Com nove indicações ao OSCAR:
Melhor Filme, Melhor Diretor (Alejandro Gonzáles Iñárritu), Melhor Ator (Michael Keaton), Melhor Ator Coadjuvante (Edward Norton), Melhor Atriz Coadjuvante (Emma Stone), Melhor Roteiro Original (Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo), Melhor Fotografia (Emmanuel Lubezki), Melhor Edição de Som (Martín Hernández e Aaron Glascock) e Melhor Mixagem de Som (Jon Taylor, Frank A. Montaño e Thomas Varga).
– E, afinal, você conseguiu o que queria dessa vida? – Consegui. – E o que você queria? – Considerar-me amado, me sentir amado nessa terra. (Raymond Carver, escritor americano – frases escritas em seu epitáfio)
O som de um solo de bateria e os fragmentos de uma das últimas poesias escritas por Raymond Carver marcam o início de Birdman. E depois do que parece ser a trajetória de um cometa no céu, vimos a imagem de um homem levitando em um camarim de um teatro na Broadway no mais completo silêncio. Até então não sabemos se devemos encarar a cena como um sonho ou se é mais um tipo de aventura de super-herói saída de algum quadrinho da Marvel, uma temática tão recorrente nos filmes atuais. E nossa percepção fica ainda mais incerta quando o homem se levanta e olha para o espelho. Nesse momento, ouvimos uma voz. A voz que está em sua cabeça, mas que fala no plural como se tivesse existência própria.
“Como viemos parar aqui? Esse lugar é horrível. Cheira a testículos. Não pertencemos a este buraco de merda.”
Riggan Thomson, como Michael Keaton que o interpreta, é um ator que teve um sucesso avassalador fazendo um super-herói no cinema (o Birdman), mas desistiu de continuar a franquia quando percebeu que era menos importante que a criatura alada que representava, pois já não era tão querido, nem tão relevante, qualquer um poderia usar a máscara e ser o homem-pássaro. A história com Keaton foi diferente, foram oferecidos mais de 15 milhões de dólares (isso há 20 anos) para que ele continuasse a franquia de Batman, mas ele recusou e, até onde sabemos, não ficou com a voz do homem-morcego na cabeça.
Considerando a frase que Riggan mantém em seu camarim -“uma coisa é uma coisa, não o que é dito dela” -, parece que ele procura entender se há algo na pessoa que ele vê refletida no espelho que seja essencialmente ele, algo que não foi estabelecido nas relações criadas pela mídia em torno da sua figura pública, uma figura que ele tenta ignorar, mas que grita furiosamente em sua mente. O que nos remete a Umberto Eco (apud PINO, 1993) quando diz que “enquanto sujeitos, nós somos o que a forma do mundo produzida pelos signos nos faz ser[…]”.
A voz ganhou existência fora de sua mente e a impressão que temos é que Riggan cansou de prendê-la lá, ou melhor, já não suportava a ideia incongruente de existir em duplicidade, ou seja, ser a figura sedenta por reconhecimento e poder e, ao mesmo tempo, o ator de talento, que valoriza a arte por si só, sem comprometimento com toda a ostentação que a cerca. Considerando que o termo esquizofrenia significa “cisão das funções mentais” (do grego schizo= divisão, cisão; phrenos = mente) e um dos sintomas da esquizofrenia paranoide são ideias delirantes e alucinações (visuais e/ou auditivas), esse talvez seja um caminho mais coerente para uma explicação razoável sobre o que vemos na tela.
Mas essa é somente a interpretação mais óbvia dos elementos sobrenaturais apresentados no filme (p.ex.: telecinese, levitação). Conforme apontado por Young (2014), as cenas parecem estar convidando o público para as alucinações e delírios de um indivíduo psicótico, como aconteceu em Black Swan ou no início de Uma Mente Brilhante. Esses filmes obtiveram um excelente resultado ao enganar o público fazendo-o acreditar em eventos que pareciam ser reais, embora fossem consequência de uma série de alucinações e delírios. Birdman provoca o público no sentido contrário, fazendo-o crer que Riggan seja, de fato, “louco”, apresentando os eventos bizarros apenas quando o personagem está sozinho e evitando qualquer evidência objetiva de que ele realmente tenha habilidades excepcionais.
“O trabalho cultural feito no passado, por deuses e sagas épicas, agora está sendo feito por comerciais de sabão em pó e personagens de histórias em quadrinhos.” (Roland Barthes)
Para mostrar esse duelo entre o indivíduo e seu alter ego, acompanhamos os últimos ensaios de uma peça escrita (baseada na obra de Carver), dirigida e protagonizada por Riggan. Essa peça representa a possibilidade dele ser reconhecido de fato, sem os subterfúgios da máquina de franquias do cinema. Para criar esse cenário, há a exímia direção de fotografia de Emmanuel Lubezki (de Gravidade e A Árvore da Vida), a trilha sonora crua e fantástica composta pelo baterista de jazz Antonio Sanchez e o uso da câmera em movimento, como se a própria tela refletisse a perspectiva do olhar do pássaro voando sobre o cenário, dando a impressão de que todo o filme é uma única e contínua cena. Ou seja, o filme é tecnicamente surpreendente, mas Birdman vai além da técnica, mostra-nos, através de um homem cansado e confuso, como os nossos desejos últimos parecem ser dirigidos por uma profunda necessidade de ser amado.
A relação conturbada de Thomson com sua filha (Sam, interpretada por Emma Stone) proporciona um dos melhores momentos do filme. Essa cena é suficiente para justificar a indicação de Stone ao Oscar de Atriz Coadjuvante. O monólogo sobre “ser relevante” em um contexto que todo mundo parece temer não ser notado, “compartilhado” ou “curtido” é de uma atualidade patética e irritante.
“É minha chance de fazer algo que signifique alguma coisa.”
“[…] Falando sério, pai, você não faz isso pela arte. Você faz isso pois quer ser relevante de novo. Adivinha? Há um mundo lá fora onde pessoas lutam todo dia para serem relevantes. E você age como se isso não existisse. Coisas acontecem em um lugar que você ignora. Um lugar que, aliás, já se esqueceu de você. Quem diabos é você? Você odeia bloggers, tira sarro do Twitter, nem tem um Facebook. É você que não existe. Você faz isso porque morre de medo, como todos nós, de não ser importante. E que saber? Tem razão, você não é importante. Acostume-se.”
“A popularidade é o primo pobre do prestígio” (Mike)
Assim como o cinema produz um personagem com capa e máscara a cada dia, comercializando o mito do herói em grande escala, o sucesso e a qualidade das peças da Broadway parecem ser movidos pela generalização da visão de um grupo seleto de críticos. O conceito da arte pela arte não parece ter mais espaço nesse contexto, o que faz com que a luta de Riggan com seu alter ego tenha um vencedor evidente e ele entende isso quanto mais se aproxima do dia da estreia.
O pequeno grupo de atores que compõe a peça é uma ode a conturbação psíquica. Há a atriz insegura que está angustiada pela consolidação de seu maior sonho – estrear na Broadway, interpretada por Naomi Watts; Laura (Andrea Riseborough), uma atriz apaixonada pelo diretor ou pela ideia de se apaixonar, o que evidencia ainda mais suas carências; e Mike (Edward Norton), um renomado ator teatral que parece só funcionar em cima do palco. Em todo o restante do tempo, Mike teme errar e cria uma série de artifícios que o transforma num fantoche de si mesmo.
“Você não é um bom ator. Quem se importa? Você é muito mais do que isso. Você se sobressai sobre esses idiotas do teatro. Você é uma estrela do cinema, cara. Uma força global, não entende? Passou sua vida construindo reputação e contas bancárias e então explodiu ambos. […] Tire essa cara patética, faça uma cirurgia. seu filho da mãe. Você é o original, cara. Você pintou o caminho para esses outros palhaços. Dê às pessoas o que elas querem. Algum filme pornô apocalíptico à moda antiga. ‘Homem-Pássaro, a Fênix Ressurge’.” (Birdman)
Birdman é a personificação do desespero de Riggan. Um desespero pautado na falta de sentido das escolhas que ele fez na vida, desde papéis superficiais no cinema até a infidelidade no casamento e a negligência na criação de sua única filha. Como concluiu Khoshaba (2014), esse sentimento se aproxima do que Kierkegaard chama de consciência do desespero. Para Kierkegaard (2006 [1849] apud JANZEN & HOLANDA, 2012), o desespero se caracteriza quando o sujeito quer ou não ser ele mesmo e é nesse aspecto que reside o caráter paradoxal da existência. Esse pensamento pode ser refletido no fato de Riggan ignorar quem, de fato, ele é, pois a impressão que temos é que ele ainda não entendeu se é o ator sensível de teatro em busca da redenção familiar ou a celebridade predadora dos blockbusters. Talvez fosse mais coerente concluir que ele não é nem uma coisa nem outra, já que dificilmente a natureza humana pode ser traduzida de forma tão cartesiana. É essa tentativa de escolher um dos extremos que quebra sua psique e faz vir à tona pensamentos suicidas.
“Você confunde amor com admiração.”
E, ao final, qual o sentido da frase “a inesperada virtude da ignorância” no título do filme? Segundo o Diretor (Alejandro G. Iñarritu)1, essa frase reflete o estado conflituoso da mente do personagem principal. Assim, interpreto que Riggan ao ignorar qual voz interna de fato o personificava tenha estabelecido uma nova ordem em sua psique. Por isso, nem se tornou o Birdman totalmente nem assumiu um lugar naquilo que convencionalmente chamamos de “realidade”. A eliminação da contradição dos dois extremos que ele tentava desesperadamente sustentar colocou-o em outro patamar. Nesse novo lugar talvez tenha encontrado o perdão da filha e da ex-esposa, tenha lido uma crítica positiva de sua peça na Times e, até, ganhado um novo rosto. Mesmo não sendo completamente um homem-pássaro pôde reaprender a voar e, quem sabe, voltou a ser amado. E não é esse o desejo de “quase” todos?
Referências:
JANZEN, Marcos Ricardo and HOLANDA, Adriano Elementos para uma psicologia no pensamento de Søren Kierkegaard. Estud. pesqui. psicol., Ago 2012, vol.12, no.2, p.572-596. ISSN 1808-4281. Disponível em: http:// http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8283
KHOSHABA, D. Film Analysis of Birdman – The Unexpected Virtue of Ignorance. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/blog/get-hardy/201502/film-analysis-birdman
PINO, Angel L.B. Processos de significação e constituição do sujeito. Temas psicol., Ribeirão Preto , v. 1, n. 1, abr. 1993 . Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X1993000100004&lng=pt&nrm=iso. acessos em 18 fev. 2015.
YOUNG, Skip Dine. Playing with Psychosis in ‘Birdman’. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/blog/movies-and-the-mind/201411/playing-psychosis-in-birdman
FICHA TÉCNICA DO FILME
BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA)