes de palhaço, com senso de humor doentio, ou nas suas armas: uma luva com dispositivo elétrico que dá um choque letal; uma flor que jorra ácido; tortas de cianureto; e o gás do riso, que força a vítima a rir até a morte.

É preciso dar destaque ainda para a habilidade de adaptação do palhaço que parece nunca morrer, mesmo depois de ser baleado, cair de prédios, etc. O vilão sempre reaparece depois de ser dado como morto em várias ocasiões.

(à esquerda Jack Nicholson em Batman, 1989 e  Heath Ledger em The Dark Knight, 2008 à direita).

No cinema, os diretores sempre apostaram no sadismo cômico para a criação e representação do personagem que, sem origem definida, acaba por tomar rumos diferentes em cada roteiro. Em 1989, na versão de Tim Burton,  Batman  traz uma identidade nova ao Coringa (interpretado por Jack Nicholson) que desagrada seus fãs, fazendo do filme um fracasso de bilheteria. Nesse filme além de um colaborador da máfia, o vilão teria ainda sido o responsável pela morte dos pais de Bruce Wayne, teoria que contraria todas as HQ’s.

Na versão mais recente do vilão, interpretada por Heath Ledger em The Dark Knight, o personagem traz algumas características novas, como a pele de cor natural, apenas com maquiagem branca, sorriso feito por uma cicatriz, e cabelo comprido. Nessa versão também não há consenso sobre a origem do Coringa, que conta duas teorias diferentes para sua história. Na primeira, as cicatrizes teriam sido feitas pelo seu pai que, bêbado e drogado, cortara sua boca e bochechas para que ele sorrisse sempre, fazendo menção à famosa frase que caracterizou o personagem: “Why so serious?”. Na segunda história, contada à personagem Rachel Dawes, o palhaço diz ter ele mesmo produzido as cicatrizes ao tentar consolar sua mulher, que teria sido desfigurada por agiotas, mas a esposa não teria ficado satisfeita com o sacrifício do marido, desfazendo o casamento.

Em ambas as histórias não há consenso, e a sensação que paira é a de que em em todas o vilão apenas se propõe a aterrorizar suas vitimas, e não há compromisso com a verdade.

Na versão de Christopher Nolan, o Coringa (que segundo o ator Heath Ledger fora inspirado em Sid Vicious de “A Clockwork Orange”) parece mais cruel, dramático e agressivo do que nunca, e se apóia no estereotipo da loucura para justificar seu comportamento perverso. Sua sagacidade se confirma o criar em  Harvey Dent (o promotor da cidade) o vilão Duas Caras. O personagem, eloquente, parece ter bastante clareza de seu objetivo, e um compromisso em trazer a Gotham City a verdade sobre quem é o Batman, e que ambos (herói e vilão) são iguais, o único diferencial seriam seus propósitos, em uma relação de dependência mútua.

(Imagem de divulgação do filme The Dark Knight)

Segundo Seino (2011), temos na figura do Coringa a personificação do arquétipo do Embusteiro (Trickster – O Trapaceiro). Esse arquétipo pode ser tanto bom quanto mal. No caso do personagem Coringa, ele representa apenas os aspectos negativos deste arquétipo.

O arquétipo do Embusteiro ou do Louco é também encontrado na mitologia nórdica sob a figura de Loki, o deus anárquico que sempre está tramando contra os outros deuses, que também é o equivalente a Hermes da mitologia grega. Hermes é o deus grego astuto, com trânsito livre entre os mundos, portador da mensagem, está sempre pregando peças nos deuses do Olimpo. Hermes é também conhecido como Mercúrio no panteão romano, o elemento mercúrio, por sua vez, é reconhecido por sua volatilidade.

A presença e as ações do Coringa no filme desencadeiam a desordem, trazendo o terror e o caos à cena, e libera em cada um, sentimentos antagônicos e contraditórios. À medida que tais emoções afloram e se tornam conscientes permite-se uma melhor análise das potencialidades e conflitos das figuras do ego real e o ego ideal.

Nesse processo de assimilação, a consciência se amplia e se modifica. De modo paralelo, os processos inconscientes também se modificam. O que ocorre é uma verdadeira transformação da personalidade, o processo de individuação. (MAGALHÃES, 1984, p.146).

Segundo Nichols (1997),

Os Trunfos são ideais para esse propósito porque representam simbolicamente as forças instituais que operam de modo autônomo nas profundezas da psique humana e que Jung denominou arquétipos. Tais arquétipos funcionam na psique de maneira muito parecida com a que os instintos funcionam no corpo. (…) Está claro que não podemos ver essas forças arquetípicas, como, de fato, não podemos ver os instintos; mas experimentamo-las em nossos sonhos, visões e pensamentos de vigília onde aparecem como imagens (NICHOLS, 1997, p.35).

O final confuso de Batman: A Piada Mortal se dá com as gargalhadas trocadas entre o Homem Morcego e o Palhaço, após o Coringa contar a seguinte anedota:

– Tinham dois caras no hospício… Uma noite eles decidiram que não queriam mais viver lá… E resolveram escapar pra nunca mais voltar. Aí eles foram até a cobertura do lugar e viram, ao lado, o telhado de um outro prédio apontando pra lua… Apontando para a liberdade! Então um dos sujeitos saltou sem problemas para o outro telhado, mas o amigo dele se acovardou… É que ele tinha medo de cair. Aí, o primeiro cara teve uma ideia. Ele disse: – Ei! Eu estou com minha lanterna aqui. Vou acendê-la pelos vãos dos prédios e você atravessa sobre o facho de luz! Mas o outro sacudiu a cabeça e disse: – O que você acha que eu sou? Louco??? E se você apagar a luz quando eu estiver no meio do caminho?!” (A Piada Mortal – DC Comics, 1988, p. 48)

(Coringa, The Dark Knight, 2008).

A imagem arquetípica do Louco e o personagem do Coringa parecem se confundir e se completar em vários aspectos. Em Batman, a imagem do vilão se sobrepõe à do herói, provocando fascínio e admiração dos telespectadores desejando o sucesso do Coringa ao final da trama e mudando a concepção de que é certo ou errado, do que é bom e mau, de loucura e normalidade. A análise do personagem, de sua história contraditória, sem fatos concretos e de propósitos insanos, nos faz refletir sobre o que faz de nós sãos?  E mais uma vez o personagem cumpre o seu propósito, ao trazer luz às mentes obscuras, perverte o real significado das coisas.

Saiba mais:

http://super.abril.com.br/blogs/nerdices/tag/coringa/

http://super.abril.com.br/blogs/cultura/novo-batman-fecha-bem-a-historia-do-heroi/comment-page-1/

http://super.abril.com.br/blogs/cultura/tag/cavaleiro-das-trevas/

http://vidaehistoriadocoringa.blogspot.com.br/

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