SHAZAM: as relações familiares dos heróis e vilões

Compartilhe este conteúdo:

O universo dos quadrinhos tem tomado as telonas no ano de 2019. Nesse cenário os universos mais famosos, Marvel e DC, dominaram as produções cinematográficas ao trazerem seus heróis, anti-heróis e vilões para o centro dos holofotes. O filme Shazam, baseado no super-herói da DC Comics, estreou no cinema em 2019, sob direção de David F. Sandberg, tendo como protagonista o ator Zachary Levy Pugh interpretando Shazam.

O mago Shazam está à procura de um ser humano que possua a mente e o coração puro, para que este herde seus poderes e continue a manter preso os sete pecados capitais, que se encontram alojados em sete estátuas de pedra. O primeiro ser humano que ele encontra é o garoto chamado Thaddeus Savana, mas este não era o escolhido, já que ao ser transportado para o templo do mago ele se sentiu atraído pelos espíritos dos sete pecados, demonstrando que não era o mais puro.

A busca pelo escolhido continua por um tempo consideravelmente grande, tempo suficiente para que Thaddeus que era só um garoto, crescesse e virasse um homem adulto a procura do templo do mago, para buscar vingança pela rejeição sofrida na infância.

Fonte: encurtador.com.br/ktuA9

Ao encontrar o mago Shazam, Thaddeus lhe diz “Você sabe o quanto dói para uma criança ouvir que ela nunca vai ser boa o suficiente?”, para em seguida ceder a atração dos sete pecados capitais, servindo como receptáculo dos sete espíritos.

Esse evento catastrófico faz com que o Mago Shazam precise se apressar em encontrar o ser humano puro de mente e coração, sendo escolhido então o garoto Billy. A história de Billy se assemelha a de outros personagens de quadrinhos como Batman, Coringa, Super-Man, que passaram por acontecimentos de vida traumáticos antes de se tornarem heróis ou vilões.

Billy se perdeu da sua mãe quando criança em um parque de diversões, e desde então, já com 14 anos de idade ainda não conseguiu encontrá-la. Devido a esse fato, ele cresceu em lares adotivos, e nunca se conformou com esse destino.

O filme retrata a dificuldade de Billy em permanecer nas instituições de abrigo, tendo ele fugido 13 vezes de diversas delas. As fugas se dão pelo fato de ele não se sentir pertencente ao lugar, relatando que não é a mesma coisa que se ter um a família. Bowlby (1952) apud Cavalcante; Magalhães (2012, pág. 78) chamam atenção para a dificuldade das crianças de lares adotivos “estabelecer trocas afetivas e contínuas com os cuidadores substitutos (…)”, sendo comum atitudes de resistência.

Fonte: encurtador.com.br/knpB5

Contudo, no regresso da sua décima terceira tentativa de fuga, Billy aceita ir para mais um lar adotivo, e neste ele encontra a sua verdadeira família. Tal família é composta por mais 5 crianças adotadas ( Pedro, Eugene, Mary, Freddy e Darla) e os pais adotivos Victor e Rosa. Esse contexto familiar diversificado e amplo, de acordo com Bronfenbrenner (1996) apud Cavalcante; Magalhães (2012) colabora para a construção de relações e o desempenho de variados papéis, que influenciam e beneficiam o desenvolvimento de uma criança.

Entretanto, vale lembrar que para haver a possibilidade de que esse desenvolvimento seja saudável, é preciso que “o meio físico e social favoreça a assimilação de padrões de interação recíproca com seus pares e cuidadores que desempenham papel parental (…) (CAVALCANTE; MAGALHÃES, 2012, pág. 78)”, haja vista a importância disso para que relações de afetos sejam estabelecidas.

E como todo herói tem seu vilão, Billy que agora também é Shazam, precisa enfrentar Dr Thaddeus Savana, que carrega em seu corpo os espíritos dos sete pecados capitais. O interessante é que o nosso vilão também possui questões mau-resolvidas com seu ambiente familiar, mas principalmente com seu pai.

