Harry Potter e a Câmara Secreta: a transformação do herói

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O filme Harry Potter e a Câmara Secreta inicia com o garoto de férias novamente na casa dos desagradáveis tios. O bullying sofrido pelo herói agora se intensifica e a sua raiva e indignação também. Conforme Kawai (2007), quando um ser humano quer se tornar independente e quebrar a identificação com os outros, ele precisa se conscientizar dos defeitos deles.

Isso é comum na puberdade, onde os jovens passam a ter sentimentos hostis em relação aos pais – alguns chegam ate a pensar que não são filhos de seus pais. Essa fantasia permeia Potter e ele cada vez mais se afasta de sua família consangüínea e retira as projeções do arquétipo paterno e materno dos pais pessoais. Um dia um elfo doméstico, Dobby, vai ao encontro de Potter na casa dos tios para alertá-lo a não voltar a Hogwarts, pois ocorrerão coisas terríveis com ele se ele voltar para lá. Mas com a ajuda dos Weaslay, o garoto foge dos tios e chega a Hogwarts.

Novos personagens se apresentam na saga: Gilderoy Lockhart, famoso bruxo escritor e galã, que não perde uma oportunidade de fazer marketing pessoal e Lúcio Malfoy, pai de Draco, que era um dos seguidores mais fiéis de Voldemort.

Em Hogwarts os jovens Potter, Hermione e Rony vão se deparar com o problema da aceitação e do bullying, pois Hermione é chamada de “sangue ruim”, por não ser filha de bruxos, mas de trouxas. Nos grupos de jovens e crianças o bullying ocorre contra aquele que não se enquadra nos papeis do grupo, ou seja, com aquele que é diferente.

Sabemos que nos contos de fadas o herói mostra um ego arquetípico que está em harmonia com a totalidade da psique e que segue a jornada rumo à individuação. Pois bem, Harry no primeiro filme da série rejeita a proposta de Draco para se inserir em um grupo, mostrando que está no caminho da individuação e que não pode se identificar com o rebanho, correndo o risco de ter sua individualidade engolida.

Hermione também não segue o padrão da sociedade, ela é uma trouxa que quer se tornar bruxa. Ela segue os anseios de sua alma, e sabe muito bem que nasceu para ser bruxa, pois é uma das melhores de Hogwarts.

Sobre essa perseguição Von Franz (2010) diz:

“Em seu estado nascente, a realização do Self torna pessoa inadaptada e difícil para os seus, porque perturba a ordem instintiva inconsciente; Jung dizia que é como se um rebanho de carneiros percebesse que um dos seus membros deseja seguir seu próprio caminho.”

Potter se alia a Hermione e a defende, pois compreende esse sentimento de inadequação. Quando entramos nesse processo acabamos nos sentindo um estranho no ninho e um sentimento de solidão nos invade. Instintivamente iremos nos aliar àqueles que também estão nesse movimento de desidentificação com o grupo.

Além disso, é importante colocarmos aqui algumas observações que não foram comentadas no texto anterior. Os contos de fadas tratam de figuras arquetípicas presentes no inconsciente coletivo, por essa razão cada conto mostra aspectos coletivos, como forma de compensação da atitude unilateral da consciência. A escola Hogwarts pode ser interpretada como o inconsciente com seus arquétipos, especificamente o arquétipo do bruxo, ou mago.

O Mago, assim como o bruxo, é aquele que executa truques por meio da magia. Ele está sempre pronto a iludir e enganar com esses truques. Ele também é sedutor, pois afinal quem não gostaria de ter magia para poder tornar a vida mais fácil? Assim como Hermes – o Deus das revelações – ele pode nos pregar peças ou nos trazer soluções miraculosas para situações difíceis.

O Mago pode iniciar o processo de autocompreensão, que Jung denominava individuação, e guiar nossa viagem pelo mundo inferior dos nossos eus mais profundos (Nichols, 2007). Ele mostra milagrosa realidade do nosso mundo interior como os nossos dons e potenciais criativos. Ele então representa um poder que transcende o ego, ou seja, o poder do inconsciente. O ego humano sempre compreendeu esse poder e lhe proporcionou a ele a manifestação por meio de ritos mágicos.

Em termos coletivos, os contos de fadas se assemelham aos sonhos individuais, uma vez que possuem a função de compensar, confirmar, curar, contrabalançar e até criticar a atitude coletiva (Von Franz, 1984).
Harry Potter com sua magia compensa a atitude inconsciente do homem ocidental que deixou de acreditar no poder do inconsciente.

Em meus atendimentos psicoterápicos vejo as pessoas ficarem encantadas e embasbacadas com o poder mágico do inconsciente. Ao observarem seus sonhos e ao segurem as diretrizes do inconsciente, essas pessoas percebem verdadeiras mágicas acontecendo em seu dia a dia. Mas também existe o perigo da magia. Von Franz (1984) pontua que a alquimia, por longo tendeu para o aspecto mágico, tendendo assim para a inconsciência. Dessa forma o uso de rituais “mágicos” é uma forma de inconsciência, pois projetamos uma transformação interna desejada em objetos exteriores. A verdadeira magia ocorre, então, quando esse esforço transformador deve ser voltado para o interior.

Portanto, o quando o ego quer transformar algo em sua realidade ou algo dentro de si, precisa da ajuda do Self, pois ele tem capacidades mágicas e não o ego. A crítica da serie Harry Potter então está nessa falta de relação com o Self do ego do homem ocidental (trouxa), que tende a acreditar que pode resolver problemas de forma mágica, apenas com o seu próprio esforço.

Harry, Hermione e Rony descobrem então o segredo da Câmara Secreta. Uma lenda diz que um dos quatro Fundadores de Hogwarts, Salazar Sonseria queria que apenas estudantes “sangue puro” de famílias inteiramente de bruxos eram dignos de estudar magia, porém incapaz de persuadir seus três colegas a mesma opinião ele deixou Hogwarts, a lenda diz que antes de sair ele construiu uma Câmara Secreta escondida no castelo, que funcionaria como o lar de um Monstro, e que um dia o legítimo herdeiro de Sonserina voltaria à escola e abriria a câmara, libertando o monstro que mataria os alunos trouxas.

E é o que ocorre. A Câmara é aberta e alunos trouxas começam a serem petrificados, entre eles Hermione. Aqui então vemos novamente o problema da aceitação. Potter é sangue puro, contudo, ele compreende que a vocação é um caminho não determinado pelas convenções sociais e pela família. A nossa vocação é uma determinação do Self e nos leva ao caminho da individuação.

O grande conflito de Potter nesse filme é o de possivelmente ser o herdeiro de Sonserina. Pois ele consegue falar com cobras, sendo esse um dom raríssimo para bruxos e Salazar Sonserina também possuía esse dom. O herói novamente terá de enfrentar os poderes sombrios do inconsciente.

A cobra, assim como a serpente, é um animal consagrado as deusas ctonicas. Representa o renascimento, a renovação, o mistério, a sexualidade e a morte. O fato de a cobra pertencer as mães terríveis na Mitologia simboliza que Potter terá de enfrentar os aspectos regressivos da psique, ou seja, o seu desejo instintivo pela infância perdia. Harry está deixando a infância, entrando na puberdade e se anuncia um encontro com o feminino, com a anima.

Ele então descobre que Voldemort é o herdeiro de Sonserina e que seu nome era Tom Marvolo Riddle, que controlou Gina Weasley, por meio de seu diário obrigando-a a libertar o basilico, uma cobra gigante que mata todo aquele que a olha diretamente. Potter então mata o monstro e liberta Gina que está morrendo.

Em a Câmara Secreta então há uma mudança significativa no herói. Potter agora se transforma no típico herói de contos de fadas, que mata o monstro e salva a donzela, com quem futuramente ira se casar.O fato de Gina ser controlada por Voldemort mostra que em um primeiro acesso ao inconsciente os componentes da psique não são tão claros e podem se misturar. É comum em contos de fadas, a princesa ser presa e controlada por um demônio e o herói ter que redimi-la. Isso significa que a anima, o lado feminino no homem se encontra contaminada por elementos sombrios e precisa ser resgatada para que ocorra a diferenciação desse componente psíquico.

Novamente Potter, como herói, restabelece a condição saudável da psique, salvando a escola e os amigos. No entanto sua jornada está apenas começando e cada vez mais ele amadurece em rumo a individuação.

FICHA TÉCNICA

HARRY POTTER E A CÂMARA SECRETA

Precedido por: Harry Potter e a Pedra Filosofal
Seguido por: Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban
Adaptação: Harry Potter e a Câmara Secreta (2002)
Ano: 1998

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Harry Potter e a Pedra Filosofal: a jornada do herói

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Harry Potter é uma saga de grande sucesso escrita por J. K. Rowling e adaptada as telas de cinema em 2001. A historia trata de um garoto órfão de pai e mãe, prestes a completar 11 anos e que vive com os tios desagradáveis. Até descobrir que na verdade ele é um bruxo e que esta sendo convocado a ingressar a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, onde seus pais, também bruxos, estudaram.

Ele também descobre que seus pais foram assassinados por um bruxo das trevas Voldemort e que ele miraculosamente sobreviveu ao ataque, ficando apenas com uma cicatriz em formato de raio em sua testa e assim se transformando em uma celebridade.

Gif: Harry Potter
Gif: Harry Potter

Iniciando a análise vemos que Potter é o herói da saga. E como herói ele representa um ego arquetípico, que está em harmonia com a totalidade da psique. O herói é aquele que está em consonância com as determinações do Self e nos contos de fadas é aquele que vem restabelecer uma atitude saudável da consciência coletiva (Von Franz, 2005).

Nos contos e mitos o herói costuma nascer de forma prodigiosa. Ele pode nascer falando, andando ou realizando alguma proeza. Além disso, ele pode ter um nascimento miraculoso (nascer de uma virgem, a mãe ser fecundada por um ser mágico, ou os pais serem estéreis), ou possuir uma marca ou defeito de nascença que o distingue dos outros.

Gif: Harry Potter 2
Gif: Harry Potter 2

E vemos essa marca em Potter. Apesar da marca não ser natural, mas produzida pelo confronto com o mal, observamos que o garoto terá um destino incomum, especial. Esse nascimento miraculoso e especial dos heróis costuma representar uma necessidade intrínseca do ser humano pelo milagre, ou seja, pelo numinoso, por aquilo que nos tira da dura realidade da vida e nos transporta para algo que transcende ao ego e que dá sentido a essa dura caminhada.

Com o herói aprendemos que seguindo o caminho que o Self nos determina e seguindo nossos instintos e ouvindo a voz do inconsciente podemos transmutar as dificuldades e assim os milagres começam a acontecer em nossas vidas. O fato de ser produzida pelas forças do mal mostra que Potter é marcado por seus aspectos sombrios. Que os enfrentou e saiu ileso. E esse é o grande feito do nosso herói.

Ao encararmos nossos aspectos sombrios desenvolvemos uma espécie de faro e de vacina contra o mal. Deixamos de ser presas fáceis de influencias malévolas. Conforme Von Franz (1984), quando uma pessoa conhece todas as possibilidades do mal contidas em si mesma, desenvolve uma espécie de segunda visão, ou seja, a capacidade de farejar a mesma coisa nos outros.

Potter de certa forma é semelhante a Voldemort – ele inclusive usa a mesma varinha mágica que seu antagonista – e, mesmo a despeito de Voldemort tentar destruir o garoto, isso o torna invulnerável a ele, tornando-o o único capaz de enfrentar essa força. Harry também mostra que a criança desamparada geralmente cria a fantasia de que alguém chegará e a tirará do mundo de miséria – financeira ou emocional – em que vive. E, de certa forma, todas fazem isso. Elas fantasiam que vivem um conto de fadas, pois o ego infantil ainda não tem estrutura para encarar a realidade como ela é.

Então a criança vive esse mundo mágico imaginando que é um herói salvador para que o ego de desenvolva e que possa seguir um modelo arquetípico quando partir em sua jornada ao mundo, uma vez que o herói nos contos e mitos representa esse ego arquetípico que se encontra em harmonia com a totalidade psíquica. É uma pena que, quando adultos, percamos essa conexão com os mitos e contos e passemos a encarar como atividades infantis.

Os pais de Potter estão mortos e são substituídos por pais postiços desagradáveis. É muito comum nas crianças, por volta da idade de 11 anos, imaginarem que não são filhos de seus pais, mas de figuras importantes, de reis e rainhas, heróis e heroínas. Nessa época a criança passa a enxergar os pais como seres humanos e seus defeitos começam a saltar aos olhos. Ocorre a retirada da projeção das imagens parentais.

Conforme Carl Jung (2008), quando ocorre o despertar da consciência começa a ocorrer concomitantemente uma separação da consciência do ego da criança de sua mãe pessoal, com a qual vivia em estado de participação exclusiva e identificação inconsciente. Assim todas as qualidades fabulosas e misteriosas da imagem arquetípica desprendem-se da imagem materna. E quanto mais o arquétipo se afasta da consciência, mais clara esta se torna e o primeiro assume uma forma mitológica cada vez mais nítida.

E é isso que ocorre com Potter, seu consciente se afasta da inconsciência e assim a imagem da Mãe se transforma em uma bruxa do bem, que se sacrificou por ele, como um ser divino. E essa imagem passa a ser projetada na escola Hogwarts, a escola que o recebe e acolhe. O arquétipo então subiu de categoria.
Temos exemplos em contos de fadas de heroínas sendo feitas de empregadas pelas madrastas ou bruxas, como, por exemplo, Cinderela. No entanto não é comum vermos um herói masculino sendo subjugado dessa maneira.

A heroína geralmente deve suportar o sofrimento até que algo miraculoso aconteça e ela pode agir, enquanto que o herói parte para a ação matando dragões e monstros. Isso mostra uma mudança de paradigma necessário para a sociedade ocidental que se baseia na ação extrovertida. Potter suportando os desaforos dos tios e do primo e esperando até que miraculosamente ele saia da situação mostra que às vezes o ato heróico é justamente suportar a situação pacientemente até que ela se resolva por si mesma.

Os tios tentam sem sucesso impedir que Potter receba a carta de Hogwarts e descubra seu destino especial. Isso representa a tendência da consciência a tentar impedir a mudança. Nós sempre tentamos impedir e questionamos as mudanças que surgem do inconsciente, pois queremos permanecer naquilo que é conhecido, mesmo que não seja mais adequado a nós e seja destrutivo.

Mas é impossível conter o fluxo do inconsciente e ele sempre acaba encontrando um meio de se manifestar. E isto esta simbolizado na enxurrada de cartas na casa dos Dursley. Outro aspecto importante e que não pode ser ignorado é o fato dos bruxos chamarem as pessoas normais de trouxas. Isso remete a ideia de normose. Ser muito normal e adequado ao que a sociedade prega e aos costumes sem consciência é nocivo ao desenvolvimento da personalidade.

Gif: Harry Potter 3
Gif: Harry Potter 3

Os bruxos alcançaram uma autonomia e não seguem os ditames da sociedade. Eles são o que são e transgrediram as leis da família de origem e sociedade, dessa forma é natural que vejam os seres comuns com desdém. Potter então segue para sua nova vida em Hogwarts e lá é recebido como celebridade, causando admiração de uns e inveja de outros. Lá ele faz dois amigos Hermione e Rony, que serão seus leais aliados em sua jornada iniciática.

Deixar a casa dos pais e seguir para uma nova vida e encontrar amigos e novos interesses é a primeira fase da iniciação dos jovens para a vida adulta. Os contos de fadas mostram de forma bastante evidente a simbologia da iniciação, onde os heróis precisam passar por provas para provarem o seu valor e merecimento para atingir um objetivo e mudar de fase de vida.

Primeiramente ele rejeita a proposta de Draco para se inserir em um grupo. Isso mostra que Harry quer seguir o caminho da individuação e buscar quem ele é, sem estar inserido em um grupo que lhe dita as regras de comportamento. Quando nos diluímos no coletivo perdemos a nossa individualidade.

Potter inicia então seus ritos de iniciação. Ele precisa provar seu valor no quadribol primeiramente para provar a si mesmo o seu valor e que está a altura do desafio. Ele também precisa enfrentar o espelho que mostra seus desejos mais profundos. Ao olhar para o espelho ele vê seus pais perdidos e anseia por te-los novamente. Isso mostra que para alcançarmos a autonomia precisamos lutar contra desejos regressivos, o anseio pelo paraíso perdido da casa parental.

Potter não pode mais voltar, regredir, ele deve aceitar a morte simbólica desse paraíso para que possa progredir em sua jornada. Em seguida, juntamente com os amigos salva a pedra filosofal das mãos de Voldemort. A pedra filosofal era o ideal dos alquimistas na Idade Média. Ela teria o poder de transformar qualquer metal em ouro e assim produzir o elixir da imortalidade. Ela é a meta da Opus Alquímica.

Carl Jung se debruçou sobre o estudo da alquimia e percebeu que se tratava de uma projeção de conteúdos psíquicos e que essa meta é a individuação e os processos alquímicos da matéria são simbólicos. Processos esses pelos quais a alma deve passar para se purificar e chegar a meta de se tornar si mesmo. O ouro, material incorruptível é um símbolo do Self e daquilo que em nós é nobre e incorruptível. O centro do nosso ser, nossa verdadeira essência.

A pedra filosofal é o maior desejo de Voldemort, uma vez que ela poderá traze-lo de volta a vida e mantê-lo eternamente jovem. Essa sede pela pedra mostra algo comum em nossa sociedade: o de querer a juventude eterna a custa de muito sofrimento psíquico. Não aceitamos o envelhecimento e conseqüentemente a morte.

O que Voldemort não compreende é que essa juventude é a da alma. Encontrar a meta de nossa vida e nos relacionarmos com o inconsciente traz a renovação para a alma, um novo alento nos enche de esperança. Isso se manifesta de forma clara no fato de Potter ser uma criança ainda. A criança é símbolo de juventude, do vir a ser e de renovação. Ela também é um símbolo do Self.

Concluindo, nossa sociedade precisa aceitar que a renovação e a fonte da juventude é interna e da alma. Ela é, portanto, simbólica. Ao fixar apenas no aspecto físico da juventude e literalizá-la nos transformamos em Voldemort e nos tornamos verdadeiros vampiros que sugam a energia e mortos-vivos. Com medo da velhice e da morte, passamos a viver uma vida pela metade e nos tornamos parasitas de outros.

Portanto Potter é um alento para a consciência tanto individual como coletiva, pois ele mostra que a meta é interna e que deve trazer a ética ao individuo. Mesmo quando Potter e os amigos burlam as leis eles fazem de forma a seguir uma ética interna. Ou seja, de seguir esse desejo imperioso do Self. Em uma sociedade pautada no individualismo, que visa apenas o externo, os ganhos e a juventude eterna Harry Potter vem e nos mostra o caminho contrário: o da ética, da firmeza, da cooperação e solidariedade.

FICHA TÉCNICA

HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL

Direção: Chris Columbus
Série de filmes: Harry Potter
Música composta por: John Williams
Duração: 2h 39m
Ano: 2001

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“A Noiva Cadáver” e o amor na psicologia analítica

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A Noiva Cadáver é uma animação de 2005 produzida por Tim Burton. A historia do filme é baseada em uma lenda russo-judaico do século XIX e é ambientada em uma fictícia Inglaterra da era vitoriana. A animação se inicia mostrando o jovem Victor Van Dort filho de novos ricos comerciantes de peixe, destinado a casar-se com Victoria Everglot, filha de aristocratas falidos, em uma pequena aldeia inglesa.

A ideia de um casamento arranjado angustia a ambos. Victoria se preocupa com o fato do noivo não vir a gostar dela. Instintivamente eles sabem que o amor é uma escolha pessoal e não um arranjo dos pais para se projetarem socialmente. E é em torno do tema do amor e união que o filme se baseia.

O amor para a psicologia analítica é um grande impulsionador do processo de individuação. Por meio dele há o encontro com o outro, que nos transporta para uma dimensão mais profunda de nós mesmos. Por essa razão o amor é pessoal, pois nos impulsiona a nos conhecermos e a sairmos de casa em busca da autonomia.

Mas Victor e Victória se apaixonam e desejam realmente se casar. Mas como na vida real o amor causa medo, por se tratar de uma força transcendente, maior que o ego humano e assim Victor se amedronta e arruína o ensaio de casamento, o que o leva a ir tentar repetir os votos, sozinho, na floresta. E assim ele repete incansavelmente os votos sem sucesso. No entanto, no momento em que alcança a perfeição, finaliza colocando a aliança no que parece ser um velho galho em forma de mão, mas que na verdade é o braço esquelético de noiva cadáver.

A noiva então toma forma e sai do mundo dos mortos. Convencida que Victor lhe acabara de pedir em casamento, leva-o para o mundo dos mortos, onde este lhe tenta escapar, sem sucesso. Podemos observar na animação a presença da influencia de aspectos de dois contos de fadas. O primeiro que podemos observar é a lenda da Mulher esqueleto, que conta a historia de uma jovem morta por seu pai que é trazida a vida por um pescador.

Essa lenda foi analisada por Clarissa Pinkola Éstes no livro Mulheres que Correm com os lobos, e lá a autora enfatiza a importância da morte no relacionamento amoroso. Com ela, aprendemos quando um ciclo deve ou não morrer dentro do relacionamento.

