Temple Grandin: Autismo e manejo de animais

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Eu sou diferente, não inferior
Dra. Temple Grandin

A princípio parece difícil relacionar pessoas com algum transtorno do desenvolvimento, principalmente mulheres, em áreas de conhecimento que por muito tempo a prevalência de homens era total, a saber, o manejo de animais. Pois bem o filme Temple Grandin apresenta a história real de Temple, uma mulher autista (de alto funcionamento) que conseguiu se desenvolver com a ajuda de sua mãe e família, ter acesso à educação e uma vida dentro de suas possibilidades, que aliás foram incríveis, pois se tornou um nome importante na história da ciência animal.

Fonte: https://bit.ly/3eVDUsR

O filme conta a história de sua vida: aos 4 anos ainda não falava, emitia comportamentos de birra, tinha dificuldades de socialização e interação com outras crianças, não gostava de receber toques, apresentava hipersensibilidade a barulhos e seletividade alimentar. Foi nesse momento que Temple recebeu o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) de um médico e, junto dele, a proposta para que sua mãe a internasse, uma vez que não havia tratamento para tal. A mãe de Temple recusou a proposta e seguiu tentando ensinar a ela repertórios comportamentais (falar, reconhecer imagens). Mesmo sozinha e com dificuldades teve ótimos resultados, pois a filha desenvolveu um bom repertório verbal e intelectual.

O TEA, de acordo com o DSM-5, caracteriza-se por déficits na comunicação e na interação social em diversos contextos, engloba dificuldades na reciprocidade social, em comportamentos não verbais de comunicação usados para interação social e em habilidades para desenvolver, manter e compreender relacionamentos. Também pela presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, dificuldades em movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos, padrões comportamentais verbais ou não verbais, interesses fixos e extremamente restritos que são anormais em intensidade ou foco e hiper ou hipo reatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente (APA, 2014).

A avaliação realizada pelo médico para identificar e realizar o diagnóstico foi baseado numa entrevista com a mãe, solicitando que explicasse os comportamentos que a criança emitia ou não e, segundo o médico, não havia terapias voltadas para o desenvolvimento de crianças autistas e que a solução seria a internação. Atualmente, existem diversos métodos de avaliação e tratamento para crianças autistas. Os mais comuns à realidade da Psicologia (e equipes multidisciplinares) brasileira serão apresentados a seguir.

Para a avaliação podem ser usadas as Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com TEA, do Ministério da Saúde, voltadas para equipes multiprofissionais, e que servem como instrumento de auxílio nos atendimentos, uma vez que oferecem orientações ao cuidado da saúde de pessoas com TEA e seus familiares (BRASIL, 2014). Outra ferramenta é o Protea-R Sistema de Avaliação da Suspeita de TEA, também direcionado a vários profissionais da saúde, que serve como instrumento de rastreio, tanto para identificar sinais suspeitos de TEA como de transtornos da comunicação em crianças de 24 a 60 meses (BOSA; SALLES, 2018). Tem-se, ainda, o VB-MAPP – Avaliação de marcos do comportamento verbal e programa de nivelamento, usado como instrumento de rastreio para avaliar os comportamentos e habilidades os quais a criança já adquiriu, bem como as dificuldades que a impedem de aprender (MARTONE, 2016).

Fonte: https://bit.ly/2CMKpBl

Logo, após a avaliação, o profissional consegue planejar o atendimento voltado para estimulação e ensino de repertórios comportamentais. Dentre os tratamentos comumente utilizados nas práticas de terapia de estimulação de crianças autistas em nossa realidade, tem-se a terapia baseada na Análise do Comportamento Aplicada (ABA) e o Modelo Denver, um método de intervenção precoce. Ambos são voltados para o ensino de repertórios de comportamentos pautados em ciências comportamentais e, por meio dessas práticas, as crianças conseguem aumentar seu leque de comportamentos e habilidades sociais, bem como ampliar suas possibilidades (BORBA; BARROS 2018; LOHR, 2016).