Thaddeus sempre fora desprezado e rejeitado pelo pai e irmão. Quando criança era alvo de xingamentos e piadas por parte destes que o descreviam como inútil e causador de todos os problemas, sendo esse contexto característico da violência intrafamiliar. Em razão disso, Thaddeus cresceu com um forte desejo de vingança em relação ao pai, o que pode ter sido influenciado pela violência sofrida em sua infância (MARTINS, 2010).

Fonte: encurtador.com.br/FLN09

Além do sentimento de vingança já existente, o vilão passa a sentir inveja de Shazam/ Billy por ele ter uma família que o amo e apoia. E é aqui que ele é derrotado, já que o espírito do pecado capital da inveja havia encontrado abrigo nos anseios de Thaddeus, e se sentiu tremendamente insultado quando Shazam lhe afrontou e afirmou que ele era um espírito fraco, que apenas desejava ter o que ele tinha.

Shazam e Thaddeus, herói e vilão, ambos imersos em contextos familiares singulares, experienciando as dores e prazeres de se fazer parte de uma família, nos fazem refletir o quanto cada indivíduo tem a necessidade de se sentir amado e acolhido pelos seus pares. Independentemente de ser uma família de sangue ou adotiva, as relações, quando são estabelecidas baseadas em vínculos genuínos, verdadeiros e amorosos, tem o poder de influenciar uma melhor experiência de vida.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Fonte: encurtador.com.br/gouR1

SHAZAM

Titulo Original: Shazam
Direção: David F. Sandberg
Elenco: Zachary Levi,Asher Angel,Mark Strong
Ano: 2019
País: Estados Unidos
Gênero: Ação,Fantasia

REFERÊNCIAS:

CAVALCANTE, Lília Iêda Chaves; MAGALHÃES, Celina Maria Colino. Relações de apego no contexto da institucionalização na infância e da adoção tardia. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 30, n. 68, p.75-85, mar. 2012. Disponível em: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/psicologiaargumento/article/view/20015/19301>. Acesso em: 07 abr. 19.

MARTINS, Christine Baccarat de Godoy. Maus tratos contra crianças e adolescentes Maus tratos contra crianças e adolescentes. Revista Brasileira de Enfermagem, Cuiabá, v. 4, n. 63, p.660-665, jul. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/reben/v63n4/24.pdf>. Acesso em: 07 abr. 2019.

Compartilhe este conteúdo:

O Regresso: a longa jornada em busca de vingança

Compartilhe este conteúdo:

Lançado em 2015, The Revenant (no original) é um filme de drama / thriller parcialmente baseado no livro de Michael Punke que conta a história real de Hugh Glass, sendo escrito e dirigido por Alejandro González Iñárritu (indicado ao Oscar por Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância) e com a colaboração de Mark L. Smith (Temos Vagas). O longa recebeu vários prêmios e indicações como o Oscar de melhor ator para Leonardo DiCaprio, Oscar de Melhor Fotografia, Oscar de Melhor Diretor, Prêmio Globo de Ouro: Melhor Filme Dramático, entre outros prêmios.

O filme se passa durante o século XIX no período conhecido como “Marcha para o Oeste’’. Durante esse tempo, os americanos eram incentivados através da Lei de Terras ou Lei do Homestead de 1862, a migrarem em direção ao “far West” até então desconhecido que gerava várias fantasias (como o cowboy, o sheriff, os conflitos com os indígenas, bandidos e sequestradores, as linhas férreas e entre outros) e questionamentos por parte dos cidadãos da época.

Ao longo do filme, os espectadores são apresentados à Hugh Glass (Leonardo DiCaprio, de  O Lobo de Wall Street) um homem simples que aparenta  ter um bom relacionamento com os índios Pawnee sendo casado com uma índia com quem tem um filho chamado Hawk ( Forrest Goodluck, em seu primeiro longa). Após a morte da esposa, Glass e o filho trabalham como guias ao longo do território dos Arikaras no Rio Missouri  para a “ Companhia de Peles Montanhas Rochosas ’’ . No entanto , após uma caçada bem sucedida a equipe dirigida pelo capitão Andrew Henry (Domhnall Gleeson, de Ex-Machina: Instinto Artificial) sofre um ataque dos índios Arikaras em uma das cenas que apresenta maior ação durante o filme , além de ser o primeiro contato do público com os outros personagens.

