A tese, ou o pós-moderno Prometeu

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Deitando-se nalgum momento perdido ao fim de um longo dia de trabalho, está o iniciado dos liceus, em vias de finalizar sua passagem por aqueles corredores, escadarias e prédios cinzas, residências de um saber continuamente (des)construído, e poucas vezes imprescindível ou necessário. Sua condição é esta, agora não mais com os olhos brilhantes de seu verdejar pela incontáveis páginas amarelas, encolhia-se em meio aos seus cobertores estragados, uma pequena luz adentrava seu quarto minúsculo, velado pela claridade turva do luar ao longe, um único desejo o preenchia: apagar, ao menos por alguns instantes, as tormentas elucubrativas que habitavam sua mente.

Aos inícios dos arrebois, lá estava novamente, perscrutando epitáfios e lápides, a partir das quais encontraria o que lhe convinha, esse era apenas o introito ao execrável ritual, após a abertura e escavação dos túmulos. Feita a exumação dos restos mortais era preciso, agora, escolher, pausada e calmamente, membros, tecidos e demais partes do finado, a serem levados em sua antiga carruagem, encostada às margens do lago próximo ao olvidado cemitério. Findada mais uma ida na terra da carne pútrefa, aguarda-se no reduto longínquo, em meio a turvos pesadelos e frios suores, o próximo ciclo notívago. Em seu laboratório, havia três grandes divisões dos materiais coletados todas as noites.

Nas prateleiras postas à parede mais escura, repousavam os fluídos necessários ao seu trabalho, de formol a ácidos, diferentes tipos sanguíneos e misturas rotuladas com códigos entendíveis apenas pelo executor do intento. Amontoados em caixotes de madeira, estavam partes diversas dos corpos vistoriados em longas horas passadas na necrópole: braços, pés, pernas, troncos inteiros ou repartidos, ocos ou ainda com remanescências do que eram, outrora, camadas de tecidos internos dos mais diversos. Em uma bancada mais limpa e apartada do restante da sala, estavam enfileiradas as cabeças, crânios, olhos e cérebros, submersos em pequenos potes, dentições e diversos tipos de cabelo, como se fosse possível extrair desta seção uma beleza moldada a passo lento dos escombros das vidas não mais existentes. Por fim, também cuidadosamente organizados em armários com portas de vidro, estavam os órgãos e demais repartições internas do que viria a ser a opus magnum do criador inominável, ao menos esse era o pensamento que o habitava e fazia suas pernas e braços, dedos e olhar ficarem magnetizados durante todo o processo de montagem da sua criatura singular e inigualável.

Na beirada da mesa central estavam todas as ferramentas, utensílios, manuais, e demais quinquilharias necessárias para se fazer toda a andadura do mise-en-scène do ser em nascituro, às agulhas, de diferentes tamanhos e espessuras, cabia um lugar especial, já que a costura das membranas, músculos, ossos e tendões, demandava mais apuro e precisão em cada uma das perfurações e incisões. Após dias e noites inteiras insones, o trabalho começava a chegar ao seu tão esperado fim, e com o monstro chegando (im) perfeito à sua plenitude, eis que o seu mostrar-se como tal, começava a esboçar os traços, feições e silhueta inconfundível.

Até então, não se sabia a decifração do éter espiritual, o sopro de vida que nos vem ao primeiro choro e derradeiro suspiro, mas em anos de estudos nos livros dos mestres mais sombrios, o aflito aprendiz chegara a chave da aldrava: eletricidade. Uma carga impensável mesmo naquela época, de ampla evolução tecnológica, capaz de deixar a mais iluminada das cidades em completa penumbra, e assim ocorreu no momento em que o botão fora, enfim, apertado. Acabado todo o processo, grita-se “Está vivo!”, no entanto, não há orgulho ou calmaria nas têmporas, o que restou à enrugada tez é o questionamento, louco e incontrolável, ao fitar o corpo costurado, preso à tábua defronte: a criatura aqui trazida à existência, em condições tão condenáveis e desprezíveis, é tão horrível quanto aquele que a recolheu da atemporalidade para este reino mundano?

Uma respiração sôfrega e pesada inicia-se. Agora, é tarde, está feito, por entre as feridas e costuras, o sangue ainda goteja, frio e denso, e movimentos frenéticos habitavam os olhos sedentos de liberdade abaixo das pálpebras. As horas da noite sem fim ainda passavam, e o prospecto de novo membro dos círculos acadêmicos ainda suava gelidamente, em meio aos espasmos musculares, sabendo que ao raiar a primeira luz do dia vindouro, havia de ter ainda muitas idas aos seus mestres mortos, aos textos ininteligíveis e à prisão linguística a que estava sujeito há anos, sem saber, sequer da validade ou propósito do que lia, via e, principalmente, escrevia.

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O Exterminador do Futuro e Alien: o vanguardismo anti-arquetípico em Ellen Ripley e Sarah Connor

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A indústria do entretenimento fílmico não é conhecida por se desfazer facilmente de seus estereótipos. Exemplos são diversos e repetitivos, principalmente ao se tratar de gêneros consagrados, ou de fácil retorno ao investimento de filmagem como, por exemplo, a ficção científica, os faroestes, as comédias românticas, ação, terror/horror, epopeias, filmes policiais, dramas de época, etc.

Neste cenário salta aos olhos duas incursões fílmicas, inseridas no mesmo modelo cenográfico da ficção científica: A Tetralogia “Alien” e a Tetralogia “O Exterminador do Futuro” (Terminator), ambas com quintos filmes também para reintroduzir suas mitologias às novas gerações: “Prometheus” (2012) e “O Exterminador do Futuro: Gênesis” (2015). Outro ponto é que nestes dois últimos filmes houve uma regressão em suas propostas historiais, rendendo-se a clichês cinematográficos clássicos, quando mulheres são colocadas em protagonismos enviesadas pelos lugares comuns do olhar de produtores e executivos.

Tanto nos filmes Alien como nos Termitors há a presença de personagens femininas centrais, Sarah Connor e Ellen Ripley, que não precisam se apoiar em arquétipos ou estereótipos para sustentarem sua força de representação nas projeções que fazem parte. Acompanhamos o crescimento destas mulheres ao longo dos filmes, seus enfrentamentos, dramas e desenvolvimento.

Ellen Ripley e Sarah Connor nos primeiros filmes das franquias Alien e O Exterminador do Fututro.

O impacto na sétima arte de Connor e Ripley permanece como um legado a ser observado com atenção e respeito, pois muitas vezes, ainda hoje, vemos que muitas das lições deixadas pelas personagens de Sigourney Weaver e Linda Hamilton são deixados de lado em prol dos ditames mercadológicos e ranços culturais perante a figura feminina no cinema.

Entre a Terra do Futuro e LV 426

Seja numa Terra de um futuro pós-apocalíptico ou num planetoide a anos-luz de nossa casa, as franquias de ações protagonizadas por Sarah Connor e Ellen Ripley fixaram suas raízes profundamente na ficção científica, adicionando elementos dramáticos, vanguardismo em efeitos especiais e grandes atuações. A seguir temos os filmes que compõem estas franquias:

A franquia Alien:

Alien, o Oitavo Passageiro (1979): uma obra que é considerada uma obra-prima da ficção científica, por mudar a visão sobre os extraterrestres – não mais criaturas humanoides e amigáveis – para um monstro caçando tripulantes um a um; o orçamento baixo não suprimiu a boa direção, o andamento e qualidade do roteiro e equalização entre falas e atuações;

Aliens, O Resgate (1986): nas mãos de James Cameron a continuação ampliou e melhorou algumas pontes narrativas deixadas no primeiro longa, adicionando elementos, e aproveitando os simbolismos da recém-criada mitologia da franquia. A inserção do componente de ação deu ares de blockbuster à obra, se aproveitando do estrondoso sucesso já cristalizado na luta de Ellen Ripley anos antes;

Alien 3 (1992): neste ponto as coisas começaram a se perder um pouco. Dificuldades no script, equipe técnica, orçamento e o desgaste em torno de alguns elementos da franquia sobressaltaram-se na falta de reinvenção destes elementos. Apesar destes problemas o filme teve relativo sucesso nas bilheterias, mas ficou distante da aceitação da crítica especializada, apesar dos grandes avanços estéticos apresentados;

Alien: Resurrection (1997): a verdade é que o apelo e carisma de Sigourney Weaver conseguem prender a atenção durante o filme, desde que a mesma esteja no plano central das ações. Para além disso, não há novas propostas ou grandes desenvolvimentos do rico simbolismo dos aliens, tanto na ressureição de Ripley como numa tentativa (utilizada novamente em Prometheus) de humanização dos alienígenas em experimentos híbridos;

Prometheus (2012): após décadas distante do seu criador, Ridley Scott e o artista plástico H.G. Giger, uma nova leitura da franquia Alien chegava aos cinemas. Com uma expectativa tão alta quanto a obra original, o longa acertou em pontos interessantes, dentro da própria mitologia da tetralogia original, e propondo novos horizontes de grande potencial, mas pecou no casting, desenvolvimento de alguns personagens e na priorização da estética – impecável tecnicamente – ao invés do suspense e cadenciamento dos eventos.

– Há ainda os crossovers Alien vs. Predator (2004) e Aliens vs Predator: Requiem (2007), dos quais apenas o primeiro merece alguma menção ou comentário, por tentar colocar em tela as duas figuras monstruosas mais famosas do cinema, reciclando, mesmo com má qualidade, o subtexto d’As Montanhas da Loucura de H. P. Lovecraft.

A franquia O Exterminador do Futuro:

 – O Exterminador do Futuro (1984): em meados dos anos 80 a ficção científica já estava estabelecida como gênero no cinema, mas de uma maneira mais positiva. O tom utilizado no filme é noturno, frio e envolto num assombroso futuro pós-apocalíptico causado por uma insurreição de máquinas, tudo entrelaçado com viagem no tempo e pitadas cyber-punk. Somos apresentados pela primeira vez a uma ainda jovem e assustada, mas não ingênua, SarahConnor, e o temível T-800 de Schwarzenegger;

O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991): com este filme houve o que ainda é considerado uma das maiores, senão a maior, sequência de um filme de todos os tempos (juntamente com The Godfather II  e The Dark Knight). Com um grande aprofundamento da mitologia criada no primeiro longa, novos personagens são inseridos, e há uma complexificação da narrativa, enriquecendo-a e elevando a trama ao nível de clássico absoluto dos gêneros ação\ficção científica;

O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas (2003): após a perda dos direitos criativos de James Cameron, infelizmente a riqueza deixada pelos antecessores foi colocada de lado em detrimento apenas do retorno financeiro. A família Connor perde sua importância e representatividade, e as máquinas, antes suportes da trama, agora são utilizadas estritamente para o frenesi das cenas de ação, descontextualizadas da estória.