O filme inicia com Temple já adulta se apresentando: “eu não sou como as outras pessoas, penso com imagens e as conecto”, e durante a narrativa é possível identificar como o cérebro dela funciona e como se comporta. No verão de 1966, no Arizona, ela foi passar as férias na fazenda de sua tia, para pensar na possibilidade de ir para a faculdade, pois naquele momento estava com uma certa resistência à ideia, devido a sua dificuldade em ter  contato com outras pessoas, e foi lá que descobriu seu gosto por animais, especificamente suas habilidades com vacas.

Até então, foi possível observar comportamentos relacionados ao autismo, como pouco repertório social para cumprimentar as pessoas, sentar-se à mesa, só se alimentar de gelatina e iogurte, compreender qual era seu quarto naquele contexto (tanto que foi preciso identificar a porta do seu quarto), e um pouco resistente a mudanças. No seu contato direto com a rotina e atividades da fazenda e do gado, Temple aprendeu com o vaqueiro um método utilizado para acalmar o gado antes da aplicação de vacina: o animal, em fila, passava por um corredor, no próprio curral, até chegar à uma máquina de madeira que o imobilizava, tranquilizando-o. Logo, diante de situações que lhe causavam pânico, ela passou a reproduzir o comportamento das vacas, passando pelo corredor até chegar no objeto de madeira e se sentir abraçada pela máquina para que pudesse se acalmar.

Ao final do verão, Temple retornou para a cidade, indo para a Universidade Franklin Pierce para cursar Psicologia; no entanto, teve dificuldades de adaptação: o barulho dos universitários, o contato com as pessoas e o método de ensino a incomodavam tanto que a levou a construir uma máquina de madeira (máquina do abraço) para se acalmar, semelhante à usada na fazenda com as vacas. Porém, essa máquina não foi aceita no campus, pois no dormitório não podia ter objetos grandes e, além de tudo, ela dividia o quarto com outra pessoa que não a compreendia.

Fonte: https://bit.ly/32RO3oc

Ela chegou a explicar a necessidade da máquina para o coordenador da universidade, mas ele não aderiu à ideia, o que a levou a fazer uma pesquisa que justificasse que tal máquina poderia ajudar as pessoas a relaxar. Muito tempo depois, ela conseguiu provar sua teoria e o mesmo homem a elogiou pela pesquisa e método utilizado. Ela foi readmitida à universidade e passou a ter uma companheira de quarto cega, e ambas mantiveram um bom relacionamento, que favoreceu Temple a desenvolver repertórios sociais, pois teve que aceitar o toque ao ajudar a guiar sua amiga e narrar filmes enquanto assistiam juntas.

Quando concluiu o curso, Temple fez o discurso de formatura, mostrando o quanto evoluiu, pois, falar e estar em ambientes com muitas pessoas era difícil para ela. Após a graduação, por incentivo do professor Carlock, ela seguiu os estudos naquilo que mais gostava, o manejo de animais, e passou a desenvolver pesquisas na área, se tornando mestre em ciência animal.

Durante suas pesquisas no mestrado, Temple foi ignorada e motivo de piada por muitos fazendeiros importantes para a sociedade da época, simplesmente por ser uma mulher nessa área de conhecimento; chegaram a falar que ela deveria considerar outra área de trabalho. Foi barrada de entrar no abatedouro no qual fazia a pesquisa, vinculado a universidade, a mesma chegou a vestir trajes de fazendeiros e trocou de carro por uma camionete para entrar no ambiente. Ela sempre os ignorava e seguia com seus objetivos, algumas piadas ela não entendia, fato que está relacionado a características autistas, pois possuem dificuldades na compreensão de metáforas e palavras abstratas.

Outras dificuldades surgiram pelo mesmo motivo, como ter sua pesquisa rejeitada por fazendeiros vinculados a instituição, mas ela insistiu até conseguir. Ao ter contato com formas agressivas de tratar o gado antes do abate, ela desenvolveu um projeto que tornava esse momento menos agressivo ao gado, dizendo que “criamos o gado para nós, a natureza é cruel, mas não deve ser. Devemos-lhe algum respeito”. Apesar de tudo, Temple continuou desenvolvendo pesquisas, alcançando pessoas com interesse no seu trabalho e, após seu título de mestrado, Temple iniciou seu doutorado, se tornando uma pessoa extremamente importante para a área de manejo animal.

Temple Grandin e sua intérprete Claire Danes. Fonte: https://bit.ly/3eVFf2R

O filme encerra com Temple na Convenção Nacional de Autismo em 1981, falando sobre sua trajetória de vida, da autoestimulação, do acesso à educação e dos seus títulos, o que surpreendeu muitas mães, inclusive a sua própria mãe, por estar falando em público. Por fim, o filme levanta pautas importantes: uma mulher autista, que por muito esforço e paciência de sua mãe conseguiu se desenvolver e ser uma autista de alto funcionamento e que revolucionou as práticas de manejo racional de animais em fazendas e abatedouros, relacionando a psicologia com o manejo de animais, por meio de estudo do comportamento do gado.

FICHA TÉCNICA: 

Título Original: Temple Grandin
Direção:  Mick Jackson
ElencoClaire Danes, Julia Ormond, Catherine O’Hara, David Strathairn;
Origem: EUA
Ano: 2010
Gênero: Biografia, drama;

REFERÊNCIAS:

ASSOCIAÇÃO DE PSIQUIATRIA AMERICANA (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.

BOSA, Cleonice Alves; SALLES, J. F. D. Sistema PROTEA-R de avaliação da suspeita de Transtorno do Espectro Autista. 1. ed. São Paulo: Vetor, 2018. p. 1-183.

BORBA, M. M. C.; BARROS, R. S. Ele é autista: como posso ajudar na intervenção? Um guia para profissionais e pais com crianças sob intervenção analítico-comportamental ao autismo. Cartilha da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC), 2018.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (TEA). Brasília, 2014. 86 p.

LOHR, T. Resenha. Educ. rev., Curitiba, n. 59, p. 293-297, março de 2016. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000100293&lng=en&nrm=iso>. acesso em 05 de julho de 2020.  https://doi.org/10.1590/0104-4060.44618 .

MARTONE, M.C.C. Adaptação para a língua portuguesa do Verbal Behavior Milestones Assessment and Placement Program (VB-MAPP) e a efetividade do treino de habilidades comportamentais para qualificar profissionais. 2016. 265f. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de São Carlos. 2017.

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Como mudar (ou não) sua vida, segundo Proust

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Embora as pessoas passem muito tempo de suas vidas preocupadas em debater sobre a felicidade e as diversas formas de alcançar essa felicidade plena e estável, o fato é que nossa real preocupação tem sido a infelicidade.

Fonte: goo.gl/LsZPBm

Há um prazer mórbido que pode ser observado em vários círculos de amizade, no qual as pessoas se vangloriam de suas desgraças e inclusive competem para ver quem sofre mais. Profecias sobre o fim da raça humana, que eventualmente será causado por eventos catastróficos, mobilizam milhões de pessoas, que acreditem ou não nessa “profecia”, acabam sendo influenciados por elas. Diante da possibilidade da destruição total, as pessoas respondem de diferentes maneiras. A maior parte delas parece concordar em viver tudo o que tinham se negado a fazer durante a vida. Isto é bom? Isto é ruim? (é uma pergunta retórica, eu não vou respondê-la. Nem Proust.)

Convenções sociais têm forçado os humanos a se comportarem “bem”, reprimindo desejos animalescos ou que simplesmente não combinem com o que a situação pede… Nós viveríamos esses desejos intensamente caso a morte fosse certa?

Proust, citado por Alain de Botton, em seu irônico e afiado livro “Como Proust pode mudar sua vida” (2013), afirma que diante da perspectiva iminente da morte, a vida nos pareceria infinitamente bela e importante. Quantas coisas deixamos de fazer, adiando para um futuro incerto, por que não nos parece que a morte pode estar à espreita, logo aí? A certeza crua e impositiva da morte, tiraria o “viver” do plano de fundo e o colocaria como figura central deste quadro interessante chamado Vida.

Muitos de nós já nos depararam com a Morte por aí. Alguns acidentalmente, e outros intencionalmente tentam entender como seria o silencio perpétuo… Outros a encontram e não têm tempo para delongas. Ela vêm, se impõe como um fardo, que a despeito de ser invisível, não é por isto menos pesado, e os que ficam são irremediavelmente afetados, obrigados a lidar, pensar e reorganizar suas perspectivas.

Botton (1997) afirma que abrindo mão da nossa certeza de imortalidade, aproveitaríamos melhor a vida e suas imensas possibilidades. Entretanto, essa tomada de consciência deve ser aliada às reflexões, para que não se tome decisões impulsivas diante do pânico que a finitude pode representar. Em “Como Proust pode mudar sua vida”, (apesar do título característico de leitura de auto ajuda) Botton não pretende ensinar como aproveitar a vida. O livro é um convite irônico à reflexão de como ajustar nossas prioridades e aproveitar a estadia antes que a nossa viagem seja interrompida.

De uma forma irônica Alain de Botton em “Como Proust pode mudar sua vida” misteriosamente parece até que vai ensinar uma receita para a vida, os capítulos assemelham aos livros de autoajuda e mesmo não sendo é através das narrativas de Proust que o livro é abordado. Proust era um homem fascinado pela literatura e tinha como objetivo ser tão importante para o universo social através da sua literatura quanto seu pai fora para a medicina da época, tais narrativas nesse livro estão relacionadas à sua primeira publicação “Em busca do tempo perdido” que foi aclamado como obra prima.

Dentre as narrativas é evidente que o autor tenta mostrar como enxergar o outro a partir de nós mesmos, por exemplo, quando lemos um livro vivemos aquela história contada como verdade absoluta e sentimos como se estivéssemos no lugar do autor. Essa relação autêntica colocada leva o sujeito a desenvolver aspectos positivos, pois a literatura independente do gênero e tem funções terapêuticas, como citada por Botton:

Em vez de culpá-lo pelo problema, talvez devêssemos nos perguntar se é possível esperar que algum romance tenha efetivamente qualidades terapêuticas, se esse gênero é capaz de oferecer mais alívio do que é possível obter com uma aspirina, um passeio pelo campo ou um dry martini. (BOTTON, 1997)

Fonte: https://goo.gl/AHm5go

Proust, a princípio, poderia até ser apenas um amador da literatura, mas ele conseguia transformar qualquer noticia de jornal seja ela boa ou ruim em uma bela história. Com ênfase, entusiasmo e emoção, até mesmo uma caixinha de sabonete pode mostrar um pouco sobre a magnificência da vida.

Ou seja, é o próprio sujeito que atua como protagonista e dá importância a algo, que desenvolve e dá sentido a uma história, pois todas as histórias que já se ouviu até hoje foram vistas com importância para que fossem repassadas.

Essa dinâmica de dar significado ao conteúdo e expressá-lo é mencionada de forma sucinta por Botton:

Isso mostra como boa parte da experiência humana está vulnerável à abreviação, como é fácil ser privado das referências mais óbvias que nos pautam quando atribuímos importância a algo. É possível imaginar que boa parte da literatura e do teatro não teria nos dito nada se tivéssemos nos deparado com seu tema sob a forma de uma notícia breve durante o café da manhã. (BOTTON, 1997)

Segundo Botton, ao citar Proust, para ter uma vida saudável de ideias é preciso ter uma mente que seja examinada cuidadosamente para que só assim seja confirmada uma grande sabedoria. Para ele, só existem dois meios de adquirir a sabedoria: através da dor que é uma variante superior e por um professor. Diante disso, todo criador deve ser o primeiro a usufruir de sua invenção ou construção.

É por isso que Proust desprezava a tese de Sainte-Beuve e argumentava veementemente que eram os livros, e não as vidas, que importavam. Assim, podíamos ter certeza de apreciar o que era importante. (BOTTON,1997, p. 44).

Proust fala da rejeição que teve e isso levou a fazer uma seleção de amigos para justificar dentro da história da filosofia que as pessoas que se destacaram eram as que tinham inteligência e moral. Botton nos conta as experiências e frustações de Proust. Ele diz que o sofrimento físico e psicológico faz parte da vida e faz com que a pessoa cresça tanto material como imaterialmente, tanto no amor quanto na ausência dele. “O amor é uma doença incurável.” “No amor, existe um sofrimento permanente.” “Aqueles que amam e os que são felizes não são os mesmos”.

O pessimismo romântico de Proust se baseava, pelo menos em parte, na combinação de uma intensa necessidade de amor e uma tragicômica falta de jeito para obtê-lo. “Meu único consolo quando estou realmente triste é amar e ser amado”, ele declarou, e definiu seu principal traço de caráter como “a necessidade de ser amado; mais exatamente, uma necessidade de ser afagado e mimado mais do que de ser admirado”. (BOTTON, 1997. p ,47)

De acordo com o autor, todo individuo é diferente um do outro, ninguém tem uma mesma combinação de ações e problemas, para uns aquilo que é uma doença crônica é para o outro apenas uma distorção do que está fora da normalidade. De fato, na visão de Proust, só aprendemos realmente alguma coisa quando há um problema, quando sofremos, quando algo não sai como o esperado.

Embora possamos, obviamente, usar nossa mente sem estar em sofrimento, Proust sugere que somente quando mergulhamos na dor é que de fato estamos pronto para confrontar com o problema e nos tornamos apropriadamente inquisitivos na aflição.

Sofremos, por que muitas vezes negligenciamos, portanto pensamos, e o fazemos porque o pensamento nos ajuda a contextualizar a dor, a entender sua origem, a medir suas dimensões e a nos reconciliar com sua presença. “Portanto, não podemos julgar a legitimidade da dor alheia somente com base no que teríamos sentido se tivéssemos sido expostos à mesma situação.” (BOTTON, 1997. p ,52).

Fonte: https://goo.gl/o3JeVX

Segundo o dicionário “Informal” a palavra amigo significa: aquele que quer bem, aquele com quem podemos contar a qualquer hora. Para cada pessoa pode haver um significado diferente, atribuições distintas, do que é ser um amigo, tornando-se uma questão subjetiva. Em Botton (1997) Proust declara o que é ser um bom amigo, apresentando sua opinião de como se apresentar amigável. Mesmo que parecesse ser contraditório, pois para alguns as suas opiniões sobre o assunto são duras e sinceras, ele chega a afirmar que é preferível escrever um livro a ser um amigo, pois com o livro pode haver mais sinceridade em detrimento a amizade.

Em Proust havia uma mistura entre sinceridade e tentar agradar as pessoas, pois mesmo tendo um grau elevado de sensibilidade ao ser sincero, o seu maior temor era não agradar. Esforçava-se em demasia para que as pessoas se sentissem bem em sua presença, o seu maior interesse era ser aprovado. Agradava tanto que conversava assuntos de interesse alheios sem se importar se seus seriam falados ou não, pois para ele era egoísmo falar somente assuntos próprios.

Karnal (2016) cita que a amizade pode ser um desafio, pois ser amigo é observar-se num espelho pouco generoso, os amigos nos conhecem, sem se importar no que os outros pensam. Eles nos amam, mas não sabemos se nos amam apesar de nos conhecer ou por nos conhecer. Karnal ainda afirma que a amizade é entregar-se a um trajeto de apoio e intimidade. Proust achava ser também desafiador, pois mesmo sendo sincero, no sentido de falar realmente o que pensa, e tendo pensamentos radicalmente verdadeiros sobre seus amigos, não os podia falar; sendo assim preferia apenas ser agradável e apoiar seus muitos amigos.

Abrir os olhos no sentido literal e físico é levantar as pálpebras e ver o que tem a sua frente. Ver as coisas para Proust em Botton (1997) é enxergar a perfeição e a riqueza das pequenas e muitas vezes insignificantes coisas da vida, aquelas que podem nos dar tédio e serem menosprezadas por nós.

. Proust prezava a importância do segundo olhar sobre as coisas, independentemente se era uma valiosíssima obra de arte, ou um detalhe de uma cozinha. Para o autor, a vida pode se tornar infeliz pela simples incapacidade de abrir os olhos e dar chance a uma segunda visão.

As circunstâncias que propiciam o estado de felicidade são transitórias. Ao se interligar o conceito de felicidade e relacionamentos amorosos percebe-se que há uma busca constante pelo eterno e duradouro nas relações, porém, o ser humano tem dificuldade em manter algo depois de conquistado. Botton (1997) diz “Se um longo relacionamento […] gera […] uma sensação de conhecer bem demais essa pessoa, o problema pode, ironicamente, ser que não a conhecemos suficientemente bem”.

Bauman (2004) retrata “a misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, (…)”. Em uma sociedade permeada pelo imediatismo, os sujeitos nela inseridos acabam entrando nessa dinâmica, onde os laços humanos são afetados.

Uma característica marcante da contemporaneidade é a liquidez nas relações humanas. As pessoas almejam pela facilidade, pelo caminho mais rápido, porém, quando estas alcançam o objeto desejado não desfrutam com a mesma intensidade que usufruem quando há sacrifícios, luta, esforços.

O autor traz em sua essência o seguinte pensamento “(…) é impossível amar alguém fisicamente” (BOTTON, 1997). Relacionar-se com alguém vai além de contato físico, e talvez por este motivo, muitos relacionamentos tenham se tornado passageiros, pois se apegam somente à atração física.

Tendo em conta que os relacionamentos virtuais vêm ganhando espaço pela facilidade de construir e romper laços, Bauman (2004) ressalta “Diferentemente dos “relacionamentos reais” é fácil entrar e sair dos “relacionamentos virtuais”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear”.

Desse modo, a busca por algo duradouro tem se tornado uma tarefa difícil, pois demanda tempo, disposição, manutenção do objeto conquistado e tudo isso requer trabalho. Para Alain de Botton (1997) o segredo que há em relacionamentos duradouros é “a infelicidade. Não o ato em si, mas sua ameaça. Para Proust, uma injeção de ciúme é a única coisa capaz de resgatar um relacionamento arruinado pelo hábito”.

Fonte: https://goo.gl/YZEwbg

Todo o livro é dividido em diversas partes que fazem alusão a áreas da vida nas quais uma pessoa pode intervir, mudar sua vida e “encontrar felicidade”. Porém, escrito pelo irônico Alain de Botton, não poderia deixar de ser controverso e instigante. Durante a leitura, nos deparamos com fatos (não tão) confiáveis sobre a vida de Proust e observações bem humoradas sobre desde como ler para si mesmo até como abandonar os livros.

Talvez Botton quisesse nos beliscar com um livro aparentemente tão despropositado. Ou talvez quisesse nos instigar a pensar em como o propósito das coisas está a definir para cada um. Não importa. Ou importa tanto que foi necessário colocar o nome Proust em um título tão caricato, para atiçar os que ainda caem no conto da autoajuda a perceberem pequenas alegrias em meio ao desafio de viver.

Sabemos, tão somente, que a perspectiva da perda da vida, ou de prazeres (aparentemente) tão banais quanto “abrir os olhos”, nos abre um leque de possibilidades. Possibilidades de explorar o conhecido, de re-revirar (essa palavra não existe, caro leitor) o já revisto e ir além, tocar o não sabido, sair da “zona de conforto” (que clichê, senhores) e mudar a vida. Talvez não seja uma mudança tão drástica, mas talvez seja a mudança que faça a diferença entre morrer e escolher viver diante de uma crise que pareça insuperável.