Fonte: https://bit.ly/2WEFBSY

Após o incidente, o grupo foge pelo rio e contra a vontade de John  Fitzgerald (Tom Hardy , de Mad Max : Estrada da Fúria) abandonam o barco deixando escondido em algumas pedras as peles que conseguiram levar . Depois de algum tempo , Hugh se ausenta do acampamento para caçar, até que é surpreendido pelo ataque de uma ursa que estava com os dois filhotes ,protagonizando uma das cenas mais realistas e fortes da obra ( neste momento a câmera se posiciona próxima ao rosto de DiCaprio para dar a sensação ao espectador de estar “ dentro do filme”).

Logo após o ocorrido Glass é socorrido por Jim Bridger (Will Poulter , de Maze Runner : Correr ou Morrer ) e os outros ficando gravemente ferido . Dessa forma ,o capitão Henry oferece uma recompensa de US$ 100,00  para aqueles que cuidassem de Hugh e o levassem para o forte ou dar a ele um enterro digno. Bridger, Hawk e Fitzgerald ( que só aceita o tratado após a desistência da recompensa pelos outros ) decidem  ficar  para cuidar do ferido , no entanto John demonstra ser  cruel  ao assassinar Hawk na frente de Glass , que estava impossibilitado de se movimentar e falar , deixando-o a própria sorte após enganar Jim afirmando que os Arikaras se aproximavam.

É nesta parte que o público pode compreender as motivações que fazem Hugh Glass se levantar e iniciar uma longa jornada em busca de vingança pela morte do filho e do próprio abandono no estado em que se encontrava. Ele acaba enfrentando dificuldades relacionadas aos ferimentos e à Natureza, que ganha um grande destaque com belas imagens feitas sem recursos artificiais para a iluminação através das lentes do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (Gravidade e Birdman) combinado com a bela e suave trilha sonora de Ryuichi Sakamoto (vencedor do Oscar com o longa O último imperador ) que se faz presente nos momentos certos , além da edição feita por Stephen Mirrione (Traffic) que consegue unir as personagens e a natureza sem se tornar algo muito artificial.

Enquanto Glass tenta se recuperar , Fitzgerald e Bridger percorrem o caminho até o forte (com o segundo apresentando vários remorsos ao longo do trajeto , incluindo conflitos com John) durante esse percurso o público consegue perceber que John Fitzgerald não é um “ vilão’’ comum , ele é apresentado como um homem com problemas, medos e receios tornando-se em algumas partes um indivíduo mais complexo do que o protagonista , já que seus objetivos não possuem tanta “clareza” como os de Glass ou outros personagens como o capitão Andrew Henry.

Fonte: https://bit.ly/2COjRMW

Outros personagens que apresentam um lado complexo no filme, são os indígenas que mostram os desafios e os conflitos que eles passam ao longo do enredo. Relações com a natureza e com os exploradores são frequentemente abordadas  como a busca de um chefe por sua filha, os vários vilarejos destruídos por guardas do governo ( inclusive é dessa maneira que a esposa de Glass é assassinada, ela e seu povo sofrem ataques dos guardas, sobrevivendo apenas Hugh e o filho ), há também uma cena onde uma mulher indígena é violentada por um explorador, porém o protagonista consegue ajuda-la enquanto foge com os cavalos deixando cair o cantil que mais tarde será de grande importância para o enredo .

Após a chegada de um explorador francês no forte, que pedia por socorro e comida, o grupo do capitão Henry faz uma descoberta decisiva encontrando o cantil de Glass junto ao francês indicando que ele estaria vivo, já que ele havia sido enterrado com o objeto em uma localidade distante do forte. É durante esse momento que, Fitzgerald foge assaltando o cofre de Andrew enquanto o grupo inicia uma expedição para encontrar o protagonista. Logo depois do relato sobre sua jornada, Hugh e henry se preparam para perseguir John e realizar suas vinganças, entretanto o capitão encontra o antagonista primeiro restando apenas um embate final entre Hugh Glass e John Fitzgerald.