O Exterminador do Futuro: A Salvação (2009): nesta famigerada continuação, Christian Bale aparece nitidamente desconfortável num John Connor distante da primeira encarnação dos anos 90, além de uma falta de ritmo e substrato dramático, comuns nos primeiros filmes da franquia. Com inúmeros problemas no set de filmagem, o que temos neste longa é uma tentativa descartável de “salvar” a franquia, já desgastada devido ao filme de 2003;

O Exterminador do Futuro: Gênesis (2015): a última tentativa de colocar os exterminadores nos cinemas se mostrou prodigiosa no início. Com um plot centrado novamente nas possibilidades da viagem no tempo, vias de desenvolvimento são abertas e até bem aproveitadas, enquanto dependentes das duas primeiras obras. A partir do ponto que precisa caminhar por si infelizmente o filme se perde em suas próprias pretensões, findando o que seria um novo projeto tripartite para a franquia;

– A tentativa de emplacar uma série centrada em Sara Connor em O Exterminador do Futuro: As Crônicas de Sarah Connor, estrelada por Lena Headay, foi bem sucedida em sua primeira temporada, mas não conseguiu seguir adiante após seu segundo ano de exibição, apesar de tramas relativamente interessantes sobre campos inexplorados da mitologia do embate entre seres humanos e as máquinas exterminadoras.

O Exterminador do Fututro: As crônicas de Sarah Connor.

Mulheres de Esparta

Diferente do que nosso consagrado poeta musical Chico Buarque afirma em uma de suas trovas, nem todas as mulheres são de Atenas, há aqueles de Mecenas, Olímpia, Tebas e Mileto e, por que não, de Esparta? Mas antes de fazer esta contraposição uma ressalva é importante, este argumento se coloca em pauta devido ao que já foi exposto até aqui, ou seja, é possível haver força e presença feminina sem recorrência a lugares comuns e muletas narrativas e de gênero, como os dois extremos mais utilizados: a donzela em perigo ou a transformação da figura feminina em êmulo do sexo oposto. Com a sugestão de reflexão na cidade de Lacedemônia, suas mulheres seriam dotadas de coragem e decisão sem perder sua feminilidade, afetividade e emoções, estas são Ellen Ripley e Sarah Connor.

A importância destas personagens e, principalmente Ripley, é considerado como um ponto de viragem na indústria cinematográfica por Elsa Margarida Rodrigues (2010): “Os anos de 1970 marcam um ponto alto no tratamento do género na ficção científica com a publicação de um número significativo de textos que Joanna Russ, mais tarde, lassificaria como utopias feministas, e que podem servir de fundo ao aparecimento da primeira heroína do cinema de ficção científica: Ellen Ripley.” (RODRIGUES, 2010, p. 214).

Ellen Ripley e Sarah Connor em Aliens, O Resgate (1986) e O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991).

Na esteira e legado deixados por Ripley, Sarah Connor ainda é a principal herdeira da mãe da ficção científica hardcore, juntamente com a mais nova inserção representativa por parte da Imperatriz Furiosa de Mad Max: Fury Road. Nos primeiros filmes, de 1979 e 1984 Connor e Ripley ainda possuem muitos traços menos imbatíveis e mais fragilizados em seus trejeitos, mesmo que em germe, haja a heroína que se manifestaria no desenrolar da obra e em suas continuações. Elsa Margarida Rodrigues faz a conexão simbólica e de importância imensurável de Ellen Ripley e Sarah Connor para os cinemas:

No entanto, Ellen Ripley pode justificar-se, não pelo impacto do feminismo no modo de conceber e retratar as políticas de gênero, mas no facto de Alienser um filme de fronteira entre a ficção científica e o terror, desempenhando Ripley o papel de rapariga sobrevivente, a final girl dos filmes de terror. Talvez mais ilustrativa do que Ellen Ripley, Sarah Connor (Linda Hamilton) é uma das heroínas do cinema de ficção científica que mostra a versatilidade feminina, combinando vários estereótipos e ilustrando as alterações na percepção do papel da mulher entre a década de 1980 e a de 1990. No primeiro filme Terminator (James Cameron, 1984), Sarah é uma jovem atraente, ingénua, com um aspecto quase infantil, um emprego mal pago, sem grandes preocupações além de divertir-se. A estas características acrescenta-se o facto de se instituir como objecto de amor e desejo (por Kyle Reese) e ser reponsável por gerar, cuidar e educar uma criança que será o futuro líder da humanidade. Corresponde aos estereótipos femininos, encerrando a simbologia cristã de ter sido escolhida para dar à luz o salvador, mas revela-se independente e auto-suficiente, fazendo o espectador acreditar que ela será capaz de desempenhar eficazmente o seu papel de mãe do líder da oposição humana na guerra contra as máquinas.

A mudança em Sarah Connor que sua antecessora astronauta, houve um ciclo mais radical, entre o primeiro e o segundo filme, seu contato com o monstro do futuro vindo do futuro modificou sua personalidade, sua visão de mundo, ações e posturas, principalmente pela vinda do seu filho, destinado a ser o salvador do apocalipse cibernético: “Para que John tivesse esperança de um futuro melhor, Sarah desistiu da vida de heroína, dos sonhos heroicos e da sua chance de viver livre da mancha causada pela violência do futuro infligida ao presente. Mãe guerreiras da areia, sem varinha em tempos passados, fizeram tais sacrifícios para melhorar suas sociedades. Com grandeza empurrada sobre ela, Sarah não tinha muita escolha. Ainda assim, nós a admiramos para o que ele se torna, a mãe de todos os guerreiros.” (CULVER, 2009, p. 92, tradução livre).

Sarah e John Connor.

E, como já comentado, a autora portuguesa reforça o argumento do crescimento de Sarah Connor no segundo filme dos exterminadores do futuro. O mais importante neste desenvolvimento foi o cuidado dos responsáveis pela obra de não caírem em masculinizar a personagem principal, fazendo-a uma guerreira completa, sem deixar para trás sua personalidade, crenças e complexidade emocional:

No Terminator 2, Sarah ultrapassa a imagem de jovem desprotegida. De acordo com Telotte (1995: 179), no segundo filme ela assume o estereótipo da ultra feminista. O seu corpo torna-se musculado, uma versão feminina do exterminador que enfrentara no filme anterior, mostrando que as oposições humano/máquina e homem/mulher podem ser superadas na figura da mulher, através da assimilação da máquina e do homem. No início do filme, Sarah está internada num asilo para pessoas com problemas mentais, onde é exibida como objecto clínico, atestando que essa superação não é isenta de custos. Apesar de ser encarada como anormal, Sarah representa a capacidade humana de modelação, de adaptação às circunstâncias, de sobrevivência em ambientes adversos e de resposta às exigências que são colocadas. Neste filme ela não é apenas a mãe de John Connor, mas ela própria é profetisa e salvadora da humanidade. Apesar da resistência física que o corpo musculado lhe confere e da aparente ausência de emoções, Sarah mostra não ter perdido a sua essência humana ao ser incapaz de matar Miles Dyson, o responsável pelo computador Skynet que conduzirá a humanidade à terceira guerra. Passível também de uma leitura de gênero e da fusão entre humano e máquina é a inversão de papéis que acontece entre Sarah e o exterminador, o androide masculino que no segundo filme se transforma numa figura paternal, a quem Sarah atribui a responsabilidade de proteger e acarinhar John Connor. Depois de Ellen Ripley e Sarah Connor, as heroínas de ação (action babes) tornam-se frequentes nos vários gêneros cinematográficos, substituindo as big bosomed babes 130 de décadas anteriores (RODRIGUES, 2010, p. 214-215).

Tanto o Alien como o ciborgue possuem em si um simbolismo do enfreamento de gênero. No primeiro caso, todo o designer de H.R. Giger foi pensado como uma mimetização da genitália masculina, e todo o processo de nascimento e maturação do alienígena também estão envoltos a estes temas, desde o nascimento por meio de um “estupro” sanguinolento até sua forma de reprodução indireta.

Ripley e a Rainha dos Aliens.

Para as máquinas da franquia Terminator, ao menos nos dois primeiros e melhores filmes, sua presença, eficiência mortífera e força implacável contrastam com seu alvo principal, principalmente quando levamos em consideração a versão inicial de Sara Connor (e no segundo longa por meio de seu filho John), ainda descrente do risco de sua vida. Esta situação só é alterada no segundo filme, com o devido preparo da protagonista, sem masculinizá-la ou encobertá-la de voyeurismo sexualista.

Nas continuações, Aliens, O Resgate (1986) e O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991), há o incremento de um novo óbice para o enfrentamento das protagonistas. Para Ripley, agora preocupada em garantir a segurança da pequena Rebecca, há uma das mais épicas batalhas da ficção científica com a rainha dos Aliens, que também defende sua prole. Nesta cena observamos uma rima imagética entre a máquina utilizada por Ripley e a líder dos alienígenas, numa linguagem de autotransformação em monstro, para lutar contra o inimigo; este recurso simbólico voltaria no quarto filme dos Aliens, mas, com menos eficácia.

Já Sara Connor encontra um novo nêmesis na figura de um verdadeiro demônio positrônico, o T-1000 brilhantemente interpretado por Robert Patrick. A nova máquina, que caça Connor, seu filho e o T-800 que os protege, é fria, sádica, incansável e praticamente indestrutível, para derrotá-la há a unificação de esforços ente Connor e o exterminador de Schwarzenegger, emulando a devolução da criatura para o inferno. Além disso, se o Alien possui em sua língua o símbolo fálico máximo, no T-1000 as extremidades de seus membros cumprem tal papel, inclusive com uma cena chave ao final da segunda obra, mimetizando também uma violação corporal.

Sarah Connor e o vilão T-1000.

Um longo caminho…

O caminho a ser percorrido pelos filmes contemporâneos, na trilha deixada por estes dois ícones dos filmes de ação, é longo e recheado dos mais imprevisíveis (ou não tanto assim) óbices da indústria cinematográfica. Como vimos, não é preciso se render à estereótipos, arquétipos ou clichês estabelecidos para se fortalecer a presença feminina, não apenas em filmes de ação e ficção científica, mas em qualquer obra fílmica, como Blue Jasmine (2013) Le Geum-ja (2005), Million Dollar Baby (2004), The girl with the dragon tatoo (2011), Zero Dark Thirty (2012), The Silence of the Lambs (1991), Fried Green Tomatoes (1991), The Piano (1993),  e os franceses e La doub le vie de Véronique (1991) Trois Couleurs: Rouge (1994) e Les fabuleux destin d’Amélie Poulain (2002).

Por esta razão chega ser decepcionante em pleno 2015 vermos, por exemplo, a personagem em de Brice Dallas Howard em Jurassic World correr de um tiranossauro com saltos agulha, por puro fetiche ou fan-service, a indefensável (e duramente criticada) caracterização de Laura em Street Fighter V ou então os movimentos contrários à protagonização feminina, por parte do público (até mesmo em movimentos coletivos de boicote), em filmes recentes como Mad Max: Estrada da Fúria, Frozen e Detona Ralph, e muitos outros exemplos que poderiam ser citados. Resta-nos torcer para que os maiores estúdios de cinema hollywoodianos voltem seu olhar para um perfil de protagonismo feminino que vá além das limitações e superficializações históricas que estas personagens costumam receber.