Que morramos de amor, de raiva, de desejo, de tédio. Que morramos mil vezes e renasçamos prontos para outras escolhas, outras pessoas, outros caminhos… Mas sem perder a capacidade de se refazer, de se reconstruir e reaprender. Por que a capacidade já contida em nós, de abandonar um livro chato (ou esse artigo até bem intencionado), pode ser potencializada para abandonarmos (pode ser lentamente, sem pressa, despacito) o que nos machuca e entender que haverão sim, outras oportunidades de ser feliz. Sobreviva.

Referências 

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

BOTTON, Alain. Como Proust pode mudar sua vida. Rio de Janeiro, 1997.

KARNAL, Leandro. Leandro carnal disseca a amizade, 2016. Disponível em: <http://ocontornodasombra.blogspot.com.br/2016/08/leandro-karnal-disseca-amizade.html>

http://www.dicionarioinformal.com.br/amigo/

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Reflexões sobre as novas relações de trabalho

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No dia 05 de maio de 2017 aconteceu na sala 203, a partir das 8h o Psicologia em Debate com o seguinte tema “Relações de trabalho e corrosão do caráter em Sennett” apresentado pelos acadêmicos de Psicologia do CEULP Erismar Araújo e Fabrício Veríssimo. A princípio foi abordada a definição de corrosão, ou seja, o ato ou efeito de corroer que segundo o dicionário genérico é o desgaste gradual de um corpo qualquer que sofre transformação química e/ou física, proveniente de uma interação com o meio ambiente. Foi abordada também a definição geológica: destruição de rochas devido à decomposição química realizada por água salina ou doce; química: transformação química de metais ou ligas em óxidos, hidróxidos etc., por processos de oxidação pelo contato com agentes como o oxigênio, umidade.

Fonte: http://zip.net/bstKtb

Em seguida foram explanadas questões biológicas, religiosas e psicológicas a cerca do caráter (formação moral) sendo respectivamente: aspecto morfológico ou fisiológico utilizado para distinguir indivíduos em uma espécie ou espécies entre si (marca a mesma espécie), indicadores gerais sobre condutas (deveres) e conjunto coerente de respostas dadas por um indivíduo a uma série de testes e que permite, por comparação estática, situá-la numa categoria determinada.

Adentrando mais ao tema vimos sobre a dinâmica entre capitalismo versus rotina versus natureza flexível, onde o trabalhador disciplinado é aquele que se preocupa com o trabalho, têm uma rotina a seguir, relações duráveis devido à maior estabilidade no ambiente de trabalho e gosta de estar inserido nesse meio, já o trabalhador flexível tem uma visão de articular melhor com o outro, diante das mudanças no mundo de trabalho, sendo passível de mudança e estabelecendo relações menos duráveis.

Assim, tal dinâmica remete a questão de como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? O que nos leva a seguinte conclusão, de que os dois modelos (disciplinado e flexível) se encaixam ao modelo de vida que levamos hoje (capitalismo). Ou seja, temos uma “certa” rotina, porém buscamos uma flexibilidade no trabalho, como por exemplo, o flexitempo, que é quando procuramos criar tempo e alimentar as demais áreas da nossa vida, criando assim uma dinâmica favorável.

Fonte: http://zip.net/bctJ3T

Por fim, entramos na ética do trabalho em que tal dinâmica: disciplina e flexibilidade diante do capitalismo podem levar a uma desorganização do tempo, o trabalho em equipe quando não bem estruturado é afetado, a autodisciplina e automodelação dentro das empresas acarretam na individualidade do sujeito e uma competição a fim de atingir metas impostas, o ambiente de trabalho visto como polivalentes e adaptáveis as circunstâncias (sujeito passivo) e a ética protestante levando o indivíduo a ter o trabalho como foco principal na sua vida. Logo, a relação de trabalho que é toda essa dinâmica vista, pode influenciar na corrosão do caráter do sujeito, moldando-o para operar junto ao capitalismo, toda essa corrosão pode levar o sujeito ao adoecimento psíquico, adquirindo algum tipo de psicopatologia ao longo da vida.

REFERÊNCIA:

SENNET Richard. A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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Flor do Deserto: o dia que mudou a vida de Waris Dirie

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Nascida numa família nômade no deserto da Somália em 1965, a modelo de renome internacional, fundadora de uma organização que leva o seu nome e embaixadora da ONU na luta contra a prática de mutilação genital feminina, Waris Dirie que significa Flor do Deserto tem sua vida narrada no livro e filme chamado Flor do Deserto. Uma história de muita dor, sofrimento, fome, determinação e luta por sobrevivência.

Mutilada aos cinco anos, em uma situação de pudor e dor: “Senti, depois, minha carne, meu órgão genital ser cortado. Eu podia ouvir o ruído da lâmina cega entrando e saindo da minha pele. Quando penso, sinceramente, não consigo acreditar que isso acontecera comigo. (…) “Por favor, meu Deus, faça isso terminar logo”. E ele fez, pois desmaiei.” (apud Fachin, 2012) Ela fugiu aos treze de um casamento arranjado pelos pais e atravessou o deserto rumo a Mogadíscio e depois para Londres em busca de uma vida melhor.

Waris Dirie (Liya Kebede) e Marylin (Sally Hawkins).
Waris Dirie (Liya Kebede) e Marylin (Sally Hawkins).

A prática é difundida culturalmente até hoje, de acordo com os dados da ONU, esse tipo de intervenção ainda acontece em 30 países espalhados por três continentes. Estimativas indicam que 200 milhões de mulheres e meninas teriam sido vítimas dessa forma de mutilação. A organização tem uma campanha contra a prática, que considera prejudicial à saúde da mulher e uma violação dos direitos humanos (Sanchez, 2010).

Nas ruas de Londres encontra uma mulher chamada Marylin que logo se torna sua colega de quarto, e com ajuda dela passa a trabalhar como faxineira em uma lanchonete. Certa vez Waris se deparou com uma cena de sexo e descobre que sua amiga não era “cortada”, tal cena remete a uma reflexão, pois houve um diálogo entre ambas (de culturas diferentes) que é visível a presença do respeito e da tolerância abrindo mão do etnocentrismo.

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Logo em seu ambiente de trabalho conheceu um fotógrafo famoso Terence Donovan que já observava a sua beleza, convidou para fazer fotos e a lançou no mundo como modelo. Waries usou sua fama como objeto para tornar a prática da mutilação genital feminina conhecida no mundo todo, e difundir a ideia de que essa cultura precisa ser erradicada através do seu discurso que chegou até a ONU.

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Waries deu voz a uma prática que viola os direitos humanos e traz riscos de vida, a mesma retrata indignação em uma entrevista ao G1: “É uma vergonha que uma tortura bárbara, cruel e inútil continue a existir no século XXI”. Dirie diz que sempre sentiu que aquilo não estava certo e quando se tornou uma ‘supermodelo’ pode começar a luta contra a prática. (Sanchez, 2010) Exemplo de revolução e determinação que marca a história de pessoas que lutaram pelos direitos das mulheres.

REFERÊNCIAS:

Sanchez,G. ‘É impossível descrever a dor’, diz modelo sobre circuncisão feminina. G1, São Paulo, 03 de jul. de 2010. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/07/e-impossivel-descrever-dor-diz-modelo-sobre-circuncisao-feminina.html>. Acesso em: 08 de mar. de 2017.

Fachin, M. G. “Flor do Deserto”- Ponderações sobre arte, direitos humanos e cultura. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais, Curitiba, 2012. Disponível em: <http://revistas.unibrasil.com.br/cadernosdireito/index.php/direito/article/view/811>. Acesso em: 08 de mar. de 2017.

ONUBR. Em dia internacional, ONU pede mais esforços pelo fim da mutilação genital feminina. ONUBR Nações Unidas no Brasil, 06 de fev. de 2017. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/em-dia-internacional-onu-pede-mais-esforcos-pelo-fim-da-mutilacao-genital-feminina/>. Acesso em: 08 de mar. de 2017.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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FLOR DO DESERTO

Diretor: Sherry Hormann
Elenco: Liya Kebede, Sally Hawkins, Timothy Spall, Anthony Mackie
Ano: 2009
País: EUA
Classificação: 14

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