A mulher, assim como a anima (componente feminino na psique do homem), diferentemente do masculino, está a serviço da vida. A anima liga o homem à vida. Nos contos onde existe a figura daanima, esta raramente aparece sob um aspecto inteiramente mortal; pois ela é, acima de tudo, o arquétipo da vida para o homem (Von Franz, 2005).

Von Franz (2002) também aponta que uma anima no aspecto negativo provoca no homem uma espécie de apatia, um medo a doenças, à impotência ou a acidentes. A vida adquire um aspecto tristonho e opressivo. Este clima psicológico sombrio pode, mesmo, levar um homem ao suicídio, e a anima torna-se então o demônio da morte.

Esse aspecto é trazido por uma relação negativa com a mãe, uma vez que o caráter dma a anima, em geral é determinado pela relação do homem com a mãe. Se o homem sente que a mãe teve sobre ele uma influência negativa, sua anima vai expressar-se, muitas vezes, de maneira irritada, depressiva, incerta, insegura e susceptível (Von Franz, 2002).

Na animação observamos que Victor carrega esse aspecto depressivo, inseguro e melancólico e que a relação com o aspecto negativo com a anima – em forma de morte -transforma sua personalidade, deixando-o mais seguro para um casamento e a formação de uma família. Victor passa por uma espécie de rito de iniciação, onde encara a morte de frente para  que sua infantilidade morra e assim se transforme em homem responsável.

Outro aspecto que essa mulher-morte nos apresenta é o medo aterrorizante que o ato de apaixonar-se causa. Ao se apaixonar por Victoria o terror tomou conta de Victor. O amor tem mesmo esse caráter monstruoso. No mito de Eros e Psique, o deus do Amor é tido como um monstro e Psique ao se casar com ele é levada por seu pai, como se fosse entregue a morte. Esse sentimento de terror e cegueira da paixão, Éstes (1994) descreve de forma intensa, na lenda da Mulher esqueleto:

“Ele não se dá conta de estar trazendo à superfície a criatura mais apavorante que jamais conheceu, de estar trazendo mais do que ele tem condição de manejar. Ele não sabe que terá de se entender com a criatura, que está a ponto de ter todos os seus poderes testados. E o que é pior, ele não sabe que não sabe. É esse o estado de todos os apaixonados no início: são todos cegos como morcegos.”

Éstes (1994) também aponta que a natureza da morte tem o estranho hábito de surgir nos casos de amor exatamente no instante em que temos a sensação de ter conquistado alguém, exatamente quando sentimos que fisgamos “um peixe grande”.

Isso ocorre, porque o amor é uma força transcendente, que abarca e engole o ego. Eros, o amor, é um forte agente da operação alquímica solutio (Erdinger, XX) e o ego nesse processo pode sentir como estivesse afogando e prestes a morrer, diluído no mar de sentimentos e afetos. Pois bem, Victor está no mundo dos mortos tentando escapar quando ficamos sabendo da historia da Noiva Cadáver, que se chama Emily. A moça se apaixonou e foi noiva de um jovem chamado Lorde Barkis, um estranho que enriqueceu após matar Emily, ficando então com o seu patrimônio.

Victor também descobre que Victoria irá se casar com Barkis forçada pelos pais, que acreditam que ele seja rico. No entanto, ele gastou o dinheiro de Emily e intenciona fazer o mesmo com Victoria. Vemos aqui referências a outro conto famoso: O Barba Azul. Diz a lenda que as freiras guardavam a barba no convento e que essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado, um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul.

Barba Azul é um homem rico e sedutor que matava suas esposas e guardava seus corpos em um quarto, até que um dia uma jovem recém casada com ele descobre seu segredo. Conforme Éstes (1994) Barba Azul nos dá a idéia exata do que fazer a respeito de um ferimento que não pára de sangrar, pois a chave do quarto dos corpos não parava de sangrar. Lorde Barkis é análogo ao Barba Azul. No conto não se tem o motivo da matança, mas na animação Barkis é movido pelo dinheiro, ou seja, pelo poder.

Na Psicologia Analítica, o animus (personificação masculina do inconsciente na mulher), apresenta, assim como a anima no homem, aspectos positivos e negativos. No seu aspecto negativo ele se aproxima do arquétipo da morte, ou do assassino, sendo O Barba Azul, um representante desse aspecto sombrio do animus.

Von Franz (2002) diz sobre essa manifestação:

“Sob esta forma, o animus personifica todas as reflexões semiconscientes, frias e destruidoras que invadem uma mulher durante as horas da madrugada, especialmente quando ela deixou de realizar alguma obrigação ditada pelos seus sentimentos. É então que ela se põe a pensar nas heranças de família e outros problemas do mesmo tipo — tecendo uma espécie de rede de pensamentos calculistas, de malícia e intriga, que a leva até mesmo a desejar a morte de outras pessoas.

É importante notar, e a animação mostra isso de forma bastante clara, que as figuras de anima eanimus são ativadas no momento da paixão. Esses aspectos negativos, sombrios e destrutivos vêm a tona, pois precisam ser compreendidos, integrados e diferenciados. Por essa razão o amor e a paixão causam tanto medo.

O pavor é causado pela não compreensão e pela inconsciência. Muitos fogem e se eximem de viverem essa experiência, fogem de medo, pois a sombra da morte está se aproximando. Mas essa é uma morte simbólica. A morte de aspectos do ego ainda infantilizados e presos em figuras parentais. Victoria, assim como Victor, cai presa na armadilha do animus negativo, ao se apaixonar. Ela precisará encará-lo, pois foi criada com pouco calor afetivo, pouco Eros, pouco sentimento. Sua mãe é uma mulher poderosa, rica e dominada pelo poder.

Os contos de fadas, que abordam o aspecto do animus, mostram que a mulher precisa cair presa dele para que possa desenvolver uma feminilidade mais profunda, um senso de valor a respeito dos seus sentimentos para conseguir “bancar” a escolha do parceiro. Victor, então ao saber do casamento de Victoria, decide se casar com Emily, abdicando assim da própria vida.

Ao decidir casar com a Noiva Cadáver, Victor desenvolve por ela sentimentos, como a compaixão. A história da Noiva Cadáver, assim como a da Mulher-esqueleto é uma dentre muitas histórias universais de “teste do pretendente”. Observamos esse teste em outros contos em que o belo assume a aparência de feio e monstruoso com o objetivo de pôr à prova a personalidade de alguém. Exemplo disso é A Bela e a Fera.

Éstes (1994) diz que em uma história desse tipo, os amantes precisam provar sua boa intenção e seu poder, demonstrando geralmente que têm os cojones ou ovários para encarar alguma força numinosa mais poderosa e assustadora, que transcende o ego humano. Victor fugiu dela, mas agora cogita se entregar a ela. Ela toca o coração dele e desperta o mundo dos sentimentos nele. Ele se enche de coragem, encara seus medos e passa no teste. Ele (e Victoria também) passa a entender que existe beleza no compromisso, e que o amor também é permeado pela realidade do dia a dia e que não é apenas romance.

Emily é então o símbolo de cura para o casal. Ao aceitar o sacrifício e a presença dela, Victor ganha a vida e é liberado do seu sacrifício. Aceitar a morte nos traz a vida. Ele então se torna o herói, salvando Victoria e dando a Emily a paz de espírito que tanto buscava. A vingança almejada.

Victor e Victoria podem se unir de forma mais amadurecida, ambos foram tocados pela morte, suas personalidades amadureceram, eles se afirmam diante dos pais, bancando o amor que sentem um pelo outro. Não precisam mais seguir convenções da sociedade e da família, dando assim,um grande passo rumo a individuação.

FICHA TÉCNICA

A NOIVA CADÁVER

Título Original (EUA): Corpse Bride
Direção: Tim Burton, Mike Johnson
Música composta por: Danny Elfman
Roteiro: John August, Caroline Thompson, Pamela Pettler
Ano: 2005

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O feminino e o Masculino em: A Bela e a Fera

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O filme A Bela e a Fera de 2014, é uma produção franco-alemã adaptada do conto de fadas A Bela e a Fera de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, a Dama de Velleneuve. O conto de fadas original trata da redenção do amado de sua forma animal por meio do amor. No filme esse tema central se mantém, mas ocorreram algumas modificações na estória.

O filme se passa na França de 1810, onde um rico comerciante perde seus navios em um naufrágio. Ele é um viúvo e tem seis filhos: três homens e três mulheres, sendo a heroína Bela a mais nova de todos e a mais generosa, graciosa e humilde. Devido a essa catástrofe precisam se mudar para o campo e ficar longe da cidade, e assim o padrão de vida da família cai vertiginosamente.

No conto original Bela também é a filha mais nova de um rico mercador, que perde a sua fortuna. No entanto, esse tinha apenas três filhas e não há filhos homens. Como no filme as filhas mais velhas gostavam de ostentar luxo, com lindos vestidos, contrastando com a irmã caçula. Esse aspecto da personalidade de Bela a torna a favorita do pai. No conto original e no filme a heroína não tem mãe e vive em um estado simbiótico com o pai.  Essa é uma questão importante que começo abordando no aspecto pessoal.

Von Franz (2010) aborda que quando a heroína não tem mãe, supõe-se um complexo paterno. O animus na mulher se desenvolve, no geral, pela experiência dela com o pai pessoal, e encarna o arquétipo inato do pai, e a experiência se torna o complexo de pai na mulher, o que ira moldar suas relações com os homens em sua vida e o funcionamento da sua masculinidade interior.

O pai é o primeiro ser masculino com o qual a futura mulher entra em contato. Ele é então o outro, o estranho, algo a ser vivenciado e preenchido pelo mundo de imagens do inconsciente latente. Por isso a tendência na mulher a idealizar o pai.

Além disso, no desenvolvimento da personalidade a criança vive naturalmente na unidade mãe-filho. Quando um pai urobórico quebra a unidade mãe-filha e a menina o aceita ela sai da unidade com a mãe e entra no laço pai-filha. Uma mulher então confinada nesse laço pai-filha precisa passar pela aceitação de um homem diferente do pai. Se ela não passar por esse processo e não entrar nessa nova condição ela continuará em um incesto psicológico entre pai e filha (KAWAI, 2007).

Esse homem que quebra esse incesto psicológico é visto então como um monstro, que separou a filha do papai amado. E esse é o tema central de A Bela e a Fera.  Bela o enxerga como monstro e a redenção desse amado é quando ela se transforma pelo amor a esse homem, e o passa a enxergar como um homem desejável.

Mulheres nessa condição de incesto psicológico com o pai só conseguem se relacionar com os homens em forma de camaradagem. Em uma relação erótica ela o repudiará e se esquivará e toda investida romântica de um homem. Um dia então o pai de Bela, recebe a notícia de que um dos seus navios foi encontrado, e por isso ele resolve partir para a cidade. As duas filhas mais velhas, esperançosas em enriquecer novamente, encomendam-lhe vestidos e futilidades, mas Bela, preocupada com o pai, pede apenas uma rosa.