O longa recebeu várias críticas positivas ressaltando a beleza dos cenários, que tiveram como locações para  as filmagens  o Canadá e a Argentina, a trilha sonora que mesmo nos momentos de maior tensão apresenta uma melodia calma e tranquila , o processo de maquiagem que recebeu vários elogios da crítica especializada e do público, além das performances dos atores recebendo destaque para Leonardo DiCaprio , pois na maior parte do tempo Glass devido o acidente não consegue falar ou se movimentar , sendo de grande importância os gestos e feições para a compreensão do estado de Hugh. Outro que merece destaque, é Tom Hardy que não apresenta “apenas um vilão” , mas um homem complexo cercado de medos , receios e desconfianças . A direção também apresenta  seus créditos,  se em Birdman  Iñárritu mostra uma jornada de sucesso que termina no esquecimento de um artista , em O Regresso ele conta uma história de superação, luta pela sobrevivência e desejo de vingança marcado por muito realismo.

Fonte: https://bit.ly/2htHfnQ

Entretanto, nem tudo é perfeito e o longa apresenta alguns detalhes que incomodaram tanto o público quanto a crítica, como o enredo ser considerado “simples de mais ’’, falta de desenvolvimento  de alguns personagens (como a relação de Glass e seu filho Hawk que muitos acreditaram ser “muito superficial’’), além de ser considerado cansativo (2h 36m) e perder o ritmo durante algumas partes do filme. O Regresso é sem dúvidas um belo filme a partir da visão estética possuindo belíssimas locações, grandes interpretações, excelente mistura entre direção e produção e embora possua seus pequenos defeitos é um bom filme para se assistir e apreciar os lindos cenários e a fotografia.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Fonte: https://bit.ly/2htHfnQ

O REGRESSO

Título Original: The Revenant
Direção: Alejandro González Iñárritu
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Will Poulter, Forrest Goodluck;
Ano: 2015
País: EUA
Drama

REFERÊNCIAS:

https://www.planocritico.com/critica-o-regresso/

https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/2016/02/critica-o-regresso

www.adorocinema.com/filmes/filme-182266/criticas-adorocinema/

https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historia-america/marcha-para-oeste-nos-eua.htm

Compartilhe este conteúdo:

A Casa dos Espíritos – paixão, vingança e revolução

Compartilhe este conteúdo:

“…Nossa memória é frágil,
Uma vida é um tempo muito breve.
Tudo acontece muito rápido que não dá
Tempo de entender… a relação entre os acontecimentos.”
Blanca Trueba

O filme ‘A Casa dos Espíritos’ é um filme produzido a partir do romance da escritora Isabel Allende, lançado em 1982. O drama de Allende conta os conflitos de três gerações de mulheres e se passa durante as mudanças sociais e os desdobramentos políticos no Chile da década de 1920, até a explosão do golpe militar.

A narrativa começa com a infância de Clara que mantém contato com os espíritos e que, ainda criança, prevê a morte da irmã mais velha. Traumatizada, fica muda por vinte anos. A narrativa segue focando nas mulheres que são figuras principais até chegar a Alba, neta de Clara (Meryl Streep). Mesmo as mulheres assumindo papeis importantes na saga dos Trueba, o pai de família Esteban (Jeremy Irons) assume destaque na narrativa até o final da história.

Quando buscamos simbolicamente a linguagem oculta do cinema, sob o prisma da Psicologia, devemos ter noção da importância destes símbolos para o homem e sua psique, já que esses símbolos são tão explorados pelos recursos cinematográficos. O cinema é uma narrativa que cria e recria as instâncias simbólicas existentes no inconsciente coletivo de cada um de nós; como já dito antes, a capacidade de interpretar cada figura simbólica, depende da experiência, da cultura, da consciência crítica, da ideologia de cada espectador.

A linguagem plástica de A Casa do Espíritos, permite explorar os nossos medos inconscientes. Os símbolos ocultos podem não estar só na psicologia dos personagens, mas no próprio estilo narrativo do filme, nos gestos, nas cores, na nossa predisposição, no ambiente.

Clara ainda menina pressente que Esteban será o homem da sua vida, mesmo ele sendo o noivo de Rosa, sua irmã. Na mesma época Clara prevê a morte de Rosa. Traumatizada pelas forças do destino (inconsciente) e atormentada pelo sentimento de culpa se fecha num mundo envolto a fantasias, um mundo onde nem sempre a lógica e a física podiam ser aplicadas. Atormentada por ter desejado o noivo da irmã e por ter “desejado” a sua morte ela mergulha num silêncio por vinte anos.