REFERÊNCIAS: 

CULVER, Jennifer. Sarah Connor’s Stein. In: IRWIN, Willian. Terminator and Philosophy: I’ll be back, there fore I am. Edited by Richard Brown and Kevin Decker. New Jersey: John Wiley & Sons, 2009.

RODRIGUES, Elsa Margarida da Silva. Alteridade, Tecnologia e Utopia no cinema de ficção científica norte-americano: a Tetralogia Alien. Tese de Doutoramento. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2010.

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Mad Max: Estrada da Fúria – o (re)nascer do herói

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Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham nessa imundície pedregosa?
Filho do homem 
não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol, e as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos, e nenhum rumor de água a latejar na pedra seca.
Apenas uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto de tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”.
Wasteland, de T. S. Eliot por Ivan Junqueira.

O fosso da queda

Max Rockatansky não é um louco, como os títulos da franquia do personagem pressupõem. Ao menos esta não é sua estirpe essencial no início de sua concepção, nos idos de 1979, com o longa-metragem Mad Max (sabiamente não traduzido, o que manteve a força da pronúncia) de George Miller, também idealizador do argumento da obra; o que há diante de nós é um policial, já assolado pela cruel realidade vivenciada por ele e sua família, se perguntando qual a diferença entre usar ou não um uniforme nas estradas combatendo o crime. Ao final deste primeiro filme, e ao longo das duas sequências Mad Max 2: a caçada continua (Mad Max 2: The Road Warrior, 1981) e Mad Max: além da cúpula do trovão (Mad Max: Beyond Thunderdome) é que Max se tona Mad, sendo possuído por sua dor, agonia, arrependimento e ódio do mundo que lhe tirou tudo.

Max, início do filme de 2015.

Estas considerações são fundamentais para entendermos o que é, ou ao menos esboçar, a significância por trás do road movie Mad Max, Estada da Fúria (Mad Max, Fury Road do original) lançado em 2015. Nas investidas originais da franquia, Mel Gibson deu corpo, força e profundidade ao ex-policial de um mundo cada vez mais decadente e, três décadas depois, após inúmeros problemas de produção e adiamentos, Tom Hardy assume o posto deixado por Gibson, e a mudança conseguiu dar vitalidade e novas facetas para personagem, o apresentando e modernizando para nossa época, linguagem e público.

Este novo Max nem que quisesse seria o mesmo do longa inicial de 1979, muito menos o guerreiro implacável dos dois filmes posteriores. Estrada da fúria é um conto sobre alguém perdido em si mesmo, quase uma negação de estudo sobre o personagem título, já que pouco dele nos é apresentado, justamente pela vontade de esquecer-se da própria vida: “Eu era um policial. Um guerreiro da estrada, em busca de uma causa justa” (Max Rockatansky), uma sombra do passado, caminhando num presente sem sentido.

Mel Gibson e Tom Hardy como Max, respectivamente. Fonte: www.imdb.com

Nas telas da obra de 2015 vemos a penumbra do herói que um dia viveu nas infindáveis estradas do deserto que se tornou o mundo. O que vemos nesta versão do personagem é a sua mais profunda condição de fuga, sobrevivência e introspecção, agregados ao peso de seu passado, ações e decisões: “Eu sou aquele que foge tanto dos vivos quanto dos mortos. Caçado por saqueadores. Assombrado por aqueles que não consegui proteger” (Max Rockatansky).

Mas, ao mesmo tempo, o roteiro não nos entrega uma versão anti-heroica de Max, o que seria uma via tentadora, algo reincidente na atual indústria cinematográfica. Desta forma, não uma vendeta ou grande catarse na qual o protagonista trilha seus passos, dos cenários, objetos pessoais e trejeitos não emanam pomposidade ou luminescência moral. O instinto de sobrevivência prevalece como causa e condição para seguir alimentando o andarilho das terras desoladas em Estrada da Fúria.

E, este estado em que se encontra o novo/velho Max é que intrigou boa parte do público que assistiu aos longas clássicos. Apesar da riqueza e espetacularidade – há muito não vistas nas maçantes computadorizações do cinema contemporâneo – do filme apresentado por Miller, a impressão que se teve em muitas pessoas foi de estranhamento em relação ao herói título, muito mais por resistência em mergulhar na proposta de seu renascimento do que na incontestável qualidade do filme, um dos mais premiados e elogiados dos últimos anos.

A viagem pela Estrada da Fúria

O realismo e discussões propostas por Miller só encontraram tamanho eco na indústria cinematográfica a alguns anos, com o Cavaleiro das Trevas (The Dark Night, 2008) de Christopher Nolan. Não há transparência da virtualidade nos cenários e ambientações, vemos o sangue, a ferrugem, a areia e o sol de uma maneira crível e temível, como um mundo distópico suporia ter.

O filme inicia sua jornada com uma das aberturas mais intensas já registradas por Hollywood e que, certamente, ecoará por muitos anos em obras similares. Desde a concepção de sua distopia arenosa Miller viu sua maior criação ser objeto de diversas investidas plagiosas e por vezes falíveis, como O livro de Eli (2010), O Justiceiro (2004) e o brasileiro Reza a Lenda (2015). Mas o filho pródigo retornado às mãos do seu genitor atinge um patamar ainda a ser debatido em sua totalidade.

Os temas trazidos direta e indiretamente ao longo de suas duas horas de duração não temem as reações que possam causar inquietude ao público, como o feminicídio e exploração sexual e corporal das mulheres; a crítica aos extremismos religiosos em torno de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) e seus seguidores; toda a crítica ao armamento nuclear, causador do apocalipse que devastou o mundo; e a raridade, distribuição e consumo de petróleo e água; a adoração aos objetos acima de qualquer coisa, neste caso os carros e suas corridas representando este argumento crítico, dentre tantas outras nuances sobrepostas nas camadas de Mad Max, Estrada da Fúria.

Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne).

E não menos importante que todos os pontos já levantados, há a questão do papel de coadjuvante destinado a Max em seu próprio filme, uma consequência e resultado de todos os elementos supracitados. A depreciação corporal, moral, sexual e natural do mundo em Mad Max: Estrada da Fúria é o ponto de sustentação da essência do seu protagonista, um homem que lutou até as últimas forças contra tudo e todos, mas no momento apenas se arrasta como um ser inerte à própria existência.

Era preciso dar força à desgraça de Rockatansky, e a atuação internalista e brutal de Hardy interligada à visceralidade e camadas da Furiosa de Charlize Theron para aumentar toda a potência dos momentos em que estão juntos, em lados contrários ou como aliados. Furiosa é todo o que Max foi um dia e deixou de ser, sua crença, luta e persistência remete à versão oitocentista do herói caído e, não por coincidência, a partir dela o filme se estrutura e desenvolve, aos poucos mostrando a Max uma nova chance, ou ao menos, algum propósito em seus dias terrenos. A relação dos dois é intensa, bruta, real, talvez, por estas razões, não foram poucas as notícias de conflitos entre os dois atores durante as filmagens, devido a vontade mútua de transparecer em máximo realismo possível os sentimentos e contextos de seus personagens.

Furiosa (Charlize Theron) e Max.

E lembremos, é Furiosa quem apresenta a Max uma chance dele buscar algo, um propósito, um sentido para sua caminhada na estrada. Porque se ela é, no contexto do filme, o que Max deixou de ser, portanto, faz todo sentido que nela seja encontrada a rota para sua identidade.

“Furiosa: Você nunca vai ter uma chance melhor.
Max: Em quê?
Furiosa: Redenção.”

Theron/Furiosa é forte, convicta, justa, emocional, profunda e, assim como o personagem título, carrega consigo um peso do tempo em que viveu e vive neste mundo devastado e, mais do que isto, em meio às cores cruas do mundo em que vivem: vibrante e pulsante no cinza, amarelo e sombras, seu sonho, sua almejada redenção reside na busca pelo Vale Verde (menção intertextual à esperança).

Esperança esta também apresentada e dividida, a pós o embate inicial com Max, que passa a acreditar na chegada a este lugar. O vai e vem da história não deixa de ser uma reminiscência ao eterno retorno nietzschiano, pois mesmo negando-nos nossa essência, ela estará lá, mesmo esquecida ou relegada ao ostracismo por muito tempo. O arco envolvendo Furiosa remete a esta alegoria numa linguagem criativa e adequada para este reinício da franquia.

Portanto, devemos entender, ou tentar compreender, que Max não luta ou compete contra Imperatriz Furiosa, Immortan Joe ou Nux, até porque nenhum destes – principalmente a líder da fuga da Cidadela – precisam de outro personagem para se impor, cada qual possui sua história e complexidade. A luta de Max, o seu enfrentamento é consigo próprio, e com isto, e somente e partir disso, a força, fúria e potência de suas convicções e motivações tomam ainda mais importância para sua regeneração, após anos em meio ao seu breu pessoal.

Novos Aliados, pontes para a reificação de si.

O herói renascido de suas cinzas

Após a alucinante sequência inicial, orquestrada de maneira crível e sufocante por Miller, é possível observar, aos poucos, a maneira como o herói morto em Max começa a se reerguer, combatendo o ceticismo dele mesmo ao longo do desenvolvimento do longa. Alguns sinais desta (re)descoberta de si podem ser vistas em momentos-chave e elementos que compõem a mitologia construída ao longo da herança oitocentista de Mad Max.

Por exemplo, as aliadas, lideradas pela Imperatriz Furiosa em sua fuga; a preocupação com os mais novos e inexperientes neste mundo, sendo Nux (Nicholas Hoult) e as pariedeiras seus principais representantes; a recuperação de sua vestimenta, tal como as botas e sua icônica jaqueta, além de suas armas; por fim, mas ainda de maneira subjetiva o embate com seu carro, parte fundamental da construção da identidade do andarilho da terra devastada.

Finalmente a última consideração, não necessariamente sobre Mad Max, Estrada da Fúria, mas sob o personagem título da obra. Os pré-julgamentos e desprendimento da carga iconográfica e sígnica das atuações originais de Mel Gibson construíram uma cortina de fumaça, um velamento analítico sobre este Max do século XXI, e assim como ocorre ao novo Homem de Aço de Zack Snyder ou o Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan, neste filme temos não necessariamente o herói que queremos, mas o que merecemos. Um alguém humano, assolado por seus erros e, mesmo que relutante, em busca de um fio de esperança em meio às cinzas, sombras e derrotas.

A contemporaneidade é mais fria, descrente e hipócrita que a 30 anos atrás, no período de lançamento das primeiras obras do universo megalomaníaco de Miller. A chegada do Max de Hardy não poderia, nem deveria, ser de outra maneira. Um homem carregado pelas cicatrizes de anos a fio num deserto de decepções, enfrentamentos e sobrevivência. No fim das contas, Mad Max Estrada da Fúria é um filme de (re)começos, Furiosa e Max, representam este plot do roteiro, e todo o percurso de ida e volta que assistimos demonstram isso explícita e cruamente.