É importante notar que no filme o pai de Bela possui navios. O barco, ou navio representa um receptáculo feminino, tanto que é comum entre os marinheiros colocar um nome feminino em seus barcos. O barco também se associa a Lua e as deusas lunares. Ele também facilita o comercio, a comunicação e a difusão cultural. Além disso, trata-se de uma invenção humana que permite flutuar sobre as águas, simbolizando uma qualidade uterina (VON FRANZ, 2011).

Apesar de ser uma construção humana, o barco carrega em si (assim como as outras invenções humanas), uma qualidade de revelação divina, sendo uma invenção que nasceu dos deuses. Psicologicamente o barco nos permite navegar as águas do inconsciente, nos protegendo contra o afogamento.

Nos contos de fadas, quando um arquétipo não está presente ou desaparece irá reaparecer em uma nova forma. No filme a mãe morta de Bela reaparece novamente. O barco encontrado é justamente o favorito da mãe. Podemos então supor que o fato desse barco não haver naufragado, mostra que a heroína tem a proteção para adentrar nas águas do inconsciente coletivo. Sem essa proteção ela pode afogar. Em termos coletivos, na sociedade ocidental, temos muitas mulheres com complexo paterno, ou materno negativo. Isso ocorreu devido a valorização dos aspectos masculinos na consciência coletiva, e a repressão do feminino que naufragou na repressão, voltando para o inconsciente coletivo.

O pai após uma viagem angustiante onde descobre que seu filho mais velho esta envolvido em atividades ilícitas com um grupo de mercenários e assassinos. Durante a volta para casa, sozinho e fugindo do grupo de bandidos, acaba se perdendo na floresta em meio a uma nevasca indo se abrigar em um suntuoso castelo. Ele então vê uma bela rosa e decide levar para a filha, porém é condenado à morte pelo proprietário do castelo, a Fera.

A rosa é uma flor comumente associada à Afrodite, ou seja, ao feminino. É a rosa que une os dois homens e tira Bela da simbiose com o pai. A rosa também indica a união dos opostos. Isso significa que o amor, é um grande aliado e força motriz no processo de individuação, pois o amor é o combustível para que o indivíduo tenha força para romper com o laço familiar.

Von Franz (2010), ressalta que uma das atividades do animus negativo é furtar, pois ele precisa tomar a vida onde ele se encontra, matando todo o aspecto feminino da vida. O pai da heroína agora fraco e sem suas posses (energia) e começa a furtar tudo àquilo que tenha vida e com isso não consegue manter a força da ligação pai-filha. O tema do pai que entrega a filha ao noivo monstro é um tema familiar da mitologia. No conto Eros e Psique há esse tema da entrega da filha e da redenção do amado.

No conto original e também no filme, ao conviver com a fera, Bela percebe que ele é sensível e que está disposto a realizar todas as suas vontades a despeito de sua aparência. Ela se afeiçoa a ele, que a pede em casamento várias vezes, sendo recusado em todas elas. No entanto, com o tempo e a convivência, ela passa a enxergar o masculino de forma menos hostil.

A imagem de pai de Bela agora está no pólo negativo do arquétipo paterno, e isso interfere na forma como ela vê o masculino. Ou ele é um ladrão como o pai e furta sua feminilidade, ou é uma fera assustadora. E com a convivência ela terá de enfrentar essa projeção de hostilidade em relação ao masculino, por esse motivo, Bela reluta em aceitar esse homem como amado.

Mas no filme há algumas diferenças em relação ao original. Bela e Fera se reúnem todas as noites para jantar, e aos poucos vão se conhecendo. Bela, – assim como Psique no mito – contudo não obedece as ordens de seu anfitrião e tenta desvendar os mistérios do seu castelo mágico. Ela descobre então sua trágica história de príncipe arrogante que é transformado em um monstro devido um crime horrível.

No conto original a Fera foi um príncipe que ainda jovem perdeu o pai, e sua mãe partiu para uma guerra em defesa do reino. A rainha deixou-o aos cuidados de uma bruxa, que tentou seduzi-lo enquanto ele crescia; quando ele então recusou, ela o transformou em um monstro. No filme vemos que o príncipe era arrogante e estava à caça de uma corça com pelos dourados. Na verdade ele estava obcecado por ela e por matá-la. Até que um dia, mesmo a despeito dos pedidos de sua mulher, ele mata a corça e tragicamente descobre que se tratava de sua própria esposa, que era uma filha do deus da floresta.

Mudando o foco agora, e analisando o filme em relação ao príncipe, podemos supor que ele possui uma relação bastante falha com o feminino. Em suas relações predomina o Poder, ou seja, ele vê o elemento feminino como um troféu a ser conquistado. Ele precisa resgatar Eros em suas relações, pois onde falta Eros, o Amor, o poder se instala.

Em termos coletivos, na sociedade ocidental predomina esse aspecto de poder, onde impera a exploração da natureza em busca de satisfação egóica. A corça, é um animal associado à deusa Artemis, um deusa lunar, da caça e da natureza. A caça sempre fez parte do sistema psíquico humano. No entanto, Artemis nos mostra que a caça faz parte de algo sagrado e deve ser feito com respeito e devoção, uma vez que ela sempre existiu com o propósito de alimentar os homens e não para satisfazer a sede de poder humana.

No filme a esposa do Príncipe pode ser considerada como uma filha de Artemis e quando ele a mata é punido pelo pai da moça, o Deus da Floresta, que aparece a ele em forma de trovão. Bem o príncipe cometeu um grande erro de atentar contra a própria alma, e quando isso ocorre não ficamos impunes e o Self nos pune pelo ato. Bem Artemis é filha de Zeus, e no filme o pai da moça aparece como um misto de trovão e raio. Esse “pai” da anima representa para o príncipe uma figura do velho sábio, com o qual a princesa mantém um relacionamento de incesto psicológico, o que significa que por trás da anima está a possibilidade de um desenvolvimento interior do herói (VON FRANZ, 2005).

Conforme Von Franz (2005), esse pai sobrenatural da anima representa uma sabedoria suprema que está em contato com as leis do inconsciente. É força sobrenatural, e parte do espírito e da sabedoria que foi negligenciada no desenvolvimento da civilização. Esse animus da anima então pune o príncipe de sua arrogância e somente com o amor pela verdadeira personalidade dele poderia ser liberto. Isso significa que ele terá que olhar além das aparências e amar a alma feminina.

Em termos coletivos esse príncipe representa a forma como a consciência coletiva se coloca diante do feminino e esse pai espiritual, esse Zeus, representa um aspecto do deus mais primitivo. Nossa consciência moderna não tem deixado espaço ou vida suficiente à alma, o feminino e a natureza, e, ainda, tenta excluí-la. Em consequência, a anima do homem e o feminino na mulher e agarram a esse espírito primitivo, porque ela sente que ele lhe promete uma vida mais rica (VON FRANZ, 2005). No filme ele a resgata e pune a consciência transformando-a em um ser monstruoso. Se nos encararmos com certa dose de sinceridade veremos esse monstro em nós.

O fato de ele ser um deus pagão mostra que a cosmovisão, de certa forma, dava à anima do homem uma chance muito maior e mais abundante de viver. Por essa razão é muito mais fácil para a mulher e a anima no homem se voltar ao paganismo, pois nessa manifestação o feminino possui muito mais liberdade em se expressar de forma completa e plena. E Bela descobre toda essa estória por meio da ajuda do espírito da esposa e princesa morta, que lhe revela a tragédia.

Isso significa que a mulher presa ao animus pode alcançar uma feminilidade muito mais profunda do que se conhece na consciência.  Sob a ótica do príncipe podemos entender que ele então não se relacionava com a mulher real. Ele apenas idealizava as mulheres e assim sua anima o auxilia nesse processo de entrega a um ser real, e não a uma divindade.

A estória então prossegue de forma semelhante ao conto, onde Bela sente saudades da família de origem e pede para revê-la. Mesmo a contragosto a Fera permite que Bela visite sua família. Esse retorno ao lar de Bela pode representar uma regressão do ego ao inconsciente original. Nessa regressão, Bela confronta projeções reprimidas e sombrias inconscientes. No conto original as irmãs sentem inveja de Bela e tentam evitar que ela volte para o príncipe. No filme essa ação invejosa das irmãs é menos nociva e o problema de Bela está no irmão mais velho, que a rouba e leva os ladrões para o castelo do príncipe.

Isso mostra que a heroína está em um conflito com o aspecto sombrio de seu masculino interior, cuja ação negativa é a de roubar o valor e a energia da mulher. Esse animus negativo costuma rebaixar a mulher a uma situação abaixo de sua capacidade e desprezar a sua feminilidade. A mulher presa nesse animus negativo despreza toda a feminilidade e quando tenta estabelecer um vínculo amoroso com um homem sofre dolorosamente.

O animus pode aparecer nos sonhos das mulheres como um grupo de homens. Isso porque ele representa a coletividade, o julgamento, um tribunal, onde a mulher pode ficar presa. Ou seja, ela pode ser presa de julgamentos sem sentido e inférteis em relação a si mesma e aos outros. No filme há então um embate entre os opostos desse lado masculino da heroína. E nesse embate a Fera é ferida e morre, sendo salva de seu aspecto monstruoso e revivendo por meio da flor que cresce no tumulo da amada morta.

A Fera e o grupo se enfrentam e ambos morrem. Dois pólos opostos se enfrentam. Ambos se odeiam, pois até então eram semelhantes. Ambos desprezaram o elemento feminino.  Portanto, através desse embate com esse aspecto masculino que Bela alcança autonomia em seu relacionamento, quebrando a simbiose com o pai e o incesto psicológico. E ao quebrar a simbiose e identificação a heroína sente falta do homem, e sincronicamente a Fera morre. O aspecto animal, hostil e assustador se vão e ela pode ver realmente quem é seu marido, e seu lado humano pode se manifestar.

Ela conhece a sombra e a luz do príncipe e o ama. Muitas pessoas nesse estagio de retirada da projeção de anima e animus se separa por não suportar encarar o outro em sua humanidade.  Esse conto, portanto, nos mostra que a mulher, em termos coletivos, deve passar pela experiência de ficar presa ao seu animus fera (ou demônio), pois somente essa experiência o transforma em positivo e ela pode expressa-lo na realidade sem lesar sua feminilidade.

FICHA TÉCNICA

A BELA E A FERA


Direção: Christophe Gans
Elenco: Vincent Cassel, Léa Seydoux, André Dussollier
Gênero: Romance, Fantasia
Ano: 2014

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Peter Pan e o arquétipo Puer Aeternus

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O conto Peter Pan foi criado por James Matthew Barrie quando contava histórias aos filhos da sua amiga Sylvia Llewelyn Davies. Inicialmente foi idealizada para uma peça de teatro. Essa parte da vida do autor foi tema do filme Em busca da terra do nunca, com Johnny Depp. Peter Pan apareceu pela primeira vez 1902 em um livro intitulado The Little White Bird, uma versão ficcionada da relação de Barrie com as crianças de Sylvia Davies e que foi adaptada ao teatro. Em 1911, Barrie fez outra adaptação que chamou de Peter e Wendy, mas que normalmente é chamada simplesmente de Peter Pan (Wikipedia 2015).

Peter Pan é um pequeno rapaz que se recusa a crescer e que vive em busca de aventuras mágicas. Ele é apresentado como um menino adorável vestido de folhas e coberto da seiva que brota das árvores. Ele toca flauta e tem dentes de leite. O tema central da estória de Peter Pan gira em torno da descoberta infantil de que não será mais criança para sempre e irá crescer e se tornar adulto. A personagem Wendy mostra claramente a angustia e o medo gerados por essa descoberta.

A menina Wendy e seus dois irmãos recebem a visita de Pan todas as noites. A princípio ele aparece em sonhos para as crianças, mas a mãe deles – que já o conhecia de sua própria infância – percebe algo de errado, e passa a dormir com as crianças. Mas em uma noite em que precisa se ausentar com o marido a tragédia acontece e as crianças vão com Pan para a Terra do Nunca.

O autor do livro menciona que a partir dos dois anos a criança percebe que irá crescer. Por volta dessa idade a criança começa a ter noção do “eu”, ou seja, seu ego começa a se formar e ela começa a distinguir o eu e o objeto. Como o ego possui uma base somática, ligado ao corpo, ele passa então a ter o sentido de finitude. No livro não é mencionada a idade de Wendy, mas observamos pela narrativa que a menina está saindo da fase infantil e entrando na adolescência. Vemos essa passagem da saída da infância pelo fato de ela se interessar por Peter como homem e desejar um beijo, ou seja, ela está entrando na fase do encontro com o outro. Vemos que ela deseja ser mãe e formar sua família. E é ai que reside a força do conflito e da angustia da criança. Wendy é a heroína da história e sua angustia se manifesta na fuga da realidade com a ida à Terra do Nunca. Lá Wendy fantasia apenas que formou uma família. É tudo apenas uma brincadeira onde ela não precisa se comprometer.

Peter Pan toca flauta, o que o aproxima ao deus grego, deus dos bosques, dos rebanhos e dos pastores, e do pavor súbito. Por essa razão do seu nome se deriva o pânico. Mostrando que Peter é muito ligado a natureza, mas que também é apavorante e assustador. Pan também se aproxima do arquétipo que Carl Jung denominou de puer aeternus, ou seja, a eterna criança.

Conforme Von Franz (2005)

“Puer aeternus é o nome de um deus da antigüidade. As palavras vêm de Metarmophoses de Ovídio e são aplicadas ao deus-criança nos mistérios eleusinianos. Ovídio fala do deus- criança Iaco, dirigindo-se a ele como puer aeternus e cultuando- o em seu papel nesses mistérios. Posteriormente, o deus-criança foi identificado com Dionísio e com o deus Eros.”

Von Franz (2005) também aponta que se trata de um deus da vida, da morte e da ressurreição — o deus da juventude divina. Pan, após seu confronto com Gancho, é questionado pelo pirata sobre quem ele é. E o menino responde: “Eu sou a juventude, sou a alegria, sou um passarinho que acabou de sair do ovo”. Isso confirma que se trata de uma imagem arquetípica do Puer Aeternus.

Em termos individuais Peter Pan indica certo tipo de jovem tomado por um complexo materno fora do comum. Alguns homens se identificam com esse padrão e se comportam a vida toda como adolescentes. Tendo comportamentos que seriam absolutamente normais para os adolescentes, mas que não condizem mais com a vida adulta. Peter não só não tinha mãe, como não sentia a menor vontade de ter. Achava que se dava a elas um valor exagerado. No entanto, ele se liga a Wendy e a leva para a Terra do Nunca na pretensão de transformar a menina em sua mãe e dos meninos perdidos.

Isso mostra que o homem identificado com esse complexo só relaciona com uma mulher de forma a buscar uma substituta da mãe. Ele não quer uma mulher, mas alguém que cuide dele com amor maternal, pois o homem dominado por esse complexo é dependente da mãe. Ele procura uma mãe-deusa, portanto, cada vez que se apaixona por uma mulher, mas logo descobre que ela é um ser humano comum (Von Franz, 2005).

Pan tem uma relação ambígua com a figura da mãe: apesar de desprezá-la ele deseja uma. Na verdade o que ele despreza é o aspecto da Mãe Terrível, aspecto esse ligado a figura da bruxa. A Mãe Terrível é um aspecto extremamente necessário para o desenvolvimento da personalidade e para o processo de individuação, uma vez que ele é quem impulsiona para a independência e saída do paraíso materno. Vemos isso representado claramente nos contos de fadas, quando o herói ou a heroína é perseguido (a) ou expulso (a) de casa pela bruxa.

Portanto, Pan deseja apenas a Mãe Boa, aquela que mantém o filho preso em um estado regressivo e infantil a vida toda. Pan se relaciona com várias fadas e com Wendy, mas não se apega a nenhuma e simplesmente se esquece delas quando se entendia. Os homens desse tipo podem ser bem sedutores, verdadeiros “Don Juan”, mas ao conviver com eles a falta de compromisso e responsabilidade gera vários transtornos nas mulheres por ele seduzidas. E um deles é o ciúmes! Sininho, a fada que está mais próxima ao menino morre de ciúmes quando ele traz Wendy para a ilha. E Peter demonstra uma total desconsideração pelo sentimento dela.

Pan mostra sua faceta de Don Juan e sedutor ao saber usar as palavras na hora certa para encantar Wendy. Ele diz que as meninas são “mais sabidas” e que ela pode conhecer as sereias e ser mãe dos meninos, o que atiça a vaidade da menina e acende o desejo dela de junção com o outro e o despertar do desejo pela maternidade. No começo essa proposta é muito tentadora. Mas com o tempo a menina percebe que eles querem coisas diferentes. Ela já esta se tornando mulher e quer um beijo. No entanto, ela também percebe que ainda não pode realizar essas fantasias, pois ainda está em uma fase intermediária em que ainda precisa dos pais.

Por isso a realidade não permite que ela viva em um mundo de brincadeiras: Ela ainda não está pronta para ser mãe, mas também não quer mais brincar como criança, por essa razão precisa do auxilio da mãe que a oriente nessa fase de transição. O Puer Aeternus geralmente possui grandes dificuldades de adaptação a situações sociais, pois ele possui um de individualismo anti-social devido ao fato de se sentir alguém especial. Dessa forma ele não sente necessidade de adaptar-se, pois as pessoas é que têm que adaptar-se a um gênio como ele, e assim por diante (VON FRANZ, 2002).

E vemos essas características em Peter Pan. Ele é retratado como um sujeito arrogante (algo que enfurece Capitão Gancho), exibicionista e convencido. Outra característica que o aproxima do Puer é a de gostar de variedade e de repente achar sem graça uma brincadeira que momentos anteriormente o encantara. Ou seja, o Puer possui inconstância em seus interesses, por essa razão não conseguem se encaixar em um trabalho.

Para Peter fantasia e realidade são a mesma coisa. Esse tipo de pensamento fantasioso é típico da criança e dos povos primitivos, onde a mitologia era uma realidade e não algo simbólico. Mostrando que a energia psíquica no Puer está em constante estado regressivo e não consegue progredir para construção de algo no mundo externo. Isso se manifesta na constante recusa interior de viver o presente.
Peter também não possui empatia e faz as coisas apenas por vaidade. Algo bem típico de alguém em estado infantilizado, pois no processo de crescimento ocorre o interesse pelo outro. Ele não se liga ao outro, por isso vive constantemente esquecendo quem é Wendy, João e Miguel.

No homem tipo Puer há um medo terrível de se ligar a qualquer coisa, de se prender, de entrar no tempo e no espaço totalmente (por isso Peter vive na Terra do nunca), e de ser o ser humano específico que ele é. O fato de voar mostra que Peter quer se afastar ao máximo da Terra e da vida comum. Por isso é comum os homens identificados com esse arquétipo buscarem esportes como alpinismo e aviação, simbolizando a separação da mãe, isto é, da terra com sua vida comum.

Pan é extremamente sedutor e carismático, pois tem o charme da juventude e, portanto mostra nosso lado sedutor, mas que não quer enfrentar a realidade e assumir responsabilidades. Quantas vezes não nos pegamos sonhando em nos livrar das responsabilidades? Quantas vezes não sonhamos em voltar a sermos crianças livres e descompromissadas? Esse nosso lado pode ser extremamente estimulante e nos levar a situações não convencionais, nos tirando da rotina. Entretanto devemos tomar cuidado em intercalar as nossas vidas com responsabilidade e o compromisso, uma vez que dar vazão somente ao lado infantil de nossa personalidade pode nos levar a alienação e a consequências trágicas.Outro aspecto de Pan está relacionado com a crueldade e a sede de sangue que ele e os meninos perdidos apresentam. Os meninos são sanguinários e Peter os mata quando parecem estar crescendo, pois isso é contra as regras. Vemos o prazer em matar que os meninos têm ao enfrentar os piratas sanguinários. No conto temos na ilha os meninos, os piratas, os pele-vermelha e os animais. Isso forma um quatérnio que representa a sede de poder e sangue por trás de Peter. Esse quatérnio vive em relativo equilíbrio, como uma cadeia alimentar, até a chegada de Wendy. A presença da menina passa a atrapalhar os planos do Capitão Gancho, que representa aspectos sombrios de Peter.

Gancho também não tem mãe. Ele persegue a juventude de Pan, pois é o seu oposto: velho, ranzinza e desesperado pelo poder. Ele representa o aspecto sombrio do espírito na consciência coletiva que tenta impedir a renovação. A semelhança de Cronos ele tenta impedir o crescimento de uma nova vida, pois a criança é esse símbolo. O autor diz que quando as crianças morriam,Peter Pan as acompanhava durante um pedaço do caminho, para que não tivessem medo. Ou seja, ele também é um guia de almas. Esse pode ser um caminho para o desenvolvimento doPuer.

O homem com esse complexo pode desenvolver os aspectos de Hermes, deus grego que simboliza o guia das almas. O Puer ao assumir um compromisso com um trabalho criativo e não convencional pode ajudá-lo a se assemelhar a esse deus, símbolo da inteligência e da astucia e a se tornar um guia para aqueles que têm medo de atravessar a trajetória de suas vidas. Mas, além disso, é importante lembrar que Wendy é a heroína da história. Ela é levada a Terra do Nunca e lá passa a morar em uma casa subterrânea, dentro da terra, (a terra representa a mãe de forma simbólica). Ela passa a cozinhar, costurar, limpar e arrumar. Ela e os meninos moram dentro de árvores. Na psicologia analítica a árvore simboliza a vida humana, o desenvolvimento e o processo interior de formação da consciência no ser humano. O Self é a árvore — aquilo que no homem é maior que seu ego (VON FRANZ, 2002).

Von Franz (2002) aponta que quando o ser humano é suspenso em uma árvore é porque costuma se evadir, tentando se libertar e agir livre e conscientemente, e por isso ele é dolorosamente arrastado de volta ao seu processo interior. Como o Puer, muitos jovens, em determinado momento de suas vidas, têm que resolver seu complexo materno e perceber que o curso da vida não permite a permanência eterna nesse estado; ele tem que morrer.

Nesse caso, a presença de Wendy, que pode simbolizar a anima que faz o chamado para a individuação e a meta, traz a esses meninos a oportunidade de saírem de seu complexo materno. Por isso ela os chama para irem embora com ela. Os meninos vão, crescem e passam a viver uma vida normal. Mas infelizmente uma parte da libido de Wendy ainda fica presa na infantilidade, pois Peter se recusa a ir com ela.

Do ponto de vista de Wendy, pode-se afirmar que ela simboliza a mulher que possui um animus ainda em estado infantilizado. O animus geralmente é representado como um grupo, e no conto ela se relaciona com esse animus em seu inconsciente, aqui representado por vários grupos, inclusive dos animais. Se observarmos o pai de Wendy, ele é apresentado como um homem cujas emoções não foram diferenciadas. Ele é trabalhador, mas não consegue ganhar dinheiro suficiente para a família e vive sendo tomado por sua anima e se enchendo de humores inconstantes. Ele é quase uma criança mimada em termos de emoções. E essa experiência com o pai pessoal molda a relação de Wendy com seu animus e os homens.

Von Franz (puer) aponta que no caso da mulher com um animus do tipo Puer, a cura é infelizmente a mesma do homem, isto é, o trabalho e também pode também ser através da maternidade. Nesse caso, Wendy trabalha, e muito! E vemos que quando cresce ela se torna mãe e forma uma família. No entanto, ainda uma parte de seu animus ainda permanece indiferenciado e preso na infância. Assim o conto termina com sua filha e sua neta repetindo sua jornada a Terra do Nunca. Ou seja, o problema foi apenas parcialmente resolvido e Peter permanece em seu estado de eterno menino.

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Os cisnes selvagens e o animus feminino

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Os cisnes selvagens é um conte de Hans Christian Andersen, autor de O Patinho feio, Polegarzinha, A pequena sereia, entre outros. No começo do conto temos os seguintes personagens: O rei, onze filhos e uma filha. A rainha já está morta. Ou seja, temos doze personagens sendo que apenas uma delas é feminina. Temos masculinos demais! Podemos com isso supor, que a heroína, Elisa, precisa resgatar o elemento feminino faltante e equilibrar as energias.

Logo em seguida, surge a figura da madrasta, que de início odeia os enteados. Bem, a figura da madrasta é recorrente em contos de fadas. Símbolo da Mãe Terrível é ela quem desencadeia a ação e impele a heroína no processo de individuação.

Já que falamos do feminino, sabe-se que uma das suas características é se vingar da prole da concorrente. Vemos isso na Mitologia, a deusa Hera, quando traída, se vingava de Zeus não diretamente, mas atingindo a outra ou os filhos da relação extraconjugal. Aqui não há adultério, mas sabemos que quando alguém morre se torna divinizado e santificado. E com um ser divino a nova mulher não consegue competir.

Além disso, com ela passamos a ter 13 personagens. Bem, o número 13 corresponde no taro de Marselha ao trunfo da Morte. Em muitas sociedades primitivas, todos os anos, o velho rei é simbolicamente morto, desmembrado e ritualmente “comido” para assegurar a fertilidade das novas colheitas e a revitalização do reino (NICHOLLS, 2007). No caso do conto, temos um rei fraco que não defende os filhos e não se coloca contra os atos da nova mulher. Ou seja, a morte representada pela madrasta-bruxa vem para uma renovação do símbolo do Self na consciência coletiva representado pelo rei.

Revitalização e renovação. O reino precisa de um novo rei que aceita e acata o feminino e o traz sempre ao seu lado.

O lado masculino da mulher, o animus aparece muitas vezes, simbolizado por um grupo de homens. Ele representa um elemento mais coletivo que pessoal. Devido a este caráter coletivo, as mulheres referem-se habitualmente (quando o animus se expressa por seu intermédio) a “nós” ou a “eles” ou a “todos” e, em tais circunstâncias, empregam na sua conversa palavras como “sempre“, “devíamos“, “precisamos” etc (JUNG, 2002).

É uma imagem que emerge em uma quantidade de homens, um bando de pais, um conselho ou um tribunal ou ainda uma assembleia de homens sábios, ou então um artista transformista que pode assumir qualquer forma e que faz uso abundante dessa capacidade (JUNG, 2006).

Podemos supor que os irmãos, a um nível pessoal, formam a imagem do animus de Elisa, mostrando que a menina possui uma quantidade enorme de opiniões e pensamentos que precisam ser elaborados. O fato de não possuir uma figura feminina positiva no conto, indica que ela terá de construir a sua própria imagem do feminino. E terá de enfrentar esse animus na forma de um tribunal.

A bruxa-madrasta transforma os irmãos em onze belos cisnes brancos. O cisne branco é um animal associado à pureza e à luz. Na antiga Grécia, o cisne macho era o acompanhante permanente de Apolo, o deus da beleza, da música e da poesia, cujo carro celeste era puxado por cisnes. No mito de Leda, o cisne tem também uma simbologia masculina já que Zeus se transforma em cisne para perseguir Leda, que lhe foge transformada em ganso, simbolicamente semelhante ao cisne fêmea.

No Oriente, o cisne é símbolo da música e da poesia, para além de representar a coragem, a nobreza, a prudência e a elegância. Na Índia, o cisne é montado pelo deus Brama, e simboliza a elevação espiritual. Na tradição celta, os espíritos do outro mundo regressam ao mundo dos vivos sob a forma de cisne. São os cisnes também os responsáveis por trazer as crianças ao mundo em muitas tradições. Os cisnes, enquanto casal é um símbolo de fidelidade eterna, já que se unem para toda a vida e nunca substituem o companheiro morto. O canto dos cisnes é associado às juras de amor eterno e imortal.

Podemos fazer uma associação da relação de Elisa com os irmãos, muito próxima com a relação Artemis-Apolo. Apolo, irmão gêmeo de Artemis era a única relação significativa que a deusa tinha com um homem. O irmão é uma das manifestações da imagem arquetípica do animus. Enquanto a imagem do animus feminino está associada ao irmão a relação com os homens ficam comprometida, uma vez que com o irmão existe afetividade e companheirismo, mas não existe a relação erótica, que simbolicamente leva a coniunctio.

 

Sua relação com o masculino é fraternal, porém distante e destituída de Eros.

O cisne enquanto símbolo da fidelidade eterna mostra que Elisa está em um compromisso de fidelidade e devoção com o seu animus. E ele ainda se apresenta de uma forma instintiva, mesmo sendo um animal nobre como o cisne. Bem, Elisa possui um complexo materno negativo. A mulher com complexo materno negativo desenvolve uma defesa contra tudo o que é materno e feminino e a faz se aproximar do mundo masculino.

O propósito é quebrar o poder da mãe através da crítica intelectual e cultura superior, de modo a mostrar-lhe toda a sua estupidez, seus erros lógicos e formação deficiente, O desenvolvimento intelectual é acompanhado de uma emergência de traços masculinos em geral (JUNG, 2008). Por isso ela vê a mãe como madrasta e bruxa que a quer afastar dos irmãos e do pai que ela tanto ama.

Jung (2008) ainda nos fala sobre o complexo materno negativo:

De todas as formas de complexo materno é na segunda metade da vida que ela tem as possibilidades de ser bem-sucedida no casamento, mas isso só depois de sair vencedora do inferno do apenas-feminino, do caos do útero materno que (devido ao complexo negativo) é sua maior ameaça.

Portanto para que Elisa se case com o rei – animus positivo – deve passar pelo caos materno, e enfrentar e assimilar essa imago feminina negativa que foi construída em seu inconsciente.

Em termos coletivos, nossa sociedade ocidental pautada pela religião judaico-cristã, definiu uma imagem feminina bastante unilateral. A igreja admitiu o culto a Virgem Maria, mas essa imagem sofre de sérias restrições. Ela é uma imagem unilateral do feminino destituída de sua sombra. Aliás, como cita Von Franz (2010), a igreja acolheu a imagem da deusa-mãe, mas apenas na medida em que se submetia à aprovação do homem e se comportava “adequadamente”.

Tudo o que não se encaixava nesse papel adequado do feminino puro, submisso e virginal foi projetado na figura da bruxa. Portanto, nos contos de fadas a figura da bruxa-madrasta, é a projeção da sombra do feminino que foi desprezada e reprimida. Por essa razão os contos de fadas veem compensar essa atitude unilateral trazendo a solução do conflito para a consciência coletiva.

A bruxa não transforma Elisa em cisne, mas apenas os príncipes, uma vez que é o patriarcado que a transformou em uma figura sombria. E esse resgate do animus positivo é também um resgate do feminino, como veremos agora.

Os irmãos cisnes de Elisa a levam para uma terra distante e nessa viagem e ela entra em contato por meio de um sonho com a fada Morgana. Morgana é uma personagem muito conhecida da lenda do Rei Arthur. Ela é sua meia irmã, sacerdotisa da Grande Deusa e foi pelo patriarcado alçada a qualidade de bruxa.

Entretanto é essa figura que dá a Elisa a solução para trazer a forma humana seus irmãos.

Elisa deve fiar 11 túnicas em urtiga e não deve pronunciar uma palavra sequer durante esse tempo, mesmo com as mãos sangrando. O ato de fiar, tecer, costurar é uma atividade extremamente masculina. Nela deve-se ter muita paciência e permanecer em uma atitude de mobilidade durante um bom tempo. Para mulheres com um animus muito forte chega a ser desesperador ter que desacelerar o ritmo frenético e calar seus pensamentos. Vemos muitos exemplos nos contos de fadas onde a heroína se encontra com a atividade de fiar e tecer, como em A Bela Adormecida e Rumpelstilsequim.

O fato de não poder falar significa que ela deve calar as opiniões e generalizações de seu animus negativo. Sua atitude deve ser concentrada e totalmente voltada para o ato de fiar e costurar para assim poder colocá-lo em seu devido lugar e resgatar seu feminino. Aqui uma atitude unilateral para compensar a unilateralidade da atitude anterior é necessária para assim poder chegara um meio termo.

A urtiga é uma planta que começou a ser utilizada pelo Homo sapiens, desde 4000 a.C. Suas fibras eram utilizadas na fabricação de tecidos e mais tarde na produção de papel. A urtiga é conhecida por uma propriedade em suas folhas que se encostadas na pele, podem irritá-la, deixando uma sensação de que a pele fora queimada. Antes de serem descobertas as propriedades medicinais da planta o uso dela na indústria têxtil se manteve em alta até o século XX, mesmo já tendo sido descoberto o linho para fabricação de roupas e demais tecidos.

A urtiga apesar de queimar como fogo, vestia o homem dando caimento as roupas e melhorando sua aparência. O que significa que o fogo que queima e traz dor também ajuda a talhar e dar um aspecto mais humano aos príncipes. Isso se mostra quando os irmãos sentem compaixão pelo esforço dela e choram.

Elisa precisa permanecer mulher enquanto integra as qualidades de seu animus. E isso é uma tarefa árdua e dolorosa. O feminino é visto de uma forma negativa por isso a machuca e a fere, mas é nesse trabalho que se encontra a sua redenção. A princesa vai ao castelo com o rei que pretende se casar com ela, mas o arcebispo tenta envenenar o rei contra ela, dizendo que se trata de uma bruxa. O arcebispo representa o lado sombrio de seu animus – rei.

O rei permite que ela continue costurando as túnicas, pois trouxe suas coisas ao castelo, mas chega um momento que a urtiga acaba e ela deve buscar mais no cemitério. Ao ir ao cemitério encontra um grupo de bruxas que comem cadáveres humanos.

Essas bruxas representam o feminino ctónico, ligado a terra. Não se houve mais falar da madrasta, entretanto podemos supor que as bruxas e ela representam a mesma imagem, pois mais uma vez temos a morte presente. Elas representam uma face do feminino, justamente aquela suprimida pelo patriarcado. Elas são a face da anciã, da Grande Mãe, possuindo ligação com Hécate. As bruxas mostram um grande segredo do feminino, ao comer os cadáveres, elas nos dizem que todos nós voltaremos para o útero da Mãe Terra e seremos devorados por ela. Esse é o segredo da Morte. Viemos da mãe e voltaremos a ela!

Elisa deve passar por elas e não foi incomodada. Ela enfrentou a face da mãe terrível e devoradora e fez uma prece, ou seja, ela lhe prestou sua homenagem e respeito. Isso desperta a sombra do rei que passa a enxergá-la como bruxa e a entrega a julgamento.

A corte, o julgamento, o tribunal, geralmente aparecem nos sonhos femininos como uma manifestação do animus. Aqui Elisa deve enfrentar seus próprios julgamentos contra sua feminilidade. Ela transgrediu uma regra imposta ao comportamento feminino e acessou seu lado sombrio e toda transgressão gera culpa. Mas, infelizmente, sem esse lado sombra reprimido a mulher fica incompleta.

Elisa então é condenada a fogueira. E mesmo na prisão continuou tecendo as túnicas e não disse uma palavra. Ser fiel ao seu processo é uma questão importante no processo de individuação. Muitas vezes quem está de fora não entenderá o que se está fazendo. Uma pessoa que está em seu processo de individuação e não atende as normas do coletivo será muitas vezes julgada por seus atos. Um exemplo disso foi Cristo, que permaneceu sem reclamar durante todo seu calvário.

Aqui Elisa precisa mesmo sendo julgada pelo externo e interno ser leal ao seu processo senão tudo irá por água abaixo. Seus esforços em transformar seu animus e resgatar seu feminino não darão em nada. A verborragia do animus ainda deve ser contida para que no momento certo, a mulher possa colocar sue ponto de vista com assertividade.

Durante o caminho até a fogueira Elisa permanece em silencio e tecendo, até que aparecem seus irmãos na forma de cisnes e ela joga a túnica sobre eles, transformando-os em belos príncipes. Elisa desmaia de cansaço e dor e os irmãos explicam tudo ao rei.

Após seu exaustivo trabalho o feminino pode deixar seu masculino se expressar. Mas agora houve uma transformação, Elisa não é mais dominada pelo animus, mas é uma mulher feminina que assimilou as qualidades de assertividade e objetividade de se seu lado masculino. E assim ocorre o casamento sagrado, a coniunctio com seu masculino positivo e suas qualidades femininas e maternas podem ser expressas sem desvalorização.

Referências

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

JUNG, E. Animus e Anima, São Paulo, Cultrix, 2006.

NICHOLS, S. Jung e o Tarot – Uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 2007.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

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O Hobbit: uma jornada inesperada

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O filme O Hobbit relata eventos que antecederam a Trilogia O Senhor dos Anéis. E nele são relatadas as façanhas de Bilbo Bolseiro, tio de Frodo, da trilogia citada, quando jovem.

O filme começa narrando que o Reino dos Anões, cujo Rei era Erebor, anteriormente poderoso e próspero, sucumbiu devido a ganância dos anões por ouro e riquezas, sendo tomado pelo dragãoSmaug, que o guardou durante 60 anos.

Isso é bastante curioso, uma vez que os anões costumam ser retratados como seres muito prestativos e dóceis. Ótimos mineradores e metalúrgicos, ele trabalham nas cavernas onde extraem pedras e metais preciosos e também são hábeis artesãos confeccionando objetos mágicos com as pedras e ouro encontrados.

 

Em termos psicológicos eles podem ser considerados como uma instância psíquica que retira o que há de precioso no inconsciente (caverna) e traz a superfície dando forma e uso a esses tesouros. Mas como são pequenos podem ser facilmente esquecidos e ignorados.

Eles foram corrompidos pela ganância e pela exploração indevida da natureza. Isso significa que um complexo não esta funcionando de forma harmoniosa com a totalidade da psique.

Em termos coletivos a corrupção e ganância dos anões é uma característica sóbria de nossa sociedade. Com o avanço tecnológico e intelectual do homem deixamos de lado e passamos a desprezar a natureza, com a exploração massacrante e indevida dos recursos naturais. Os anões, seres tão próximos da natureza, mostram os complexos afetados por uma atitude unilateral. Eles são símbolos da forma correta de retirar os tesouros da terra sem que ela seja destruída e explorada.

 

 

A exploração da Mãe natureza mostra outro sintoma da consciência coletiva: a falta do elemento feminino e de Eros. E quando Eros falta logo se instala o poder juntamente com a ganância. Mas como mencionado em outro texto, a Rainha virá do mundo dos Elfos, seres muito próximos a função sentimento.

Bilbo então é recrutado por Gandalf  para fazer parte e agir como ladrão na caravana liderada pelo anão Thorin, herdeiro do trono de Erebor.

No texto sobre O Hobbit 3, vimos que Bilbo possui características do deus Hermesé rápido, leve, enlouquente e inteligente.

Mas outra característica importante de Bilbo é o fato de ele ser pequeno. Nos contos de fadas temos por vezes heróis muito pequenos, como nos contos: “O Pequeno Polegar e A Polegarzinha”. O fato de ser pequeno, ínfimo e quase imperceptível significa que esse ser simboliza um aspecto esquecido e desprezado, por isso aprece de forma muito pequena.

E a caravana parte para Erebor enfrentando Orcs e Trolls pelo caminho.

 

 

Mas o mais importante nesse primeiro filme é o encontro de Bilbo e Gollum. Encontro esse que irá desencadear toda a narrativa de O Senhor dos Anéis. Bilbo consegue roubar o anel de Gollum e com ele estabelece um jogo de adivinhações para poder fugir, mostrando toda a sua astucia e inteligência.

O Hobbit, como analisado anteriormente, não é o herói da historia, mas possui um papel importante como ladrão, ou seja, como aquele que vai trazer o segredo oculto à tona. Gollum vive no subterrâneo com o Anel e com o roubo, os poderes das trevas adormecidos agora voltam a tona, mostrando que as vezes é necessário um ato de transgressão (roubo) para que conteúdos reprimidos pela consciência possam ser enfrentados e assimilados.

Mas o interessante é que Bilbo mesmo usando o anel não se contamina por ele e não se transforma em um “monstro” como Gollum (que também era um Hobbit). Isso significa que Bilbo possui uma natureza mais próxima do mal, uma vez que ele conhece a arte de enganar com as palavras e que não hesita em roubar o Anel.

O fato de estar mais próximo desses aspectos sombrios mantém a sua personalidade intacta por muitos anos. Para a Psicologia Analítica, quando a pessoa é muito ingênua e se encontra muito afastada de sua sombra ela se torna presa fácil de pessoas mal intencionadas bem como de uma possessão pela sombra, vindo a se tornar aquilo que ela mais odeia e teme.

 

 

Além disso, os hobbits são seres muito próximos a natureza e aos aspectos femininos, o que demonstra que o feminino em nossa sociedade sempre esteve mais próximo aos aspectos sombrios. Temos como exemplo Eva, figura feminina pela qual o mal entrou na vida humana. Entretanto na mitologia cristã também é pelo feminino que a humanidade é salva. Maria é aquela que da a luz ao Salvador, tendo um status de grande auxiliadora da humanidade.

E é justamente isso que torna Bilbo apto a posteriormente enfrentar Smaug e não ser contaminado pela ganância dos anões. Portanto, conhecer a própria sombra nos auxilia a identificar a sombra no outro e assim nos tornamos mais sábios e menos ingênuos.

 

FICHA TÉCNICA

O HOBBIT – UMA JORNADA INESPERADA

Direção: Peter Jackson
Continuação: O Hobbit: A Desolação de Smaug
Adaptação de: O Hobbit
Música composta por: Howard Shore
Ano: 2012

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A Bruxa Morgana e o matriarcado pagão

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Morgaine Le Fay ou Morgana Le Fay, ou simplesmente Morgana das Fadas, é um dos personagens mais intrigantes da antiga lenda do Rei Arthur, sendo apresentada como sua irmã, por parte de mãe.Seu nome Morgaine tem origem celta e quer dizer mulher que veio do mar.

A lenda conta que Morgana era filha de Igraine e Gorlois, Duque da Cornualha. Era uma sacerdotisa da Ilha de Avalon, sendo treinada por sua tia Viviane para se tornar a Senhora do Lago ou Senhora de Avalon.

Morgana teve um filho com seu irmão Arthur depois de um ritual sagrado. Essa criança se chamava Gwydion, tornou-se adulto e foi para a corte de Arthur, passando a se chamar Mordred. Mais tarde pai e filho se enfrentam como inimigos e se matam um ao outro em um duelo pela disputa do Reino. Morgana leva Arthur para Avalon, porém, ele morre ao avistar as praias da ilha sagrada. A lendária espada Excalibur é jogada no lago. A Ilha de Avalon se desliga quase por completo do mundo e a Bretanha cai numa era negra dominada pelos Saxões.

Uma das obras mais expressivas onde Morgana é apresentada é a colação de quatro volumes As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. Morgana é retratada pela autora como uma sacerdotisa da Grande Mãe em uma cultura matriarcal e pagã. A obra coloca Morgana em uma posição de poder e conhecimento e relata a importante passagem do matriarcado pagão para o patriarcado cristão.

Mas o que é mais relevante é que em todos os relatos sobre a lenda Arthuriana, Morgana é um dos personagens mais expressivos e fortes. Como sua inimiga ou amiga, sua amante ou irmã, Morgana encanta, fascina, aterroriza e engrandece essa antiga lenda que povoa nossa cultura há séculos.

Como junguianos podemos cair na tentação de classificar Morgana como a anima de Arthur. E ela até pode ser assim descrita, mas sua análise ficaria limitada, pois Arthur é um Rei, um Herói.

Como rei ele pode ser considerado um símbolo do Self manifesto na consciência coletiva (Von Franz, 2005). Como Herói representa um arquétipo, mais especificamente um ego arquetípico. Ou seja, ele representa uma disposição arquetípica comum a todos, semelhante, que se manifesta de uma maneira ou de outra em cada ser humano e que é edificado pelo Self. Esse ego representados pelos Heróis, é um ego ideal, que permanece em harmonia com as exigências do inconsciente (VON FRANZ, 2010).
O Herói é aquele que vem restabelecer o equilíbrio psíquico, vem trazer vida a uma situação morta. Nas lendas, contos e mitos, ele traz renovação a Consciência Coletiva.

Arthur vivia em uma época pagã, onde imperava o Matriarcado e o culto a Grande Mãe Terra. Mas, não obstante Arthur é considerado a porta de entrada do cristianismo juntamente com o Patriarcado, onde predomina o arquétipo do pai.

Ao ser consagrado rei da Grã-Bretanha, Arthur, ao retirar a Excalibur, conhecida como “a espada do poder”, de uma sólida rocha, jurou fidelidade à bandeira pagã de Pendragon, seu pai. Mas ele a trai em favor da bandeira cristã, empurrado pela esposa Guinevere que possui formação cristã.

Morgana, então, se empenha em destruir o reino do irmão, pois juntamente com Merlin, ela simboliza o mundo pagão e o embate entre paganismo x cristianismo.

Arthur foi o representante da mudança na Consciência Coletiva, da Grã – Bretanha. Uma passagem essencial da era Matriarcal para a Patriarcal. Nessa época o modelo Matriarcal já não atendia mais as necessidades da consciência coletiva. A chegada do Patriarcado era indispensável para o desenvolvimento da consciência, que trouxe com ela a lei, a ordem e a tutela de um único Deus.

Vemos essa passagem em várias mitologias, como na babilônica com a morte de Tiamat pelo deus Marduk, que divide seu corpo em dois. A mitologia grega também apresenta Apolo matando Píton, e dividindo seu corpo em dois, como uma ação necessária para se tornar dono do oráculo de Delfos.

Arthur, assim como Apolo é representado como um símbolo solar, devido a sua ligação com a Excalibur, um símbolo da luz, consciência, e discriminação lógica.

A visão patriarcal instaurou na humanidade a ordem, o limite, as regras, a racionalidade e principalmente a objetividade, trazendo inúmeras melhorias e desenvolvimento em termos culturais, tecnológicos e sociais. Mas essa passagem e separação do período Matriarcal, mesmo sendo necessária para o desenvolvimento psicológico coletivo, ocorreu à custa da desvalorização do feminino que foi sacrificado e reprimido no mundo inconsciente.

E dessa forma, tudo o que está ligado ao Matriarcado como o paganismo, a magia, a sensualidade, os instintos e a valorização do corpo são considerados pecado, e Morgana, então, se converte em uma bruxa que conspira contra Artur. Basta lembra que as mulheres nessa época, como é relatado na história, passaram a ser consideradas bruxas e símbolos do pecado. Varias morreram queimadas devido a essa mudança.

Mas Morgana não é somente uma bruxa ou feiticeira, ela simboliza a dor do feminino desprezado. É tocante na obra As Brumas de Avalon, quando Morgana descobre que o culto a Grande Mãe não morreu, mas está apenas disfarçado e dormente, enquanto ela observa um grupo de freiras em adoração a Maria.

O que Morgana clama é novamente o reconhecimento das forças do feminino. Arthur como Herói tentou unir as duas forças, mas sucumbiu, uma vez que a humanidade não estava pronta para esse aspecto de Alteridade, onde masculino e feminino convivem em harmonia e respeito. Era necessário passar pelo pólo oposto.

E esse é hoje nosso maior desafio, resgatar essa sabedoria instintiva, do corpo, da terra e deixá-lo em consonância com o masculino, pois um depende do outro.

É importante lembrar que quando está para morrer Arthur é levado por Morgana para Avalon e morre em seus braços. E é assim com todos nós, no final seremos novamente recebidos pelos braços da Grande Mãe e retornaremos para seu ventre.

Referências:

NEUWMAN, E. A Criança. Cultrix. São Paulo: 1995.

NEUWMAN, E. A Grande Mãe. Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

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João e Maria: aspectos simbólicos do inconsciente

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João e Maria é um conto de fadas que foi coletado da tradição oral e transcrito pelos irmãos Grimm. E é um conto bastante popular, principalmente entre as crianças.

Todos nós carregamos uma imagem interna do que é a mãe, e nós nos confrontamos com essa imagem a todo o momento em nossas vidas. E essa imagem carrega em si o lado bom, protetor, afetuoso, que nos enche de carinho e prazer e o outro lado sombrio que é o da fome, do sofrimento e até da morte.

E esse lado sombrio é retratado nos contos de fadas, como uma madrasta, uma bruxa, uma feiticeira. Mas a verdade é que podemos encontrar os dois lados juntos em uma mesma pessoa. E o conto João e Maria trata do processo de encarar o lado terrível da mãe.

Aqui nesse ponto acredito que seja importante contextualizar o que ocorria com as crianças na época em que o conto foi escrito.

CORSO & CORSO (2006) nos contextualiza e mostra o clima da época:

Era um tempo em que os pais, só depois de encher bem a barriga, lembram que as crianças poderiam ficar com as sobras. O duro é que era bem assim. A criança como alguém que possui um valor mais alto que o adulto, alguém a quem se deve cuidar e preservar, é uma conquista da modernidade. Para nós é tão natural abrirmos mão do pouco para que não falte às crianças, quanto, para a sociedade tradicional européia, era deixá-las com as sobras.

Hoje nossos valores mudaram, mas como a estória sobrevive podemos supor que esse elemento da fome hoje está a serviço de um aspecto psicológico, senão haveria sido suprimido do conto.
Prosseguindo na análise psicológica, sabemos que enquanto bebês nossas mães nos alimenta e nos carrega no colo, mas quando crescemos deixamos de ser ninados e temos que passar a ser independentes. E isso traz uma sensação de abandono, que faz com que olhemos para nossas mães como bruxas.

Infelizmente aquela mãe protetora, que coloca no colo deve desaparecer para que a criança encontre seu próprio valor e se desenvolva como personalidade própria no mundo, senão ela será um brinquedinho e uma extensão da mãe.

O fato da família no conto passar fome significa que a mãe não pode mais dar o alimento, que é o colinho. Chega um momento em que o desmame é necessário. A comida é apenas um símbolo de que o indivíduo sente fome de novas vivencias. João e Maria estão crescendo e precisam ter novas experiências e contato com o mundo. Isso pode ocorrer com a ida à escola, onde a criança pode se sentir abandonada pela mãe e a vê-la como fria e cruel.

O pai resiste a princípio, mas se deixa influenciar pela madrasta. Essa é uma visão que a criança pode ter em relação ao pai: de que ele é fraco e sucumbe aos pedidos da mãe.

Outro ponto importante a ser analisado é o fato de termos um casal de crianças como protagonista. Maria é a típica menininha que chora e João é aquele que tenta resolver os problemas. Na verdade, sem entrar no mérito da questão dos gêneros, esses dois lados estão presentes em nós. Independente do nosso sexo, por vezes, em uma situação difícil, podemos sentir vontade de chorar, mas ao mesmo tempo podemos sentir algo pulsando em nós querendo resolver a situação.

A floresta, em geral, é um símbolo do inconsciente, aqui no conto podemos afirmar que quando a criança vai para o mundo automaticamente ela passa a separar o que é mundo interno e externo. A consciência separa os opostos, antes ela vivia em um estado de plenitude, mas agora além de enfrentar as demandas do mundo externo e do seu mundo interno inconsciente.

Crescer e ter de sair de casa tem um simbolismo para a psique de morte. A criança se sente condenada à morte. E realmente todo crescimento psíquico, toda mudança de vida exige uma morte simbólica. Aqui João e Maria devem deixar morrer seu lado bebê e sua ligação simbiótica com a mãe.

Após caminharem muito e já exaustos e com fome, eles encontram a casa de doces e a bruxa. A bruxa se mostra bondosa e generosa, mas sua intenção é devorar as crianças. Agora que a criança não está mais sob os braços da mãe, ela terá de lidar com a figura interna da mãe terrível, uma figura arquetípica presente no inconsciente coletivo. Ela é cega, portanto ela não quer ver que as crianças estão crescendo, ela quer “come-los”, devorá-los simbolicamente, para que voltem ao seu ventre e não cresçam. É um aspecto regressivo nosso que anseia voltar para a barriga da mamãe.

Essa separação mãe-filho nunca é fácil para ambas as partes. A criança sofre porque perdeu seu paraíso, mas vemos também nessa fase onde ocorre o desmame, ou quando o filho começa ir à escola, que muitas mães sentem culpa, fazem dramas e tentam sofregamente trazer de volta aquele paraíso idílico entre os dois.

Mas voltando a bruxa, observem que ela alimenta o menino e a menina lhe serve como escrava, limpando, cozinhando e lavando. Ou seja, seu animus deve continuar fraco e infantil, entretanto ao passo que ela deseja destruí-lo ela acaba fortalecendo mais seu lado masculino. Ao lhe dar mais comida ele adquire mais força.

Na verdade ela quer comer os dois, uma vez que manter o filho em um estado de bebê não é privilégio da relação da mãe com o filho.

Mas é a menina que engana a bruxa e a faz cair dentro do forno. Ou seja, a menina que vivia chorando agora adquiriu objetividade e astucia. A ingenuidade foi embora o lado infantil que se apavora agora confia em seus instintos (isso fica claro quando Maria adquire uma sensatez em relação ao cisne, seu lado animal, fazendo com que ele leve um de cada vez ao outro lado da margem do lago).

As crianças finalmente voltam para casa, agora trazendo as riquezas encontradas em seu inconsciente e compreendendo que foi necessário cortar o cordão umbilical para que pudessem amadurecer.

Referências:

BONAVENTURE, J. O que conta o conto?. São Paulo. Edições Paulinas: 1992.

CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

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