O mundo no qual Clara vive é o mistério infinito do desconhecido, comparado ao nosso inconsciente. Assim como Clara, o sujeito tem a capacidade de prever situações, ou seja, desvendar os mistérios que o inconsciente guarda, mistérios que por defesa moral, estética e julgadora é ignorado.

A sexualidade humana é algo polimorfo e complexo, resultando de uma estrutura emocional individual, onde fantasias conscientes e inconscientes entram em jogo. Na terminologia freudiana, a luta constante entre o “princípio do prazer” e o “prazer da realidade” se processa bruscamente na personalidade de Ferula. Ela cresceu sem afeto, com pouquíssimo contato com as pessoas, o que a tornou estranha, fria, amarga, sempre escondida atrás de uma “sombra”, ocultando sua verdadeira personalidade. Na personagem de Ferula pode-se identificar os arquétipos “persona e sombra”. Detalhe importante para se entender esse processo; ela sempre se veste de preto, ocultando sua ira, sua revolta, por ter que cuidar da mãe doente (situação qual ela odeia) estando ela condenada a solidão até que a mãe morra (desejo consciente de Ferula). Num desabafo com irmão (Esteban) diz que gostaria de ter nascido homem, para assim, fugir de casa, já que não teria responsabilidades e não ficaria presa à realidade (consciente).

Depois da morte de Rosa, sua noiva, Esteban resolve ir embora para fazer o seu destino. De um lado se identifica pelo exagero, como uma figura ditatorial e agressiva, em contrapartida com a evolução psicológica do personagem no decorrer da tramam nota-se que o próprio se revolta contra essa figura, expressada nos símbolos de autoridade. Esteban compra uma fazenda, o caráter agressivo expressa através de suas ações, impõe com autoritarismo para os camponeses trabalharem para ele em cima de leis que ele mesmo estabelecera na Fazenda. Ele estupra uma camponesa, e não reconhece legalmente o filho que tem com ela. Pela terminologia freudiana, compara-se Esteban ao “ID” – regido pelos impulsos, instintos, preocupado em buscar satisfações imediatas. Já pelas definições de Jung, sob o prisma do arquétipo “Eu”, devido o seu modo de organizar, dar ordem, unificar seus desejos.

Passados vinte anos, Esteban fez da Fazenda Três Marias, uma fazenda rica e produtiva, mesmo explorando os serviços de outrem, se sentia orgulhoso por estar no comando. Sua mãe morre, ele volta. Ferula propõe ser devota ao irmão, cuidando dele. Esteban vê Clara e fica impressionado por sua beleza e passividade e logo pede a mão de Clara em casamento. Após o pedido, Clara volta a falar.

Ferula fica atordoada com a decisão do irmão. Ela sempre teve em Esteban alguém para cultuar, admirar, tendo então um ciúme possessivo do irmão, não aceitando a ideia dele se casar com Clara, por achar ela doente e louca, insinuando ao irmão que ele merece alguém que o ame de verdade. À luz da psicanálise, a motivação profunda de Ferula para com o irmão se relaciona com problemas edipianos (alguns utilizam a denominação “Complexo de Electra”,  a que o próprio Freud prefere o termo “Complexo de Édipo”), ou seja, Ferula se apega ao irmão (figura do pai) por quem sente uma forte atração, de onde surge forte ciúme e hostilidade contra Clara (figura idealizada da mãe), futura mulher de Esteban.

Ferula almoça com Clara – a figura de Clara não é a de uma heroína, mas propõe um modelo extremamente revelador. Clara diz à futura cunhada para não se preocupar que ela irá morar com eles após o casamento, ela a abraça e a beija no rosto – Ferula que nunca foi tocada por ninguém, fica confusa e aliviada quando Clara o faz, por este gesto comunicativo e carinhoso de Clara, aumenta os problemas básicos de Ferula, fazendo-a “sonhar” e construir seus sonhos em sentimentos que produz um profundo impacto ao tocarem as cordas mais sensíveis das profundidades inconscientes da confusa personalidade de sua futura cunhada.