Mas não nos esqueçamos, o Max que em certo porto da fuga na estada da fúria profere sua sentença de erro sobre a esperança, é o mesmo que a mantém para o grupo de pessoas que decide ajudar. No fim da loucura e maldição do sangue e sal em que estão afundados, o herói renascido do seu fosso assume seu papel de mantenedor de uma crença no possível, uma via de desconstrução para sua realidade distópica e esquizofrênica. Este é o Max que o público, em sua maioria, deixou de apreciar, (re)ver e deixar-se (des)envolver.

Pelo menos assim nós vamos ser capazes de,  juntos,
se deparar com algum tipo de redenção.”
Max Rockatansky

FICHA TÉCNICA DO FILME:

MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA

Diretor: George Miller
Elenco: 
Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne
País:
Austrália e EUA
Ano:
2015
Classificação:
16

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A Língua das Coisas: um tributo a Manoel de Barros

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Escuto a cor dos peixes.
Essa vegetação de ventos me inclementa.
(Propendo para estúrdio?)
O escuro enfraquece meu olho.
Ó solidão, opulência da alma!
No ermo o silêncio encorpa-se.
A noite me diminui.
Agora biguás prediletam bagres.
Confesso meus bestamentos.
Tenho vanglória de niquices.
(Dou necedade às palavras?)
O livro das ignorãças

Manoel Wenceslau Leite de Barros foi um poeta mato-grossense (1916-2014), premiado nacional e internacionalmente por sua vasta e profunda obra. Suas criações perpassam por paragens como o niilismo, o parnasianismo, o modernismo e concretismo, além de tangenciar temas como a antropofagia, o regionalismo (o Pantanal e a vida interiorana brasileira) e a diversas reflexões existencialistas.

O curta metragem A língua das coisas de Alan Minas e produzido pela Caraminhola Filmes é uma homenagem a Manoel de Barros. Em seus 14 minutos, assistimos a uma interpretação livre e criativa de alguns dos escritos do autor, tendo como foco a sua inventividade e liberdade na construção dos seus versos.

A iniciativa de resgatar o ambiente bucólico, imaginativo e criativo devem ser colocados em relevo na obra, dos diálogos à trilha sonora, podemos observar uma representação cinematográfica que precisa ser melhor explorada e levada aos jovens e às escolas do ciclo básico – principalmente o Ensino Fundamental –, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, cada vez mais carente destes elementos.

A qualidade técnica da película impressiona, principalmente na direção de arte, fotografia, roteiro e direção, o que justifica sua participação ou escolha no Programa Curta Criança – Ministério da Cultura e TV Brasil, e galardões como o Prêmio de Menção Honrosa FAM no Festival Audiovisual do Mercosul 2010 Prêmio de Melhor Roteiro CineFantasy SP 2010, Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro\2010, além de apresentação em diferentes mostras de animação dentro e fora do Brasil.

 Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

Os deslimites da palavra,  O livro das ignorãças

3
A língua das coisas, 2010.

O enredo gira em torno da história entre Lucas (Lucas Santana) e seu avô (Fernando Boher), que moram num sítio, distante dos grandes centros urbanos. E, dentre caminhadas e tardes de pescaria muitas estórias são contadas por aquele eremita pós-moderno, nas palavras do velho homem, dando voz à “língua da natureza”, expressa pelos peixes, árvores e rios.

O lirismo empregado pela produção contribui para enriquecer este nascedouro do verbo, de modo a dar tons ontológicos à obra que, mais uma vez, dialoga diretamente com os escritos de Manoel de Barros, aqui projetado (até mesmo emulado) na intepretação de Boher magistralmente.

“Olha essa palavra aqui
Outra lá do outro lado batendo na pedra. Tem palavra bonita, de amor de riso
Tem palavras que não vão a lugar nenhum, ficam encalhadas no caminho
E algumas não vão dar ideias boas. Essas eu deixo passar
Tem palavras que a gente carrega para a vida toda”
Avô

2
A língua das coisas, 2010.

Em certo ponto Lucas se enfada da vida simples e deseja aprender a “língua de gente”, vontade esta que é concretizada quando sua mãe (Julia Bonzi) vai buscá-lo da casa do avô. Em sua nova vida na cidade o garoto não consegue se adaptar, seja na escola, onde não entendem a língua ensinada pelo seu avô, e no dia-a-dia entre carros, prédios e todo concreto ofegantes da urbanidade.

Após um telegrama sua mãe o informa sobre o falecimento do avô, e na volta para o sítio, tentando encontra-lo de todas as formas, seja no rio ou nas árvores, Lucas percebe que as palavras da natureza permanecem vivas, em belas cenas com os verbetes pendurados como frutos, ou sendo arrastados pela correnteza onde costumavam pescar, um simbolismo e apuro estético pouco visto, até mesmo filmes de grande orçamento.

Por fim, o lirismo interpretativo do roteiro e direção faz a diferença, deixando clara a mensagem da vida das palavras para as coisas que representam, são imaginadas e proferidas. Tanto as palavras como seu avô permaneciam vivas e pulsantes de significados.

“Não é por me gavar
Mas eu não tenho esplendor
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente pra fulgor
Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário
O que presta não tem confirmação,
o que não presta, tem.
Não serei mais um pobre diabo eu sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.”
Manoel de Barros, Livro sobre Nada

 

 REFERÊNCIAS:

A LÍNGUA DAS COISAS. Roteiro e Direção, Alan Minas. Caraminhola Filmes. Brasil, 2010. 14 min.

BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. São Paulo, Record, 1996.

BARROS, Manoel. O livro das ignorãças. Projeto Biblioteca nas Nuvens – UFBB. Disponível em: < > Acesso. 05.01.2016.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

4

A LÍNGUA DAS COISAS

Diretor: Alan Minas
Elenco: Amir Ghazi, Fernando Bohrer, Julia Bonzi, Lucas Santana;
Ano: 2010
País: Brasil
Classificação: Livre

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A solidão coletiva em “O Homem das Multidões”

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O personagem do conto tem uma força interessante, uma estranheza que me agrada, um tipo de solidão que é justamente o contrário: a necessidade de estar no meio de muita gente. É uma solidão no múltiplo, não apenas no estar só.
Cao Guimarães

O filme O Homem das Multidões, lançado em 2013, possui inspiração no conto homônimo de Edgar Allan Poe. Em linhas gerais há um argumento simples, intrigante e inquietante: a solidão de um homem frente ao seu mundo. No entanto, este estado de ostracismo é mais relativo que absoluto, já que reside no mesmo um grau particular de relacionamento com a sociedade. Há uma admiração, interação, e degustação da multidão, complementando o modo de ser deste indivíduo na coletividade. Poe elenca alguns destes aspectos em seu conto, e muitos destas características são explorados no filme:

Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. “Este velho”, disse comigo, por fim, “é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que ‘es lässt sich nich lesn’ (POE, 1990, p.189-190).

Percebe-se que o importante é ressaltar o cotidiano, suas sutilezas e trivialidades, a insignificância de grandes acontecimentos contrapondo-se a significância dos pequenos detalhes. Outras obras que trabalham com esta problemática são O Idiota da Família de Jean-Paul Sartre, O Espelho de Machado de Assis, o Homem Duplicado de José Saramago. Este sui generis da rotina, presente em o Homem das Multidões e suas fontes de inspiração, é que recebe o protagonismo, mais que os próprios personagens das estórias:

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias (POE, 1990, p. 164).

Esta imersão solitária na coletividade do urbano, das grandes metrópoles contemporâneas foi trabalhada também no conceito francês de flâneur – o “perambulador” urbano. Este indivíduo é uma variação interpretativa do andarilho de O Homem das Multidões. Charles Baudelaire discutiu profundamente sobre este indivíduo, que degusta, circula, percorre e perscruta a multidão, sem necessariamente interagir completamente com ela:

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flanêur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem que a linguagem não pode definir  senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda a parte o fato de estar incógnito (BAUDELAIRE, 1995, p. 857).

Os próprios diretores de O Homem das Multidões (2013) Cao Guimarães e Marcelo Gomes, se lançaram sobre o tema da solidão coletiva moderna, em dois filmes anteriores: A alma do osso (2004) e Andarilho (2007). Esta sequência de filmes expõe um ciclo de experimentações, ou melhor, a reificação da mesma estória em busca do seu aperfeiçoamento, seja por seu desenvolvimento, personagens ou ambientação.

Outro grande estudioso da vida urbana na Modernidade Georg Simmel, salienta que para este ser em solidão, estar desta maneira é atingir seu estado de liberdade. A metrópole provoca o surgimento destas inflexões individuais, os ostracistas urbanos, que se fecha em seu mundo, como uma autopreservação. O autor ressalta que esta acepção já é conhecida, principalmente pelos habitantes das cidades menores, pela “frieza” e distanciamento dos metropolitanos, e em O Homem das Multidões, esta composição é exalada em cada minuto da projeção.

Na medida em que o individuo submetido a esta forma de existência tem de chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo, sua autopreservação em face da cidade grande exige dele um comportamento de natureza social não menos negativo. Essa atitude mental dos metropolitanos um para com o outro, podemos chamar, a partir de um ponto de vista formal, de reserva. Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece. quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a urn estado psíquico inimaginável (SIMMEL, 1973).

Em parte esse fato psicol6gico, em parte o direito a desconfiar que os homens tern em face dos elementos superficiais da vida metropolitana, tornam necessária nossa reserva. Como resultado dessa reserva, frequentemente nem sequer conhecemos de vista aqueles que foram nossos vizinhos durante anos. E e esta reserva que, aos olhos da gente da cidade pequena, nos faz parecer frios e desalmados (SIMMEL, 1973).

Até o momento o longa-metragem foi galardoado com prêmio de melhor filme do Festival de Cinema Latino-Americano de Toulouse, Melhor Direção Première Brasil do Festival do Rio, Prêmio Especial do Júri e Melhor Fotografia do Festival de Guadalajara, indicações ao Urso de Ouro do Festival de Berlim, dentre outros. Estes prêmios vêm ao encontro de grandes filmes nacionais (ou com atores e atrizes brasileiros) que estão arrebatando destaque internacional nos últimos anos, como Elena (2012), Praia do Futuro (2014) e O Lobo Atrás da Porta (2013).

A multidão em suas individualidades

Em O Homem das Multidões acompanhamos o cotidiano de Juvenal (Paulo André), um maquinista que vive sozinho em seu apartamento e com uma rotina regrada a perambular por entre as pessoas de uma grande cidade. Podemos observar a inexistência de uma parceira, amigos ou familiares, ao mesmo tempo em que este isolamento não representa um estado de tristeza ou depressão, mas um olhar vago, fala calma e pausada e uma postura introspectiva e absorta na maior parte do tempo.

