Alice: entre o delírio e a sobrevivência em Batwoman

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A trajetória de Beth Kane, também conhecida como Alice na série Batwoman, oferece um rico material para análise psicológica e simbólica de processos de fragmentação do self, rejeição afetiva e estratégias de sobrevivência psíquica. Sua construção como personagem é profundamente atravessada por traumas precoces e prolongados, evocando aspectos típicos de um possível quadro de Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) e de sofrimento psíquico derivado da ausência de vínculos afetivos estáveis.

1. Trauma, dissociação e construção de identidade

Fonte: CW

Após o sequestro que resulta na morte da mãe e no desaparecimento de Beth, a personagem é mantida em cativeiro durante anos por August Cartwright, um homem emocionalmente perverso que a entrega como “companhia” para seu filho, Jonathan Cartwright — um jovem com deformidades faciais graves, fruto de queimaduras. August, que via o próprio filho como indigno de amor, exigia que Beth servisse como uma espécie de amiga forçada e cuidadora. Como se não bastasse, o sequestrador utilizava pele humana de cadáveres para confeccionar máscaras faciais para o filho usar, e obrigou Beth a aprender a costurar essas máscaras com pele humana — submetendo-a, assim, a práticas de violência física e simbólica profundamente desumanizantes.

Durante o tempo em que permaneceu presa, Beth tinha acesso restrito à televisão, onde chegou a ver notícias da busca por seu paradeiro. Contudo, era constantemente submetida a episódios de violência psicológica, com August reforçando que ninguém mais a queria, que sua família havia a esquecido ou a substituído. Isolada no porão, sem qualquer vínculo afetivo real, Beth desenvolve estratégias para preservar a sanidade. Entre elas, destaca-se a leitura obsessiva do único livro a que tinha acesso: Alice no País das Maravilhas. Esse contato repetido com o universo onírico de Lewis Carroll se tornou a única forma de dissociar-se da realidade insuportável do cativeiro.

A partir dessa vivência extrema, nasce Alice — uma persona alternativa, inspirada nos delírios literários e construída como mecanismo de defesa contra a dor. De acordo com Herman (1992), “a dissociação serve para proteger a consciência do indivíduo daquilo que é traumático demais para ser integrado de forma consciente”. Assim, Alice não é apenas um nome: é uma tentativa desesperada de reorganizar o caos psíquico, uma figura construída para sobreviver onde Beth já não podia existir.

2. A sombra rejeitada: rejeição afetiva e vilanização do outro

Fonte: CW

Beth não apenas sobreviveu ao trauma: ela foi esquecida. Declarada morta, teve sua ausência convenientemente enterrada pela família. A adoção da persona de Alice surge, portanto, não apenas como um sintoma clínico, mas como um ato político de rejeição à identidade que lhe foi negada. Ela assume o papel de vilã com teatralidade porque é o único papel que lhe resta num mundo onde não foi acolhida.

Essa construção remete ao conceito junguiano de sombra, definido como o aspecto do self que é reprimido, ocultado ou negado: “A sombra representa aquelas qualidades ou elementos inconscientes da personalidade que o eu consciente recusa-se a reconhecer como parte de si mesmo” (Jung, 1981, p. 104).

Na dualidade entre Kate (a heroína) e Alice (a vilã), vemos o embate entre a persona pública e a sombra não integrada. Alice não é apenas inimiga: é reflexo. Ela representa o que poderia ter sido de Kate, caso o contexto tivesse sido outro. E, mais profundamente, representa a parte que Kate — e a sociedade — rejeitam, mas que insiste em existir.

3. A síndrome do herói e o fracasso da salvação

Fonte: CW

A irmã gêmea Kate Kane, ao assumir o manto de Batwoman, encarna aquilo que Campbell (2007) descreve como a jornada do herói — alguém que enfrenta desafios externos para vencer um mal. No entanto, como aponta McDougall (1996), o problema do herói contemporâneo é que ele “precisa de um vilão à altura para justificar sua própria existência”. Alice se torna essa antagonista essencial. Mas o problema é que, ao contrário de vilões clássicos, ela não é má — ela é ferida.

Isso aproxima a narrativa daquilo que alguns autores chamam de síndrome do herói salvador (Kets de Vries, 2003), em que o sujeito assume a responsabilidade por salvar os outros como forma de lidar com sua própria culpa ou fragilidade interna. Kate tenta salvar Alice, mas o faz a partir de uma lógica moral, e não afetiva. E, por isso, falha. Pois o que Alice precisa não é de justiça — é de reconhecimento.

4. A rejeição como morte simbólica: a metáfora dos rostos roubados

Em seu período como “Pirata da Pele”, Alice rouba rostos de cadáveres. Esse gesto grotesco tem valor simbólico profundo. Ela, que perdeu o próprio rosto social — isto é, sua identidade reconhecida — tenta reconstruí-lo com fragmentos de outros. Isso remete ao que Butler (2003) chama de morte simbólica: o apagamento do sujeito que não se encaixa nas normas de reconhecimento do outro.

Assim como pessoas LGBTQIAPN+ muitas vezes precisam esconder, performar ou reprimir suas identidades para sobreviver em contextos de rejeição familiar ou religiosa, Alice constrói uma máscara que dramatiza o absurdo da exclusão. Ela é uma caricatura, mas também uma denúncia viva da crueldade de ser esquecido por quem deveria amar.

5. Afeto e reconhecimento como possibilidade de resgate

A fala de Mary Hamilton, meia-irmã de Alice, resume um ponto central da narrativa: “Apesar de toda a nossa bagagem, nós dois encontramos a irmã que sempre quisemos. Eu vejo quem é a garota que… simplesmente anseia por sua liberdade.”

Este trecho é um momento de reconhecimento do sujeito, tal como proposto por Axel Honneth (2003), para quem a identidade só pode se desenvolver de forma saudável quando há reconhecimento intersubjetivo — ou seja, quando o outro nos vê como sujeitos de valor. Ao ser reconhecida, mesmo que brevemente, Alice pode reconectar-se com algo de Beth — sua origem perdida, seu desejo de pertencimento, sua humanidade fragmentada.
Conclusão: a personagem como metáfora psíquica e social

A história de Beth Kane/Alice é mais do que um drama de super-heróis: é um retrato multifacetado das formas como a psique humana responde à rejeição profunda e à negação da identidade. Sua trajetória pode ser lida como uma metáfora da vivência de muitas pessoas LGBTQIAPN+ que, diante de contextos opressores e não acolhedores, constroem máscaras, personas e fantasias para preservar o pouco que resta de si. Alice, ao fim, talvez não seja a vilã. Talvez seja apenas a criança ferida que encontrou na loucura um abrigo, na fantasia uma voz, e na vingança uma tentativa desesperada de ser vista. Como afirma Judith Butler (2003), “toda vida que não pode ser lamentada é, antes mesmo de sua morte, uma vida já excluída do humano”.

Referências:
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 2007.

HERMAN, Judith L. Trauma and Recovery. New York: Basic Books, 1992.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1981.

KETS DE VRIES, Manfred. Leaders, Fools and Impostors. San Francisco: Jossey-Bass, 2003.

McDOUGALL, Joyce. Teatros do corpo: psicossoma e psicoterapia. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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Bacharel em Direito pela Faculdade de Palmas (FAPAL), Acadêmica e Estagiária de Psicologia da ULBRA Palmas.

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