As confusões de Ferula aumenta porque ela se projeta na pessoa de Clara, passando a admirá-la, idealiza-la… vê na cunhada aquilo que gostaria de ser, que gostaria de ter. Nutre, pois, uma paixão doentia por Clara.

Todos esses impulsos provocam fantasias, mas Ferula sofre com o sentimento de culpa, como na cena em que ela confessa com o Padre. Por outro lado, procurando (inconscientemente) livrar-se do terrível “complexo de culpa”, que se torna um verdadeiro perseguidor interno, diante de suas fantasias, torna-se masoquista (compulsão para o sofrimento, que foi erotizado) como na cena em que ela observa as noites de amor entre Esteban e Clara.

O filho bastardo de Esteban, com ódio, retorna à fazenda (personagem secundário, mas de grade importância ao discernimento desse drama), ou seja, o filho bastardo procura ficar sempre por perto, como se fosse os nossos temores, rondando nossa consciência (medos, seriam conteúdos armazenados no nosso inconsciente que insiste em vir a tona, lembrando os nossos erros,  nossas culpas nossas fraquezas). Esteban flagra sua filha Blanca e Pedro (filho do capataz da Fazenda dos Trueba) brincando no rio. Temendo a aproximação entre as crianças ele a coloca num internato.

Não bastasse a sua insegurança em relação à filha, Esteban expulsa Ferula de casa, querendo não ter a irmã entre ele e a esposa.

No seu delírio inconsciente (agressividade) o faz alterar sua percepção da importância que ele dá a sua ideologia, buscando fortalecer a sua personalidade narcisista afim de satisfazer seu Ego ideal.

Blanca (Winona Ryder) termina os estudos e volta para a Fazenda e se (re)aproxima do revolucionário Pedro (Antônio Banderas) tendo com ele um romance.  Pedro (figura de esquerda), utiliza uma linguagem que pode ser um meio de doutrinação, e que por trás dessa linguagem oculta, há uma ideologia política bem definida, despertando em cada espectador (trabalhador) o senso crítico das leis trabalhistas, dos direitos e deveres de cada um. Os seus ideais fomentam a mudança social ou simplesmente quer desenvolver a consciência crítica política dos trabalhadores (figura de opressão).

Pedro enfrenta o autoritarismo de Esteban procurando despertar nos camponeses um idealismo perante seus direitos e deveres.

Nesse clima de revolução, Esteban vê Blanca e Pedro juntos e jura matar o rapaz. Mas, Blanca é segura o bastante para enfrentar o pai em relação ao amor “proibido” com Pedro. Ela sente prazer nesse enfretamento, talvez por achar a figura paterna intransigente e autoritária.

Rebelando-se contra as atitudes do pai, é como se o Ego rígido de Blanca se sobressaísse num conflito constante, conflito esse que amedronta a personalidade.

Voltando à personalidade fria de Esteban, percebe-se simbolicamente que ele representa a figura do geocentrismo – crença de que o homem é o umbigo do universo – Ele perante o seu modo agressor queria ser o centro desse universo (a Faz três Marias, a sua família). No medo de ser ridicularizado, não permite diálogo, pois se admitisse, correria o risco de perder tal posição.

Clara procura estabelecer afinidades entre o sonho e a morte, a culpa e a vida. Na verdade, é o que todo homem busca: um equilíbrio interior perante os medos que amedronta a nossa personalidade. Sua fascinante personalidade não fica só na dimensão do imaginário, mas se aprofunda até os grandes símbolos e chega a uma inquietante meditação filosófica.

Clara vai embora com Blanca, Esteban fica só, atordoado com seus fantasmas interiores. Seu filho bastardo conta o esconderijo de Pedro, Esteban tenta mata-lo, mas Pedro consegue fugir. Blanca está grávida de Pedro. Esteban se candidata a senador, mas é derrotado nas urnas pelo partido de esquerda e socialista, pede desculpas a Clara e pede para conhecer a neta. Diante desses acontecimentos percebe-se a evolução do protagonista.

Pedro revê Blanca e conhece a filha Alba. Clara morre.

Esteban participa da organização do golpe militar que tiraria os militares dos quartéis, porém, no poder, os generais perseguem até Blanca e ela é presa, de modo que Pedro se entregue. Após o golpe militar têm-se sangue, fuga, desgraça, dor, envolvendo todos os membros da família Trueba, bem como todos os cidadãos chilenos.

Nessa fase da trama, Esteban duela consigo mesmo (inconsciente e consciente) para decidir se ajuda Pedro a fugir do país em nome do amor que ele tem pela filha e pela neta. Blanca sofre na prisão, mas o pai consegue livrá-la. Apesar do sofrimento, Blanca e Esteban procuram explicações para as incógnitas do destino (inconsciente), num desejo de voltar as origens para entender o processo dos acontecimentos, retornam à casa (útero).

Esteban morre, Blanca fica só com sua filha Alba pensando no seu passado e na maneira com que sua mãe entendia o verdadeiro sentido da vida.

“Ela sempre falava do amor como um milagre.
Após parar de falar, 
minha mãe viveu num mundo só dela envolta em suas fantasias.
Um mundo onde nem sempre a lógica e a física podiam ser aplicadas,
rodeadas por espíritos do ar, da água e da terra,
tornando desnecessário para ela falar, por vários anos!” 
Blanca Trueba

No final dessa saga dramática, assim como nossas fantasias inconscientes de voltar ao útero, Blanca busca compreender as forças do destino (inconsciente) e busca no regresso um jeito de começar tudo de novo. Ou pelo menos recomeçar…

Tecendo um paralelo com os personagens da trama, dá para perceber e assimilar a tranquilidade serena do mundo de Clara ao nosso inconsciente mergulhado em mistérios… Esteban seria o outro lado, sempre inquieto, intransigente, buscando sempre satisfação aos seus impulsos… Blanca estabelece o equilíbrio, sensata e crítica, capaz de assumir seus erros de maneira lógica, capaz de enfrentar os medos do nosso próprio EU. Ela nunca se deixa abater, esconde sua fragilidade criando barreiras contra nossos próprios temores.

FICHA TÉCNICA DO FILME

A CASA DOS ESPÍRITOS

Título original: The House of the Spirits
Direção e Roteiro: Bille August (a partir do homônimo de Isabel de Allende
Elenco: Jeremy Iron, Meryl Streep, Glenn Close, Winona Ryder, Antonio Banderas;
Países:  DinamarcaAlemanhaPortugalEUA
Ano: 1993
Gênero: Drama, Romance

REFERÊNCIAS:

BAZIN, A. O Cinema – Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

JUNG, C. G.. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

SILVA FILHO, A.C.P. Cinema, Literatura, Psicanálise. São Paulo: EPU, 1998.

Compartilhe este conteúdo:

Kill Bill Vol. 1: A vingança na ótica de uma mãe interrompida

Compartilhe este conteúdo:

Kill Bill: Volume 1 é um filme norte-americano de 2003 criado e dirigido por Quentin Tarantino, sendo o mesmo considerado uma de suas obras-primas. O filme é estrelado por Uma Thurman que dá vida à Noiva, personagem principal que busca sua vingança por ter sido “morta” no dia do seu casamento. Um grupo de assassinos e seu líder Bill, são os alvos desta poderosa mulher – ferida e amargurada por ter perdido sua filha, a quem ainda não tinha dado à luz – e não tem medo de utilizar suas notáveis habilidades de assassina.

O ponto de destaque em Kill Bill é que nada é original e isso dá ao filme um toque especial de peculiaridade e personalidade de seu diretor e criador. Vemos traços do terror italiano e francês, filmes de artes marciais chinesas e japonesas, cinema trash e até características de filmes do velho oeste norte-americano. Essa conjuntura de ser um filme baseado em outros filmes com um senso estético único e trilha sonora impecável dão à Kill Bill seu momento de glória.

O plot da obra não é o que podemos chamar de surpreendente, é um filme de vingança com desfechos típicos de novela mexicana que conta a história de uma noiva grávida que foi “morta” pelo seu ex-chefe e sua trupe de assassinos no dia do seu casamento, mas acabou sobrevivendo ao atentado deixando para trás sua filha e tendo a vingança por essa perda como o único motivo para viver. A cadeia de acontecimentos em torno disso é rica, multicultural e particularmente peculiar.