Apesar do título do filme remontar a figura do personagem nos cartazes e demais divulgações, ao longo das cenas percebemos que há uma “dupla” de solitários, formada por Margô (Silvia Lourenço) e o personagem que encabeça a narrativa, Juvenal (Paulo André). Ambos se comportam como eremitas urbanos, cada qual a seu modo de ser e interação com o mundo. Enquanto um age como legítimo tecnofóbico, do outro lado a solidão também se exala, mas pela tecnofilia de Margô.

Este é o paradoxo entre a solidão e ser solitário presente em O Homem das Multidões. Em outros termos, é possível diferenciar estes dois conceitos, e o filme expõe tal distinção por suas imagens e parcos diálogos. Juvenal (e Margô) vive e desfruta de um estado de solidão coletiva, que a onipresença urbana ajuda a fortalecer. Esta é a argumentação utilizada pelo direto Cao Guimarães sobre sua obra:

Na cidade, você precisa construir elementos narrativos que gerem a sensação de solidão, e isso é algo muito perigoso, pois quisemos evitar que o Juvenal parecesse uma pessoa patológica. Queríamos alguém comum, tímido, introspectivo. […] Ela entra com a questão contemporânea do virtual, de uma solidão diferente, numa relação com as pessoas completamente efêmera de quem se envolve com os outros apenas pelo computador (Cao Guimarães).

A ligação dos sozinhos, sua empatia e dialogia também são enriquecidas nos momentos em que Juvenal e Margô contracenam. E sobre esta relação entre estar sozinho, a solidão e ser solitário, o próprio ator de Juvenal (Paulo André), reflete sobre esta postura do personagem que interpreta, ressaltando que por não possuir um rosto conhecido do grande público acabou por encontrar maior facilidade nas tomadas públicas e coletivas ao longo do filme:

É um personagem paradoxal. Um solitário que gosta e sente prazer de estar junto a uma multidão, no meio de pessoas que não conhece, sem ser notado. Um solitário que se exaspera, se angustia quando está só. Uma pessoa que não tem nenhum traquejo social. Ao menor sinal de interação, de interlocução, ele se esquiva. Um tipo estranho e ao mesmo tempo ordinário, comum. Sem “cores fortes” na composição. É capaz de ficar horas no caos de um centro urbano sem ser percebido (Paulo André).

E, nesta angústia e inquietude metropolitana, Juvenal possui três interações claras ao longo filme: consigo próprio, os mais sugestivos e importantes para a estrutura e desenvolvimento da projeção; com a urbanidade, pois somente em contato e interação com ela que o conceito e a vivência da solidão coletiva toma corpo e se configura como tal, inclusive, como alegoria para nossa época e sociedade; e, por fim, com Margô em “diálogos não verbais”, já que nela o personagem encontra seu duplo, alguém que, de alguma maneira, reflita parte de sua personalidade em sua condição social de individualidade solitária.

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A temática da solidão coletiva, principalmente em ambientes urbanos, é tratada em obras de grande e pequeno alcance, em curtas e longas metragens, em diferentes formas de representação artística, e com variados enredos de desenvolvimento reflexivo, estético e artístico, algumas obras que apresentam tais características são: A casa em cubinhos (2008), Le Cyclope de La Mer (1999), O Céu no Andar de Baixo (2011), Preciosa (2009), O Cheiro do Ralo (2007), A Outra Terra (2011), Asas do Desejo (1987), I’m here (2010), Amantes Eternos (2013), The Lunchbox (2013), Era uma vez eu, Verônica (2012), O Homem Duplicado (2013), Edifício Master (2002).

Em todos estes filmes de linguagem cinemática similar ou paralela à O Homem das Multidões. Multidões, cenários marítimos, texturas pasteis ou monocromáticas, bandas sonoras depressivas e minimalistas e personagens com grande grau de inquietude do eu consigo, propondo grandes reflexões da condição humana, não necessariamente em sua solidão, na contemporaneidade.

A ideia central deste projeto é a solidão do homem contemporâneo, cidadão de uma grande metrópole no Brasil: Belo Horizonte. Resolvemos compor nossos personagens relacionando-os de forma obstinada com esta espécie de alteridade compacta presente nas grandes cidades: a multidão. No mundo contemporâneo podemos pensar em duas formas de multidões. A multidão real, verificável na realidade das ruas, nos aglomerados de pessoas na urbe; e a multidão virtual, intermediada por uma tela (de computadores, celulares e outros aparatos eletrônicos) que redefine toda a sensorialidade presente em nosso estar no mundo. A partir de dois personagens (Juvenal e Margô), arquétipos de uma sociedade industrial e moderna, queremos refletir sobre o processo de isolamento do indivíduo e da massificação das estruturas sociais. As relações perdem a naturalidade do olhar, do falar, do ouvir, ou seja, de tudo o que nos faz estabelecer contato com o outro. Nossos personagens são a incorporação radical desta sensação (Cao Guimarães e Marcelo Gomes).

Alguns toques da direção, figurino, cenografia, movimentos de câmera e técnicas de filmagem dão o tom das obras, como, por exemplo: ambos os personagens de foco (o protagonista e sua coadjuvante) possuem fugas sexuais para sua solidão, a trilha sonora residual, a polifonia idiomática presente em alguns momentos (francês, inglês, chinês, etc. o simbolismo da Babel contemporânea), o ruído urbano permanente, as cenas de amostragem do cotidiano de Juvenal e Margô, dentre outras.

A multidão em sua unicidade

As cenas finais de O Homem das Multidões propõe uma trilha, senão em direção contrária à solidão coletiva de Juvenal e Margô, pelo menos como uma possibilidade de habitação para além deste estado no qual os dois estão. Cabe a cada espectador da obra embarcar nas reflexões existentes em seus elementos, seja no urbano, na socialidade (ou não) dos personagens e temática da solidão, os limites para este exercício se expandam a cada novo início de interpretação, assim como o cotidiano, os ruídos e a continuidade da vida de cada pessoa em sua individualidade e coletividade.

Espera-se que esta obra consiga adquirir a visibilidade de público correspondente a sua já aclamação pela crítica, já que o cenário brasileiro de cinema nacional e de dominância estrangeira – a harmonia é desejada, e não a limitação de uma ou outra forma de produção, de pequena ou grande escala, na sétima arte –, acaba por limitar a entrada de filmes como o de Cao Guimarães e Marcelo Gomes num alcance maior de apreciação nos cinemas.

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio,
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar
.”

Copo Vazio, Chico Buarque

REFERÊNCIAS: 

O HOMEM DAS MULTIDÕES. Direção e Roteiro (Cao Guimarães e Marcelo Gomes).  Cinco em Ponto e REC Produtores Associados. 2013. 95 min.

BAUDELAIRE, Charles. “O pintor da vida moderna”. In: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. 3. ed. São Paulo: Globo, 1999.]

SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. Trad. Sérgio Marques dos Reis. In: VELHO, Otávio Guilherme. O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O HOMEM DAS MULTIDÕES

Diretores: Cao Guimarães e Marcelo Gomes
Elenco: Sílvia Lourenço, Jean-Claude Bernardet, Paulo André;
País: Brasil
Ano: 2012
Classificação: 14

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Trumbo: a indústria cinematográfica desconstruída

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Com uma indicação ao OSCAR:

 Ator (Bryan Cranston) 

Banner Série - Oscar 2016

“The blacklist was a time of evil”

 

O homem e o personagem

Dirigido por Jay Roach, com script de John McNamara, com elenco formado por nomes consagrados como Bryan CranstonDiane LaneHelen Mirren, além de nomes de apoio proeminentes: John Goodman, Louis C.K à  Elle Fanning. Trumbo (traduzido no Brasil com o adendo Lista Negra) está fazendo muito sucesso em meio à crítica especializada desde seu lançamento em 2015, conseguindo indicações em prêmios como SAG Awards (prêmio do sindicato dos atores),  Globo de Ouro, Oscar, e muitos outros.

3

O filme nos traz um roteiro adaptando uma fase da vida do roteirista Dalton Trumbo – por vezes chamado de Caso Trumbo­ –, um dos mais notáveis de sua geração, escrevendo ou colaborando em obras consagradas do cinema como Roman Holiday (1953), The Brave One (1956), Exodus (1960), Spartacus (1960) e Papillon (1973). Filiado ao Partido Comunista dos Estados Unidos, ele e mais dez roteiristas também comunistas ou simpáticos as ideias do partido são convocados a depor junto à Suprema Corte dos EUA, ficando conhecidos como membros do Blacklist de Hollywood (a lista negra) após serem denunciados por pessoas envolvidas com a indústria cinematográfica americana como o ator John Wayne e a crítica e ex-atriz Hedda Hopper.

Trumbo sofreu consequências mais pesadas que seus aliados, ficando preso por desacato e falta de cooperação às investigações do governo americano. Por conta desta perseguição, muitos de seus filmes foram lançados sem os créditos originais de roteirização, com pseudônimos ou com nomes “de aluguel”, muitos deles arrebatando prêmios (inclusive estatuetas do Oscar), igualmente não creditados ao autor original. A partir destes eventos, Trumbo desenvolve e nos apresenta sua trama, em seus 124 minutos de duração. Em síntese a obra é quase uma alegoria d’O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, fazendo a indústria do cinema olhar para seu reflexo autodestrutivo.

Título

1 

Por se tratar de uma biografia Trumbo conta com o apoio da atuação segura de Bryan Cranston, consagrado por sua intepretação na série Breaking Bad. O ator nos transmite o peso de uma mente genial e criativa, ao mesmo tempo em que por conta de suas escolhas de pensamento, precisa enfrentar todo o mundo que o cercava. E, de igual modo não santifica ou deixa sua adaptação cair em uma versão monodimensional da pessoal que está encarnando, um erro comum neste tipo de filme.

É interessante notar, dentro desse contexto de estilo de obra, que os filmes biográficos, assim como os reboots, estão sendo utilizado como uma via ara a falta (ou crise) de criatividade do Hollywood nos últimos anos, exemplos desta tendência pode ser visto em vários projetos: Uma Mente Brilhante (2001), Coco antes de Chanel (2009), Jobs (2013), Um sonho possível (2009), O Discurso do Rei (2010) e O Jogo da Imitação (2014).

Nesta imersão na vida do personagem título, os ritos de produção de Dalton Trumbo foram muito bem representados no filme, seu gosto em trabalhar numa banheira; a acurácia e ceticismo em analisar o mercado, a indústria cinematográfica, a crítica e público, levando em consideração tais elementos na composição de suas estórias; sua dedicação para com a família, incentivando-os a ter liberdade de pensamento, assim como fez diante de seu julgamento por conspiração, etc.

Para o roteirista não haveria nem deveria existir limites para o labor criativo dos enredos dos filmes, algo sempre visto com mal olhos por produtores e estúdios: “Dalton Trumbo: What the imagination can’t conjure, reality delivers with a shrug.” . Ao fazer esta escolha pela liberdade em seu pensar e modo de trabalhar acompanhamos também o sofrimento da família Trumbo, principalmente pelas interpretações eficientes de Daiane Lane (Cleo Trumbo) e Elle Fanning (Nikola Trumbo).

No período em que esteve rotulado como comunista, e mais precisamente nos seus anos de prisão, Trumbo perdeu um sem números de trabalhos, prestígio e parceiros de ofício, precisando se desfazer de sua casa e contar com a ajuda de amigos e entrando em conflito com seu núcleo familiar. Lane nos passa esta preocupação e aflição, ao ver sua vida ser destruída pela perseguição do governo:

Cleo Trumbo: You have no idea what you could lose.

Dalton Trumbo: Oh, please. My career and the first amendment and the country, am I missing anything?

Cleo Trumbo: Us! You’re losing us! Since prison, you don’t talk or ask. You just snap, bark. I keep waiting for you to start pounding the dinner table with a gavel.

Dalton Trumbo: So in addition to being a pariah out in the world, I also have the supreme joy of battling insurrection in my own home. Cl: Battling insurrection?!

Dalton Trumbo: When these 10 fingers literally clothe and feed and shelter us.

Cleo Trumbo: This isn’t just happening to you. We all hurt.

A situação só começaria a mudar com sua escolha em trabalhar anonimamente, conseguindo assim não apenas retomar sua rotina de escritor como também ajudando seus companheiros de motim contra a indústria cinematográfica – momentos estes mais chocantes e corajosos da projeção. Os próprios amigos temiam as represálias do governo, de modo a enfraquecer o movimento inicial contra as investigações, durante o filme na figura Alan Hird (Louis C. Clark) vemos como a relação até mesmo com seus apoiadores se deteriora: “Alan Hird: You talk like a radical, but you live like a rich guy”.

2

 Trumbo é um daqueles filmes feitos na medida certa para as premiações, possui um grande elenco, direção de arte rica e detalhista, roteiro bem estruturado e grandes atuações. No entanto, o longa metragem não está alheio a problemas de escolha em sua produção, em especial dois aspectos: a trilha sonora poderia explorar melhor a riqueza musical do período em que ocorrem os fatos da obra, entre as décadas de 50 e 60, a tentativa de construir uma imersão diegética se mostra deslocada e arrastada, sendo o silêncio melhor aproveitado que a sonoridade; e também em alguns momentos aparentemente faltou mais determinação, ou permissão dos estúdios, para que o filme mostrasse mais do lado obscuro da Guerra Fria nos EUA e as políticas de perseguição do país, assim como ocorreu com a Lista Negra dos cinemas, assim como as alternativas de mercado restantes aos roteiristas, que mesmo marginalizados continuaram a fornecer trabalhos aos estúdios.

Hollywood no divã

Muitas questões postas em discussão em Trumbo são tão atuais com a reinvenção e reificação constante e inevitável no cinema. Um bom exemplo é o papel dos críticos, que nem sempre se pautam em um olhar aberto e analítico, misturando inclinações passionais, muitas vezes formando opiniões sobre grandes obras.

Outro ponto colocado de forma visceral diz respeito à própria produção de roteiros, se a prefixação “indústria” do cinema pode trazer um lado nefasto para si, pois esta característica reside na busca frenética por histórias de baixa ou questionável qualidade para abastecer o ritmo em série da sétima arte, pelo viés dos produtores e realizadores cinematográficos. Dalton Trumbo viveu e contestou estes dois fenômenos, e, felizmente, o filme que o retrata expôs estas situações em sua cinebiografia de maneira sutil e profunda.


3

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Cena do filme comparada a imagem real do julgamento

Em um ano no qual a Academia passa por uma das suas maiores crises de legitimidade, em meio à falta de diversidade em suas maiores premiações, é interessante observarmos que sua condição de estar próxima de si polêmicas não é dos dias atuais. Após décadas de uma política de manter suas regras engessadas a academia teve rever suas regras, tendo em vista escolhas no mínimo questionáveis como as indicações de Jennifer Lawrence por Joy e Matt Damon por The Martian – assim como em grotescas escolhas já ocorridas em premiações de melhor filme e atriz para Shakespeare Apaixonado (1998) e Conduzindo Miss Daisy (1989) ultrapassando Faça a Coisa Certa (1989) de Spike Lee –, apenas comprovam esta situação, deixando de lado obras e atores claramente esnobados (Beasts of the no Nation, Steve Jobs, O Clã, Os Oito Odiados, A Travessia) por avaliadores que possuem sua análise pautada em um mundo datado, de décadas atrás.

E precisamos lembramos que não podemos julgar o Oscar por si, nem qualquer outro galardão, mas o que está por trás da premiação, que é a indústria do cinema (ocidental diga-se), e o filme Trumbo é uma grata surpresa, por expor isto. A história não é um capricho ou exagero, pois caso fosse não teríamos a reentrega dos óscares de melhor roteiro pra Dalton Trumbo, décadas depois dos eventos da Lista Negra.

Aos mais conservadores ou que optam por não lutar por suas convicções, a história de enfretamento de Dalton Trumbo surge como um caminho a ser visto, pensado e motivado, pois sem se opor à uma forma hegemônica e dominante não haverá mudanças: We can win! I wanna win to change”

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Os roteiros marcados pela lista negra, Trumbo está à esquerda.

REFÊRENCIAS:

TRUMBO. Direção de Jay Roach. Roteiro de John McNamara. ShivHans Pictures. Estados Unidos. 124min. 2015.

RAPOLD, N. ‘Trumbo’ Recalls the Hunters and the Hunted of Hollywood. The New York Times, 2015. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2015/11/08/movies/trumbo-recalls-the-hunters-and-the-hunted-of-hollywood.html?_r=0>. Acesso em: 05 de fev. de 2015.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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TRUMBO: LISTA NEGRA

Direção: Jay Roach
Elenco: Bryan Cranston, Helen Mirren, Diane Lane, Elle Fanning;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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O Menino e o Mundo: a distopia em suas possibilidades

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Com uma indicação ao Oscar:

Animação

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Com direção e roteiro de Alê Abreu, em O menino e o mundo acompanhamos a história de um menino a espera da volta do seu pai, que rumou para a cidade grande em busca de novas oportunidades. Neste interlúdio, toda uma viagem é apresentada, com desafios, um mundo imaginário e fantástico, além de questões envolvendo sentimentos, sensações e decisões.

Nos últimos tempos cineastas brasileiros, ou profissionais com formação e atuação correlatas, assumiram a frente em interessantes trabalhos de curta duração e animações. Obras importantes podem ser mencionadas como detentoras deste legado, com premiações e indicações em diferentes premiações ao redor do mundo: Uma história de amor e fúria (2013), O céu no andar de baixo (2010), Céu, Inferno e outras parte do corpo (2011), Garoto Cósmico (2007), Cassiopeia (1996), O Grilo Feliz (2001), e muitos outros trabalhos, que circulam por longas e curtas-metragens de animação, tradicionais ou imagens alternativas.

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O lançamento d’O menino e o mundo foi no mínimo curiosa. Sua produção remonta ao ano de 2010, e após um longo percurso para arrecadação de fundos, angariação técnica, aproximação de colaboradores, etc. o filme foi lançado em prévias em 2013e internacionalmente nos anos de 2014 e 2015. Por esta razão faz parte dos indicados ao Oscar e outros prêmios para o gênero animação na temporada de 2016. Até o momento a obra foi reconhecida, como vencedora ou indicada, em ocasiões como Annie Awards, Oscar, Festival de Annecy, Grande Prêmio Brasileiro de Cinema, Grande Prêmio de Monstra em Lisboa etc.

Escrevi um primeiro argumento muito livremente, costurando idéias soltas: Cuca levado pelo vento, o encontro do menino com um velho, a partida do pai, mistério numa fábrica abandonada etc. Mas sempre incorporadas ao pano de fundo, que era a situação apresentada em Canto Latino, e buscando encontrar ali uma linha que os unisse numa história. […]Fazia anotações, esboços em um caderno de rascunho e depois transformava estas idéias em pequenos trechos de história, que eram incorporados ao bloco do filme. Ao mesmo tempo experimentava sons e trechos de músicas como referência e já brincava com a própria montagem (ABREU, 2011, s\n).

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Como já é costumeiro, o sucesso internacional corroborou para o olhar da crítica se voltar para o longa. Assistido por menos de 40 mil espectadores no Brasil, na França este número ultrapassou a marca dos 100 mil em poucas semanas., conseguindo grande bilheteria em países como Canadá, Japão e outros mercados fora do eixo americano e oeste europeu.

No caso d’O menino e o mundo não há, felizmente, todo o velamento da realidade opressiva e angustiante da metrópole aos viventes dos aglomerados urbanos, principalmente com concentração de baixa renda e diversos problemas citadinos. Temos uma distopia diante de nós, mas o seu reverso também está lá, pelas cores, imagens e representações que denotam esta dialética. Esta postura de negação da realidade, pelos reforços estereotípicos do Brasil, ocorreu recentemente por outra animação, nos constrangedores filmes Rio, que em certo ponto escalaram tantos arquétipos tortuosos do país que fica difícil defendê-lo além destes lugares comuns.

Neste ponto há outro destaque para a obra de Abreu, que é o traço, o apuro das gravuras, os movimentos, os sons, tudo está orquestrado de modo a apresenta rum caminho para a imersão do espectador na obra. Há uma delicadeza e sutileza nos desenhos, nos planos imagéticos, incrementos sonoros e todo o envolvimento da narrativa com seus personagens e cenas, tornando a experiência de assistir o filme algo único e inesquecível.

Inspirações em grandes mestres da animação e desenhistas de Hayao Miyazaki, Katsuhiro Otomo, Satoshi Kon a Charles Schulz e Mauricio de Souza são perceptíveis na obra de Abreu, fortalecendo-a como uma verdadeira obra-prima nacional, justamente por lidar com um cenário, público e mercado que não estão acostumados com sua linguagem e profundidade.

E cabe aqui uma menção aberta ao cinema nacional brasileiro. Não é de hoje que as fórmulas de grande potencial publicitário caminham distantes da qualidade, em prol da quantidade. O ponto fora da curva fica por conta do já distante duo Tropa de Elite (2007; 2010), comandados por Wagner Moura e o diretor José Padilha, as demais obras de grande caibre financeiro em investimentos e distribuição sequer são dignas de nota.

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 A fuga da realidade

Há algum tempo o cinema independente do Brasil vem fazendo investidas em temáticas sobre a existência nas grandes cidades. Solidão, solidariedade, angústia, desamores, o cotidiano urbano, dentre outros campos são explorados em obras de rico espectro reflexivo: O homem das multidões (2014), O Homem que Copiava (2003), Edifício Master (2002) e A Busca (2013), etc. Filmes que furaram uma bolha de extremos, entre os grandes lançamentos, americanos principalmente, e duvidosas obras nacionais sustentadas por interesses muito distantes da qualidade cinematográfica merecida pelo público e profissionais da sétima arte.

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Obras como O menino e o mundo mostram e provam, explícita e implicitamente, que o cinema brasileiro pode sim superar seus arquétipos e estereótipos: as favelizações, o nordeste (com um caricato e desrespeitoso regionalismo), o ufanismo edênico há muito servido como pano de fundo ideológico para a nação; as recentes e constrangedoras comédias sustentadas com leis de incentivo cultural dignas de repúdio em seus critérios de apoio e patrocínio, dentre outros.

Lembrando, os clichês existem em todas as linguagens da arte, e assim o são porque são devires da sociedade – a refletem, representam e reinventam pelos tempos e espaços –, é preciso revistá-los sempre, mas de forma original e construtiva, e não apenas como recurso fugidio para a falta de criatividade ou em busca de aceitação popular e retorno monetário.

É preciso valorizar a criatividade das animações brasileiras, que demonstraram, e o continuam fazendo, em várias ocasiões. Não seria exagero estabelecer nossos artistas em grandes escolas de animações já consagradas, como a japonesa, alemã e francesa, riqueza esta passível de constatação em cada novo projeto lançado, independente da plataforma, linguagem, escala popular ou alcance financeiro, se o pulso das novas fronteiras do cinema brasileiro pulsa com todo o seu vigor, um destes lugares reside nas animações como O menino e o mundo que  poderia ser muito mais do que já é, uma obra-prima da animação nacional. E mesmo que chegue a ganhar prêmios de maior escala como o Oscar, certamente ainda veremos anos de esquecimento e ostracismo para grandes obras, excelentes filmes, e inovadoras possibilidades, como é esta singular estória contada por Alê Abreu.

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REFERÊNCIAS:

O MENINO E O MUNDO. Roteiro e Direção de Alê Abreu. Filme de Papel e Espaço Filmes. 2015. 85 min.

ABREU, Alê. Textos do diretor [2011]. In: < http://omeninoeomundo.blogspot.com.br/> Acesso. 10.01.2016.

FILME DE PAPEL. O menino e o mundo. BLOG. 2014. Disponível em: <http://omeninoeomundo.blogspot.com.br/>. Acesso em: 01 de fev. de 2016.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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O MENINO E O MUNDO

Direção: Alê Abreu
Elenco: Alê Abreu, Lu Horta, Vinicius Garcia;
País: Brasil

Ano: 2015
Classificação: Livre

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Ex Machina: a senciência da criação

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Com duas indicações ao OSCAR:

 Roteiro Original e Efeitos Especiais. 

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If you’ve created a conscious machine, it’s not the history of man. That’s the history of gods.” (CALEB)

O ser humano foi agraciado com o mais poderoso intelecto que a natureza foi capaz de criar ao longo de bilhões de anos de evolução. A partir desta condicionalidade particular nos transformamos no universo tomando consciência de si, ou, ao menos tentando efetuar este movimento. Se se um advento racional de tal grandeza é plausível, acaba por ser inevitável que batamos na porta dos limites deste poderio, em meio às questões morais, tecnológicas, vitais e políticas. Este é o ponto inicial da discussão proposta, e atingida pelo excepcional filme Ex Machina de 2015, uma obra que irá arrebatar prêmios nesta temporada, como já sugere suas indicações pelo seu roteiro, atuações e efeitos visuais no Bafta, Globo de Ouro e Oscar.

ex machina 1

Com direção e roteiro de Alan Garland, a obra pode ser considerada um caldeirão de influência da própria sétima arte, como, THX 1138 (1971), Jurassic Park (1993), Animatrix (2003), Splice (2009), Her (2013), A Pele que Habito (2011) e Sob a pele (2013); e, além disso, o longa se embasa em uma mitologia clássica do Ocidente, que é a ascensão e queda de Prometeu entre deuses e homens, além de obras literárias consagradas como Frankenstein: ou o moderno Prometeu de Mary Shelley (1818), Eu, Robô de Isaac Asimov (1850) e o Caçador de Androides de Philip Dick (1968).

Ex Machina faz parte de uma vertente das ficções científicas que não se voltam para a ação desenfreada, optando por inserir em seu desenvolvimento debates de maior profundidade, normalmente com temas existenciais e reflexivos, recebendo a alcunha de ficção conceitual, justamente por esta opção de narrativa internalista.

A reificação do arquétipo de Frankenstein

franksteins

No sentido anti-horário Vera (A pele que habito, 2011), Dren (Splice – a nova espécie, 2009) e Maria/Androide (Metrópolis, 1927).

Sobre o protagonismo feminino de Ex Machina é interessante delegar algumas palavras à personagem de Alicia Vikander, Ava, devido sua importância e impacto em todo enredo do filme. O trabalho da atriz é primoroso, por meio da tonalidade da voz, trejeitos, olhares e posturas, há uma interferência direta na imersão da obra. Pela interpretação de Vikander podemos apreciar toda a potência da reificação do arquétipo de Frankenstein (e de Prometeu) ao longo de todo o filme, até o momento da rejeição sensciente de sua condição como criatura positrônica em seu arrebol.

E a mulher nesta simbologia criatura/criador ainda pode ser vista em filmes como A Experiência (1995), o Quinto Elemento (1997) e Alien: A Ressureição (1997). Em todos estes filmes a figura da mulher é fortalecida como aporte para o arquétipo prometeico. Em outras palavras, a partir da figura feminina, há este questionamento sobre a objetfiicação da mulher (ser humano em geral), sua transformação em instrumento do progresso e a falta de criticidade do desenvolvimento científico e racionalidade humana.

Há ainda uma sutil crítica feminista, principalmente pela inserção do plot twist de Kyoko (Sonoya Mizuno) a certa altura do filme. E, tal criticismo está ganhando força ano a ano ultimamente, procurando mostrar a maneira como personagens femininas podem e são estereotipadas em obras fílmicas, principalmente as de grande alcance de público, como os blockbusters. Outros exemplos deste questionamento do papel da mulher na sétima arte são Alien: O Oitavo Passageiro (1979), Mad Max: Estrada da Fúria (2015), Sob a Pele (2013) e antes destes Kill Bill I e II (2003-2004).

E, propositalmente, pela tríade de protagonistas, o filme não passa pelo teste de Bechdel, que causa certa claustrofobia testosterônica em certos momentos, mas que, ao mesmo tempo, fortalece a subida, desenvolvimento e rumos que as representantes do gênero escolhido para os protótipos tem no terceiro ato de Ex Machina.

Outras referências vigentes no filme vão dos códigos de interpretação linguística de Ludwig Wittgenstein, ao realismo destrutivo da tecnologia e ciência por Robert Opperheimer – em citação direta sobre o deus da morte em razão do engodo da bomba atômica –, o ponto inicial da trama pelo teste de Turing, e a já clichê inserção da consciência no autômato por meio de uma carga dramática em gradações escalares da consciência deste novo ser, argumento este em que outras tentativas recentes como Robocop (2014), Automata (2014) e Chappie (2015) falham miseravelmente, na esteira do sucesso de Ex Machina.

 A trindade

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 Nathan, Ava e Caleb

Todo o desenvolvimento narrativo de Ex Machina gira em torno de seus personagens principais, formado por Alicia Vikander, Domhnall Gleeson e Oscar Isaac, que interpretam, respectivamente, Ava, Caleb e Nathan. A interação dos personagens uns com os outros dá o tom do filme, as imbricações dos seus diálogos, as “sessões” de Ava para com seu criador e visitante, enfim, toda a riqueza da obra, sua espessura dialógica. Deste modo, não soa estranho a carga de sentido que parte dos protagonistas do longa carregam em suas representações, desde o figurino, expressões corporais e faciais, até a escolha de seus nomes, conforme observado a seguir:

Ava: o significado do nome é o mais explícito, trazendo a referência do jardim do Éden consigo. Além disso, a fala pausada, calma, inocente, curiosa e questionadora ajuda a criar uma empatia com os apreciadores da obra. Além disso, apesar de a virada do fechamento do filme ser plantado paulatinamente, e até certo ponto, ser esperado a qualquer momento, quando o mesmo decai sua cortina, Ava não faz com que transpareça um julgamento maniqueísta sobre suas decisões. De certa forma, apesar da corrupção moral – que pela linguagem da estória seria sua condição de tornar-se uma de nós –, sua integridade parece permanecer em grande medida até a última tomada de câmera da obra.

Nathan: O nome de Nathan, em sua etimologia representa o possuidor de uma dádiva divina, um dom, e neste caso, ele acaba por se configurar como o Deus Ex Machina, que ao corromper este deus em mimetizá-lo como criador, paga com sua vida por esta ação e decisão pecaminosa. Outros simbolismos do personagem são: sua propriedade selvagem, local da criação o paraíso, apelo físico, inquisitorial e imponente. E apesar de seu laboratório manter-se externamente em um estado de manutenção edênica, não deixa de ser curioso a questão de quase um Hades grego como ambiente de criação de seus experimentos, novamente, na correlação helênica e do Dr. de Shelley.

Caleb: Pela mitologia cristã, aquele enviado para espionar Canaã, retornar para seus iguais após tal empreitada. No filme o personagem de Gleeson possui um ar angelical e frágil fisicamente, ao contrário do seu contratante ególatra. Além desta característica, Caleb carrega o arquétipo narrativo do fio de Ariadne nos apresentando os ambientes e demais personagens durante a projeção. E no fim das contas, sua coragem se transforma num frágil simulacro de sua insegurança e ingenuidade, servindo como ventríloquo pelos demais protagonistas.

Como visto, nos nomes dos protagonistas o extrato de simbologias, significados e referências culturais é clara e inevitável. A tríade perpassa sua interação em 7 dias, nos quais e pelos quais todo o enredo irá se definir, do ambiente às falas, da direção de arte à direção, numa composição harmônica do próprio filme como criação singular.

O arbítrio entre o orgânico e o positrônico

ava ex machina
Cena de Ava

Não há problema nos clichês, eles existem porque seu funcionamento atingiu tal grau de sucesso que chegaram a se repetir até atingir tal alcunha. No entanto, é possível utilizá-los reincidentemente: o monomito, o ciclo de superação do eremita, os círculos dramáticos e tragicômicos shakespearianos os exercícios de quebra da quarta parede, ou seja, as estruturas de enredo possuem bases de desenvolvimento precursoras, e assim continuará por muitos anos. No final o que importa é maneira como as bases de influência e inspirações são revisitadas, e neste caso, o cinema é talvez a melhor plataforma para este feito.

Dito isto, o nascimento de um clássico se dá, na maior parte das vezes, pela arte e proeza de se contar a mesma história com rara felicidade de independência criativa. No caso de Ex Machina este é justamente o fenômeno ocorrido durante os minutos que degustamos seus diálogos, padrões estilísticos e releituras míticas, morais, racionais e tecnológicas. Não é de surpreender que em pouco tempo seu lugar no panteão destas obras singulares estará garantido, tornando-se a si próprio um novo foco de diversificação e reprodução criativa para outras iniciativas da sétima arte. E, a pergunta ao final de Ex Machina é: o quão humana, moral e conscientemente, Ava saiu de seu ambiente de criação?

FICHA TÉCNICA DO FILME:

banner filme ex machina

EX MACHINA: INSTINTO ARTIFICIAL

Direção: Alex Garland
Elenco: Alicia Vikander, Oscar Isaac, Domhnall Gleeson, Sonoya Mizuno;
País: Reino Unido
Ano: 2015
Classificação: 14

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Lost in Translation: a lateralidade inefável

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Desencontros encontrados

O modelo escolhido para a feitura da análise de Lost in Translation (2003) se pautará na narrativa e desenvolvimento do enredo e direção de Sofia Coppola, mas, sempre que possível, buscando dialogar, evidenciar ou confrontar os movimentos, imagens e situações com seu longa-metragem “irmão”, se assim nos permitirmos interpretar: Her do diretor e roteirista Spike Jonze, lançado em 2013, exatamente dez anos após Lost in Tranlation.

Essa latelaridade entre as obras se explica pelo contexto maior no qual as duas se encontram, especificamente o relacionamento, e o fim deste, entre os realizadores dos dois filmes à época do lançamento da história contada a partir do ponto de vista de Sofia Coppola. Por outro lado, o roteiro de Her, segundo Jonze, se iniciou há pelo menos uma década, ou seja, no mesmo período de lançamento do longa de Sofia. E uma análise mais detida da versão da história contada pelo prisma do diretor pode ser visto na resenha Her: A incompletude palatável, aqui no portal do (En)Cena.

Por coincidência ou não ambos os filmes, separados por uma década de lançamento, conseguiram alcançar o clamor da crítica e a apreciação do público, com rotulagem cult em meio às superproduções vigentes em nossa época. Coppola ganhou com esta obra o Oscar de melhor roteiro original, o BAFTA de melhor ator e atriz, para Murray e Johansson, César de melhor filme estrangeiro, Globos de Ouro, Urso de Ouro, dentre muitos outros prêmios em festivais pelo mundo.

A opção por desenvolver as histórias em comédias dramáticas se relaciona com o tema abordado, sobre pessoas que estão em encruzilhadas de questionamento sobre suas vidas, amores passados, decisões do presente, e um labirinto de inquietudes sobre as escolhas do seu cotidiano, no momento em que se passam os filmes. O foco e objetivo do presente texto será reler o filme de 2003, de modo a visualizar suas mensagens e representações, encontrando tanto neste como em seu sucessor as faces de uma totalidade mais complexa, profunda e rica em interpretações por parte dos que experienciam as obras.

Quem é Charlote (Bob Harris)?

A personagem de Charlote, interpretada por Scarlett Johansson é dual, do ponto de vista de uma transposição feita por Coppola sobre si mesma, pois as angústias e sofrimentos da jovem se complementam e completam em dialogia com Bob (Bill Murray), ao ponto de emergir entre ambos uma afinidade imediata. Lost in Translation pode ser classificado como um daqueles filmes em que não necessariamente há um protagonista e outro coadjuvante. A jovem recém-casada e indecisa sobre as recentes decisões que tomou, e o homem de meia idade, cansado do mundo e pessoas que o cercam, forma uma dupla com igual peso na trama do filme.

De pontos de vista diversos, tanto a jovem formada em filosofia como o velho ator hollywoodiano, não conseguem traduzir-se para o mundo, daí estarem perdidos em meio a este processo. Esta condição e situação, provavelmente vivenciadas por Coppola nos meses de desenvolvimento da obra, foram, em grande medida, transferidos em porções de personalidade, falas e atos para Charlote e Bob.

As capas de distribuição do filme corroboraram para atestar, que, o protagonismo do longa é compartilhado por ambos personagens principais. Charlote e Bob aparecem cada qual a seu modo, em representações do eremita urbano, rodeado de pessoas, concreto e máquinas, mas sem estabelecer um ponto de contato e diálogo com outros ao seu redor.

Capas do filme Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

O ambiente estrangeiro japonês se destaca na linguagem cenográfica do filme, pois ajuda a dar a tonalidade de solidão e de desencontro dos personagens centrais. Aliado a isso, há as passagens instrumentais ou com músicas ambiente, provocando imersões imagéticas profundas, assim como os diálogos (ou silêncios) em diversos momentos da projeção, tentando, talvez, de algum modo traduzir os personagens para os que assistem suas jornadas.

A sequência introspectiva e melancólica ao som de Alone in Kyoto da banda Air, contrasta com a noite cyberpunk nipônica, com suas luzes, neons e multidões. Neste caso o ponto de sublevação vai para a banda sonora escolhido por Coppola, que sabe incrementar a cena com este recurso, a depender do seu desenvolvimento para os personagens envolvidos e o olhar do espectador. No tocante a Bob, este prefere mais o ato de apreciar aqueles breves momentos de solidão em seu quarto de hotel, que, aparentemente propiciam uma fuga efêmera de sua vida do outro lado do mundo. Em vários pontos a câmera faz justamente este movimento de close mostrando os dividindo a tela juntos, reforçando sua ligação.

Nestas passagens em que, de algum modo, o personagem é forçado a relembrar da brevidade de sua passagem por aqueles dias de paz, seu olhar perdido, trejeitos cansados e inabilidade social parecem emanar com força ainda maior.

Bob em cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Charlote em cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Esta escolha narrativa, do eremita urbano, é vista em outras obras fílmicas como O Homem das multidões (2012), Taxi Driver (1976), A outra Terra (2011), Solaris (1972), Asas do Desejo (1987), A Liberdade é Azul (1993), Na natureza selvagem (2007) e Mary e Max (2009). A temática da solidão coletiva, da multidão inócua, ou das opressões das selvas de cimento contemporâneas é recorrente nestes filmes, e quanto mais se chega à nossa época, maior é a quantidade de representações desta alegoria.


Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Apesar da proximidade entre Charlote e Bob, a relação entre eles em nenhum momento é sexualizada, apesar de ambos revelarem seus dilemas nos relacionamentos que se encontram, um recente e distante, e outro de longa data, mas inócuo e protocolar. Esta escolha ajuda a dar a cada um deles apresentações diferentes do estado de espírito que emana da dialogia encontrada entre nas suas representações, ambas na formação do alter ego da diretora do filme.

A Lateralidade Inefável

Há ao menos duas dialogias possíveis entre Her de 2013 e Lost in Translation de 2003. A primeira delas é a extensão das imagens e mensagens dos filmes com o mundo real, neste caso o relacionamento, e seu fim, entre Sofia Coppola e Spike Jonze. A outra, de maneira menos sutil com aspecto mais subterrâneo, está nas sobreposições das rimas imagéticas e narrativas entre as obras dos diretores, de modo a reforçar a ideia de que ambos, mesmo que não intencionalmente, transportaram para suas obras as dores e angústias deste fim pelos olhares de Charlote (Bob) e Theodore.

O ambiente, a direção de arte, os sons urbanos, os laços de amizade, a reclusão social dos protagonistas, a melancolia narrativa das estórias, e, logicamente, o laço que um dia uniu ambos elaboradores das duas obras apenas justificam, mesmo que indiretamente, a ligação que uma possui com a outra. A originalidade de cada filme se mantém perante si próprio e as demais produções de seu tempo, mas, por mais que se individualizem como longas-metragens terão sempre que conviver com a lateralidade dos contos que nos apresentam em suas imagens.


Cena do filme Her
Fonte: Her (2013)


Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

A inefabilidade do outro se encontra presente nas (in)quietudes dos protagonistas, em seu estado de espírito, parcas palavras, olhares distantes, melancolia cotidiana e desencontro consigo mesmo. Não há vislumbre catártico para ambos, apenas o lamento de algo que se perdeu em meio a um caminho não mais trilhado, e, por isso mesmo, a fragilidade sentimental contribui para o distanciamento social, o ostracismo e a falta de conectividade com outros indivíduos.


Cena filme Her
Fonte: Her (2013)

 Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Mas a solidão não deve ser tomada apenas como aporte do sofrimento. Muitas vezes estar solitário é diferente de estar sozinho. No segundo caso é falta total de relacionamento, fraterno ou amoroso com outrem, enquanto que no primeiro pode ser um intermezzo de elucubração, auto-aprendizado e crescimento interior, necessário para o prosseguimento da caminhada vital neste mundo.

Este parece ser o ponto de passagem no qual as duas obras voltam a comunicar-se uma com a outra. Não é outro relacionamento que seus protagonistas estão à procura, muito menos a constituição de uma recordação dos momentos vividos anteriormente. As figuras que os acompanham na jornada, seja Samantha ou Bob Harris, exalam os outros lados do interior da personalidade de Theodore e Charlote, e por esta razão no escape de uma possibilidade de algo maior entre estes e os protagonistas serem rapidamente anulado pela degringolar da narrativa, focada no estudo de personagem em primeiro lugar.


Cena filme Her
Fonte: Her (2013)


Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Ressonâncias da incompletude palatável


Theodore e Charlote
Fonte: Her (2013); Lost in Translation (2003)

É difícil afirmar se foi intencional a inserção Scarlett Johansson como o IOS Samantha em Her por Spike Jonze, de modo a conectar ainda mais o filme de Coppola ao seu olhar do final do relacionamento, dez anos depois. De qualquer maneira, poucas vezes se viu um dueto fílmico trocar tantas semioses como é o caso das estórias de Charlote/Bob e Theodore/Samantha. A cada novo olhar para um ou outro ponto de vista do que um dia pode ter sido uma linha história a dois entre os criadores destes personagens, aumenta a complexidade umbilical entre suas propostas de interpretação e representação por meio de seus longas-metragens.

No tocante à obra de Coppola, o encontro com o outro (na mágoa ou falhas deixadas por Jonze) não se realizou da maneira projetada na expectativa, de ambos talvez, mas, abre uma importante reflexão de (re) encontro com seu eu, para um novo recomeço noutros tempos e espaços, agora não mais perdidos e sim traduzidos e compreendidos. A cena final entre Bob e Charlote – semelhante à cena final entre Theodore e Amy, em Her –, no seu encontro, desta vez não sem desencontros, para a despedida é a melhor marca para esta reflexão. No fundo, sua complementação acaba por sugerir que, ao menos naqueles poucos dias, encontraram cada qual a seu modo, algumas das respostas que inquietavam suas angústias existenciais.

Bob e Charlote
Fonte: Lost in Translation (2003)

“More Than This, I could feel at the time
There was no way of knowing, Fallen leaves in the night
Who can say where they’re blowing, As free as the wind
Hopefully learning, Why the sea on the tide
Has no way of turning, More than this you know there’s nothing
More than this tell me one thing, More than this ooh there is nothing”

More Than This, Roxy Music

REFERÊNCIAS:

LOST IN TRANSLATION. Direção e Roteiro de Sofia Coppola. 2003. American Zoetrope Tohokushinsha Film. 101min.

HER. Direção e Roteiro: Spike Jonze. 2013. Warner Bros Pictures. 126min.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

ENCONTROS E DESENCONTROS

Diretor: Sofia Coppola
Elenco: Scarlett Johansson, Bill Murray, Anna Faris, Giovanni Ribisi
Ano: 2003
País: EUA
Classificação: 14

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