Kill Bill Volume: 1 não é o início nem o final da trama, mas sim o meio. Sendo dividido em capítulos e tendo seu enfoque em planos-sequência, este filme se caracteriza pela importância das cenas e Tarantino cria atmosferas únicas para os violentos feitos da Noiva, desde as sombras em sua luta, no anime utilizado para narrar a história da assassina japonesa Cottonmouth e os litros de sangue jorrados por suas vítimas (inerente aos filmes de Tarantino) dão a essa criação uma estética completamente única e cativante.

A dor muito bem representada por Uma Thurman pela perca de sua vida perfeita e de sua filha mostram como a mulher pode assumir qualquer papel que ela quiser, a Noiva (ou Black Mambo, seu nome de assassina) desempenha tanto o papel social designado para a mulher quando quis se casar e cuidar de sua filha, como assume o papel de uma profissional feroz obstinada pela sua sede de vingança e também pelas possibilidades que lhe foram tiradas por aquela bala.

A força e destreza com as artes marciais e principalmente com a katana dão a ela um ar de perigo e ao mesmo tempo de vulnerabilidade. Em sua atuação, a atriz transparece a dor de sua personagem ao encontrar aqueles que a fizeram sofrer e suas cenas de combate são empolgantes e ricas em sensibilidade.

Kill Bill é um clássico, sua estética é definitivamente incopiável. Quentin Tarantino fez questão de usar toda a sua experiência com o cinema nesta obra e deu aos espectadores cenas memoráveis. A trilha sonora foi de extrema qualidade, tornou-se parte do filme e mais importante é vermos este outro lado da mulher que por muitas vezes é suprimido por papeis sociais inerentes de uma organização social culturalmente machista é, no mínimo, interessante. A perda e a dor da personagem dão a ela uma personalidade intrínseca aos olhos do espectador e certamente é um filme que vale a pena ser visto e revisto não apenas pelo seu plot instigante, mas também pela sua qualidade estética.

“ A vingança nunca é uma linha reta. É uma floresta, e como numa floresta é fácil sair do caminho…. Se perder…. De se esquecer por onde entrou. ”

Hattori Hanzo – Kill Bill Volume: 1

REFERÊNCIAS:

Kill Bill: Volume 1 – http://www.imdb.com/title/tt0266697/, acesso em 02/10/2017.

http://www.adorocinema.com/usuarios-B20141124134004210273688/movie/28541/, acesso em 02/10/2017

FICHA TÉCNICA DO FILME:

KILL BILL

Diretor: Quentin Tarantino
Elenco: Uma Thurman, Sonny Chiba, Lucy Liu, 
País: EUA
Ano: 2004
Classificação: 16

Compartilhe este conteúdo:

Jornalismo? E eu com isso.

Compartilhe este conteúdo:

titulo_2

 

 

Logo ao acordar foi dizendo “bom dia comunidade”, e relatando fatos de pessoas que nunca vi na minha vida. Uma mãe que chorou, um homem que fugiu, outro que morreu afogado e um outro que morreu de amor.

Dentro da lotação a caminho do trabalho, dizia em alto e bom tom que o nordeste pedia água e soluçava de fome. Esfregou na minha cara, como conta vencida, através de um papel com cara de sujo, que as taxas vão deixar minha conta bancária no vermelho.

Quando cheguei ao trabalho, apareceu na tela do meu monitor contando que atriz fulana de tal esta de dieta, depois que o ator cicrano anunciou o fim de um casamento que havia durado apenas três dias… Os três dias mais longos de sua vida.

Quando voltei pra casa, um casal simpático me dizia “boa noite” trazendo nas bochechas a câimbra de um sorriso aeróbico depois de chorar contando tantas desgraças.

Fui dormir pensando: Se ele vive me acompanhando em cada passou que dou, eu quero vingança. Quero passar o resto dos meus dias contando tudo de todos, para todo mundo. Especialmente para aquela senhora de sorriso fácil que contava histórias durante a viagem de lotação. Quero alimentá-la de fartos causos para que, assim, ela sempre tenha assunto, e eu tenha sempre prazer em entrar naquele ônibus sabendo que o motivo daquele sorriso fácil, foram as boas novas que eu contei a ela, enquanto ela preparava o café.

RODAPE_3

Compartilhe este conteúdo: