Mulheres trans e mercado de trabalho, como é essa relação?

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Todos os anos comemora-se o dia do trabalhador. Uma data que surgiu em decorrência da greve operária que ocorreu em Chicago, nos Estados Unidos, em 1º de maio de 1886, contra o sistema vigente à época, à favor de melhores condições de trabalho. Mas será que essa luta por dignidade humana e justiça ainda existe? Como esse sentimento de injustiça se apresenta hodiernamente? Qual será a luta atual?

Atualmente, encontramos discursos de dificuldade e muitos desafios encontrados pelas mulheres ao tentarem se inserir e permanecer no mercado formal de trabalho. Um dos obstáculos é o preconceito e a discriminação em relação à diversidade sexual e de gênero no contexto social e de trabalho, considerado um fenômeno corriqueiro no cotidiano. A luta em favor de melhores condições de trabalho precisa se estender ao combate ao preconceito contra as mulheres trans.

Recentemente, o Centro Universitário Luterano de Palmas, intermediado pelo Professor e psicólogo Sonielson Luciano de Sousa – CRP 23/1853, promoveu o “Psicologia em Debate” (Projeto que envolve comunidade acadêmica e público em geral com os temas mais relevantes da Psicologia), em parceria com o (EN) CENA, Portal aberto ao compartilhamento de produções de narrativas textuais e imagéticas de professores, acadêmicos e usuários dos serviços de saúde que colaboram em diversos pontos (Narrativas, Cinema, TV e Literatura, Personagens, Séries, Comportamento e Galeria) com o debate sobre a violência simbólica contra a população LGBTQIAPN+.

Esse evento contém palestrantes e participantes do Miss Beleza Trans/Tocantins, que puderam contar suas experiências de luta, de frustrações, de medo e de desafios de ser mulher trans. Falou-se como se deu a ideia do concurso e o porquê, além da importância do Miss Trans para a visibilidade da causa, contando-se como ponto de partida as experiências sofridas de violência simbólica, velada, física e verbal. E nessa oportunidade de fala também relataram os obstáculos no campo profissional em decorrência do preconceito.

Tais mazelas sociais de violência sofrida pelo gênero feminino, que desbordam em dificuldades básicas em sobreviver, fazem com que: “muitas de nós não temos escolha, às vezes, a escolha é a prostituição. Eu paguei a minha faculdade com o dinheiro da prostituição, e mesmo formada, já fui demitida porque um pai não quis que o filho estudasse com uma professora Trans. E sem o apoio familiar e sem como poder se autossustentar, o caminho de muitas de nós é prostituição”. Contou uma das participantes do concurso.

E diante desses fenômenos sociais, culturais, políticos, econômico e além das circunstâncias do desemprego provocado pelo preconceito também há outras situações que as colocam em uma agravante situação de vulnerabilidade social diretamente ligada a outras demandas sociais, a exemplo da ausência e carência do acesso à educação, à profissionalização, à saúde, à assistência e à previdência social, assim como os demais direitos humanos, civis, políticos e sociais, que são prejudicados e que reverberam nas diversas dimensões da vida humana, não obstante parte da sociedade vem lutando contra tal sistema opressor.

O trabalho é um ambiente onde se confrontam, simultânea e dialeticamente, a relação consigo e com o outro, porque é o sujeito em seu ser que é convocado, com seus recursos, com suas capacidades e habilidades, mas também com suas motivações, seus desejos conscientes e inconscientes, seus traumas, suas frustrações e suas fantasias subjacentes a seu engajamento no trabalho. Assim, a ciência psicológica considera o trabalho importante, visto que é uma parte necessária da vida. Além da renda financeira, o trabalho tem outro propósito: dar significado à experiência humana. Portanto, a dimensão do trabalho é fundamental para empoderamento do sentimento de dignidade humana e do bem-estar físico, psicológico e social.

É importante ressaltar que um dos papéis da psicologia é contribuir politicamente, socialmente e psicologicamente na defesa das pessoas LGBTQIAPN+. Além disso, a psicologia visa colaborar no processo terapêutico individual por meio de diversas ferramentas e métodos, como a autorreflexão destinada à provocação do autoconhecimento, para que a pessoa possa se conhecer mais profundamente, a se compreender mais, acessar a sua real identidade e entender que faz parte da natureza humana a complexidade, instabilidade (mudança) e a intersubjetividade, considerando que o ser humano é singular e único.

Assim, a psicologia permite que o indivíduo, com a interlocução do psicólogo, organize os próprios pensamentos e ajude a identificar os fatores causadores da angústia e do sofrimento existencial. Em contrapartida, é uma prática reflexiva onde o profissional questiona a si mesmo, com a sua visão de mundo e suas ideologias, para avaliar se suas práticas estão alinhadas com os princípios fundamentais da ciência psicológica que é a promoção do bem-estar psicossocial do ser humano.

Um dos princípios fundamentais do Código de Ética do psicólogo é trabalhar visando a promoção à saúde e à qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuir com a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Dessa forma, as mulheres trans que enfrentam desafios e dificuldades de se inserirem no mercado formal de trabalho sofrem preconceito duplo – relacionado à orientação sexual e a limitação profissional. E o papel da psicologia é trabalhar contra a opressão; a limitação e adoecimento e a favor da autônima, da liberdade e do bem-estar.

Para tanto, o preconceito, a discriminação, assim como a violência perpetrada contra a comunidade LGBTQIAPN+, em razão de sua orientação sexual e/ ou identidade de gênero divergente do modelo heteronormativo, são fenômenos que colaboram para o desafio constante dessa população ao mercado formal de trabalho. Além disso, o preconceito, segundo Sílvio Almeida, filósofo, advogado e professor universitário e o atual Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, é consolidado ao longo de décadas na organização da sociedade ao privilegiar alguns em detrimento de outros. Logo, é um fenômeno maléfico e desagregador que desafia a sociedade.

Referências

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO PSICÓLOGO de 2005. Disponível em <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf> Acesso em 30 de outubro de 2023.

ERIKSON, Erik H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

NASCIMENTO, Ana Paula Leite; Menezes, Moisés Santos de; Oliveira; Antônio Carlos de. LGBT E MERCADO DE TRABALHO: UMA TRAJETÓRIA DE PRECONCEITOS E DISCRIMINAÇÕES. 2018. Disponível em < https://editorarealize.com.br/editora/ebooks/conqueer/2018/TRABALHO_EV106_MD1_SA7_ID186_04032018135735.pdf. Acesso 03 de novembro, 2023.

PAPALIA, D. E. e FELDMAN, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. Porto Alegre, Artmed, 12ª ed.

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Tereza Costa: o racismo estrutural deve ser combatido todos os dias

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O (En)Cena entrevista Tereza Costa, Pedagoga, Especialista em gestão de pessoas, acadêmica de psicologia e que atua como consultora em gestão de pessoas e qualidade. O objetivo da entrevista é possibilitar a reflexão o cotidiano dos efeitos do racismo, bem como, os modos de como ele se apresenta na vida de milhões de brasileiros, já que o país é o que tem a maior população de negros fora da África.

A entrevista enverada sobre a história do racismo, as repercussões na economia, no setor jurídico e nos mais diversos seguimentos da sociedade, assim como, o sofrimento psíquico e os prejuízos sociais. O racismo muitas vezes se manifesta de forma consciente e também inconsciente; sem contar naquelas expressões nas quais são usadas sem imaginar que sejam eivadas de racismo.

(En)Cena Todos os anos no dia 20 de novembro comemora-se o Dia da Consciência Negra. É uma data simbólica, mas também política, pra você Tereza, o que essa data representa?

Esse dia é sim uma data simbólica e um referencial político, mas também marca o dia da morte de Zumbi dos Palmares, que foi um líder Quilombola, mais especificamente do Quilombo dos Palmares, ele foi um dos maiores símbolos de resistência contra a escravidão em nosso país. E vejo esse dia como sendo uma oportunidade de fazer com que a sociedade em geral tenha a possibilidade de fazer uma reflexão sobre a contribuição do povo negro para a construção da sociedade brasileira, vejo também como sendo um meio para sensibilizar a sociedade sobre a importância de desenvolver a cultura de igualdade racial, e promover a conscientização sobre o racismo estrutural e institucional, além disso, é um momento para reivindicar direitos, denunciar as desigualdades enfrentadas por nós população negra bem como apresentar e debater políticas públicas que visem a inclusão e o combate ao racismo, tendo em vista que somos pessoas de deveres, mas devemos ser vistas também como pessoas com direitos, sendo que o direito e a dignidade humana deve ser mantida.

(En)Cena – Esse ano no Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA) promoveu o CAOS – Congresso de Acadêmico de saberes em Psicologia e Direitos Humanos, sobre isso você acha que um evento como esse pode contribuir para amenizar, através do conhecimento, o racismo estrutural?

Sim, eventos acadêmicos como o CAOS, Congresso de Acadêmicos de Saberes em Psicologia e Direitos Humanos, com certeza desempenham um papel crucial na luta contra o racismo estrutural. Iniciativas assim geraram espaço para a discussão sobre à psicologia, mas também sobre questões relacionadas aos direitos humanos, que inclui temas cruciais como o racismo e suas implicações. Os debates, apresentações e compartilhamento de conhecimento no CAOS, oferecem uma oportunidade valiosa para o processo de sensibilização dos participantes sobre as complexidades do racismo estrutural, sendo assim uma forma de possibilitar aos acadêmicos chance de ampliar a visão no que diz respeito ao racismo e a interseccionalidade entre a psicologia, os direitos humanos e as questões raciais, permitindo uma compreensão mais profunda das causas e impactos do racismo na sociedade. Com certeza todos que participaram tiveram a chance de ter sua a consciência elevada no que diz respeito ao entendimento sobre o racismo. Um congresso como esse com certeza contribui, na formação de profissionais mais capacitados e engajados na promoção da igualdade racial, o que gera a possibilidade de no futuro próximo, ter mais e melhores políticas públicas. Eventos semelhantes têm o potencial de desencadear mudanças significativas na mentalidade e nas práticas, sendo assim, representa um passo importante para amenizar o impacto do racismo estrutural por meio do conhecimento, da conscientização e por que não do engajamento ativo.

(En)Cena – Sabemos que durante 300 anos houve o racismo instituído pelo mundo e somente em 1888 institui-se a Lei Áurea, Lei n.º 3.353 de 13 de maio de 1888, concedendo a “liberdade” para os negros. De lá pra cá são 135 anos desde que ocorreu a formalização da “liberdade”. Os negros foram lançado a própria sorte, sem terra, sem trabalho e sem educação. Tereza, hoje os egressos do sistema penitenciário vive situações semelhantes aos que ocorreram lá atrás?

É gravíssima a situação que você descreveu e é de suma importância que a sociedade reconheça que os desafios enfrentados pelos negros ao longo da história, desde a escravidão até os dias atuais, são profundos, persistentes e acaba por deixar marcas na historicidade de cada indivíduo. É inegável que a abolição da escravidão, em 1888, não foi seguida por políticas eficazes de inclusão e acessórios para a população negra e por isso documentalmente a libertação aconteceu, porém estruturalmente a escravidão continuou, em função de não ter sido ofertado possibilidade de aquisição de conhecimento, bem como condições de dignas de trabalho.

E quando observamos a situação atual dos egressos do sistema penitenciário, podemos observar paralelos preocupantes com a história passada tendo em vista a repetição de muitos fatores. Muitos ex-detentos enfrentaram barreiras significativas ao tentar reconstruir suas vidas após o encarceramento, incluindo a falta de acesso a oportunidades de emprego, educação e moradia. Fica claro que algumas dessas dificuldades contribuam para a perpetuação do ciclo de pobreza, marginalização e reincidência no sistema criminoso. É necessário que a sociedade reconheça esses padrões e trabalhe para implementar políticas que promovam a igualdade de oportunidades, combate o preconceito.

(En)Cena – O Racismo Estrutural, segundo o professor universitário Silvio Almeida (2019), fornece matéria-prima necessária para a reprodução e manutenção de desigualdades e violências. Tereza o que você pensa sobre isso?

É de suma importância que seja considerado e compreendido o conceito de Racismo Estrutural, destacado pelo professor Silvio Almeida. Racismo não é apenas uma questão individual, mas uma estrutura que está inserida em diversas instituições e sistemas, moldando as relações sociais e contribuindo para a manutenção das desigualdades, jugo e violências enfrentadas pela comunidade negra. O racismo está incorporado nas estruturas da sociedade e isso significa que ele vai além de atitudes individuais com ações discriminatórias, está presente em políticas públicas, práticas institucionais, no mercado de trabalho e em diversas outras esferas, contribuindo para a manutenção de disparidades socioeconômicas e a marginalização. Combater o Racismo Estrutural requer uma abordagem abrangente e colaborativa, passando por uma transformação profunda nas bases da sociedade Mundial, porém cada um pode ir fazendo o que pode dentro do pequeno mundinho onde está inserido.

(En)Cena – Uma das consequências do efeito do racismo são os danos psicológicos, violência, discriminação e exclusão social, desigualdade econômica e social. Tereza, Você, como mulher negra, já experimentou alguma situação dessas?

Sim, como mulher negra, infelizmente, já experimentei diversas situações que refletem as consequências do racismo. A discriminação racial muitas vezes se manifesta de maneiras sutis e por vezes de forma explícita, impactando não apenas minha vida cotidiana, mas também meu bem-estar psicológico. A violência simbólica e estrutural do racismo deixa marcas profundas em nossa autoestima e em nossa saúde mental. Em minha vida cotidiana tenho enfrentado situações de discriminação das mais diversas formas, e isso por consequência por vezes gera em mim um estado de alerta e ansiedade, pois a possibilidade de ser julgada e tratada de maneira injusta apenas por minha cor de pele, é uma constante, outro ponto que gera ansiedade e a necessidade de estar todo o tempo tendo que provar que tenho tanta capacidade como uma pessoa que tem a pele “clara”. Por muito tempo eu tentei abafar dentro de mim essa ideia de que estava sendo vítima de algo tão grotesco como o racismo, fui tentando dar outro significado para tudo que ia enfrentando, muitas vezes ouvi de pessoas o seguinte comentário: ¨ela é preta, mas o serviço é de Branco”, ou a qualquer erro cometido: “preto é assim, quando não faz besteira na entrada, faz na saída”; muitas vezes busquei ressignificar e pensava, deixa para lá é só o modo dessa pessoa se expressar. É uma luta constante para superar barreiras que muitas vezes são impostas e eu para não ficar o tempo todo como a “vítima” da sociedade resolvi simplesmente ignorar olhares e comentários, não é fácil e não sei até onde vai funcionar, tendo em vista que a preconceitos está arraigados na sociedade.

Acredito que seja de suma, é importância aqui destacar que, apesar desses desafios, as experiências negativas não definem a totalidade da minha existência. Mulheres negras como eu, têm uma resiliência incrível, e muitas de nós continuam a lutar contra o racismo, buscando equidade, justiça e a construção de um futuro mais inclusivo para as gerações vindouras.

(En)Cena – Tereza, o racismo é o processo histórico e político em que são atribuídos vantagens sociais a certo grupos em desvantagem a outros grupos. Segundo Silva Almeida, o racismo é reproduzido e disseminado (enraizado) nas estrutura do Estado, no sistema jurídico, econômico.  Na sua visão, Tereza, o que a sociedade pode fazer para atenuar o racismo e por consequência o sofrimento humano.

É fundamental que consideremos o racismo como um problema complexo e enraizado em diversas instituições e estruturas sociais, o racismo traz consequenciais catastróficas e é necessário reduzir o sofrimento humano, para isso é necessário um esforço coletivo e mudanças em diferentes áreas. Talvez seja utópico meu pensamento, porém segue algumas sugestões; Combate mais ostensivo ao discurso de ódio, políticas públicas mais efetivas, diálogos mais construtivos e que gerem relevância, diante do tema racismo, apoio a Iniciativas Afro empreendedoras, Reforma no Sistema Jurídico, projetos mais consistentes de educação antirracista inclusiva e com iniciação cientifica.

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de; RIBEIRO, Djamila (Coord.). Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. 264 p. (Coleção Feminismos Plurais).

Dicionário Antirracista produzido pela Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA. Disponível em https://www.defensoria.ba.def.br/wp-content/uploads/2021/11/sanitize_191121-071539.pdf.

LEI Nº 14.532, DE 11 DE JANEIRO DE 2023 – Lei do crime racial.

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Como a bifobia pode repercutir na saúde mental do adolescente

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A adolescência é uma fase crucial e especial no processo de desenvolvimento físico, psicológico e social do indivíduo. Ela é considerada uma transição entre a infância e a idade adulta e é caracterizada por intenso crescimento e mudanças que se manifesta por marcantes transformações anatômicas, fisiológicas, psicológicas e sociais. É uma etapa na qual o indivíduo busca a identidade adulta, apoiando-se nas primeiras relações afetivas, já interiorizadas, que teve com seus familiares, ao observar a realidade que a sociedade lhe oferece.

É importante ressaltar que a identidade do adolescente ainda está em processo de construção. A identidade, segundo Erikson (1972), forma-se quando os jovens resolvem três questões importantes: a escolha de uma ocupação, a adoção de valores sob os quais vivem e o desenvolvimento de uma identidade sexual satisfatória. No entanto, a identidade sexual satisfatória é, às vezes, negligenciada pela família e pela sociedade que não aceita e nem acolhe a orientação sexual diferente daquela construída socialmente.

E quando o adolescente se apresenta como bissexual, surge um desafio ainda maior, porque, muitas vezes, enfrenta conflitos internos, especialmente as dificuldades familiares e sociais, quanto à aceitação de sua orientação sexual. Tal ponto pode traumatizar, adoecer e dificultar a transição do adolescente para a vida adulta.

Mas o que é a bifobia? É o ato de deslegitimar a sexualidade de alguém que é bissexual. É agredir verbalmente ou fisicamente por sua condição existencial de ser. É qualquer reação de ódio ou aversão contra a pessoa bissexual. É aquela pessoa que não sabe respeitar e acolher a orientação sexual de outrem.

Segundo alguns estudiosos, entre eles a sexóloga e psiquiatra, Dra. Carmita Abdo: a “sexualidade é o principal polo estruturante da personalidade e da identidade”. Dito isso, é oportuno diferenciar sexo de sexualidade. Ainda de acordo com a Dr. Carmita, sexo não necessariamente é atividade sexual, mas é libido. É a força que nos põe na cama e a energia que nos tira dela. A energia libidinal que nos faz ter interesse no sexo é a mesma que nos dá interesse pela vida. Tais referências são retiradas do livro “Sexualidade Humana e Seus Transtornos”.

Quando alguém age de forma desrespeitosa contra outra pessoa, em especial um adolescente, por causa de sua orientação sexual, como no caso em voga, os bissexuais, essa pessoa está corroborando com o adoecimento psíquico e ofuscando a identidade de daquele que está em processo de desenvolvimento psicossocial, trazendo consequências em sua autoestima, em sua autoconfiança. Em casos mais graves, tais atitudes desencadeiam depressão, ansiedade ou outros transtornos psiquiátricos, emocionais, psicológicos e até provocando o suicídio em alguém. Portanto, é grave o efeito do preconceito na vida de quem não enquadra nas crenças construídas culturalmente pela sociedade.

 E o que é o preconceito? É um pré-julgamento. Veja o prefixo “pré” que significa “antes de”. É um juízo de valor formulado de forma antecipada, baseando-se em estereótipos ou generalizações que podem resultar em atos de discriminação, agressões físicas ou verbais, psicológicas e emocionais. No caso em questão, a identidade do adolescente e sua personalidade também são afetadas por atitudes desrespeitosas. Há vários tipos de preconceitos em nossa sociedade como a condição social, nacionalidade ou de origem, orientação sexual, identidade de gênero, etnia, raça e sotaque.

A UNESCO em 2018 conceituou a sexualidade como uma dimensão do ser humano, incluindo: a compreensão do corpo e a relação com ele, além do apego emocional e amor, sexo, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, intimidade sexual, prazer e reprodução. Sua complexidade envolve dimensões de ordem biológica, social, psicológica, espiritual, religiosa, politica, legal, histórica, ética e cultural, que evoluem ao longo da vida. Por consequência, o adolescente em processo de desenvolvimento, ao se afastar de si, de sua essência, de um dos pilares de sua existência humana, dificilmente seguirá com a saúde mental saudável.

Na prática clínica, como estudante de psicologia, em período de estágio, escutei casos em que o pré-adolescente, de determinada idade, passou por fases confusas tentando se encaixar, pois a sociedade adulta exige que se escolha apenas um sexo. E depois passou a viver em um relacionamento hétero afetivo porque era o “certo”, mas com o tempo foi tendo clareza de sua orientação sexual homoafetiva, embora a família preferisse o seu envolvimento com o sexo oposto. Na escuta clínica, escutei, também, discursos de pacientes em que a família prefere o relacionamento afetivo com sexo oposto a se relacionar com alguém do mesmo sexo ou com ambos os sexos, no caso os bissexuais.

Acredita-se que a informação e a educação sejam uma forte “arma” para combater a bifobia ou qualquer outro tipo de preconceito. A educação sexual é algo que deveria ser incorporado na grade curricular das escolas e faculdades, tendo em vista que é um dos pilares da personalidade e na consolidação da identidade do ser humano em desenvolvimento. A educação sexual previne diversos abusos, educa a sociedade quanto à diversidade sexual e reforça a saúde mental, em especial daqueles que estão em desenvolvimento. O respeito é ensinado desde o núcleo familiar primário e repercute em todas as espera da sociedade, sendo a escola e a universidade complementares nessa tarefa de educar o ser humano.

A Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, estabelece que: “Art. 2º A criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha. Art. 3º Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento, às quais o Estado, a família e a sociedade devem assegurar a fruição dos direitos fundamentais com absoluta prioridade”.

Portanto, o adolescente vive as mudanças e transformações que lhes são próprias da faixa etária, mas os bissexuais que, por vezes, não se encaixam dentro do que esperado pela sociedade ou pela família, passam por inúmeros sofrimentos ou prejuízos em todas as espera da vida. Assim, por preconceito social ou pela interpretação equivocada da família, que acreditam que a pessoa que se atrai por ambos os sexos é indecisa ou promíscua, estão potencializando os danos à saúde mental. Além dos fatores externos, alguns se recolhem em si, por vergonha ou até mesmo autopreconceito e não conseguem se expressar, de forma pública ou privada, a sua orientação sexual, necessitando assim, de auxílio especializado para tanto.

Referências:

Aspectos da sexualidade na adolescência – disponível em: .https://www.scielo.br/j/csc/a/frXq7n3jXMmhzSmJqRWPwnL/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 11 de outubro de 2023.

ERIKSON, Erik H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

PAPALIA, D. E. e FELDMAN, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. Porto Alegre, Artmed, 12ª ed.

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O Alienista: um olhar psicológico

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O personagem Simão Bacamarte, protagonista da obra “O Alienista” de Machado de Assis, foi um médico formado na Europa, agudamente dedicado à ciência e detentor de grande apreço pelo povoado de Itaguaí.

Casou-se com a Dona Evarista da Costa Mascarenhas, que, aos olhos de alguns, era feia, mas que se encaixava aos requisitos do médico, especialmente para evitar distrações e dedicar-se mais aos estudos. Dona Evarista possuía atributos fisiológicos considerados pelo médico como perfeitos, o que poderia dar-lhe filhos saudáveis, o que, infelizmente, não aconteceu.

O Doutor Simão Bacamarte, auspicioso e fã da medicina psicológica, idealizou a construção de uma casa para reunir todos os loucos da cidade para tratamento psiquiátrico. Segundo o médico, os doentes mentais mais graves de Itaguaí estavam vivendo enclausurados em seus quartos e outros viviam ao relento. A cidade não possuía uma instituição que pudesse acolhê-los com a finalidade de oferecer-lhes um tratamento digno e adequando às demandas individuais.

O Padre Lopes desconfiava de uma possível insanidade mental do Alienista e propôs à Dona Evarista que o levasse à cidade fluminense para se distrair com outras coisas. Contudo, Simão Bacamarte se impôs e recusou ao convite.

O médico endossou o movimento em prol da construção da casa destinada à Saúde Mental daqueles que, segundo alguns critérios dele – desvio de comportamento, necessitavam serem recolhidos e submetidos a tratamento psiquiátrico, conforme o grau da patologia. E essa ação se iniciou com o discurso na Câmara de Vereadores da Cidade Itaguaí, mobilizando os vereadores e defendendo recursos para a Construção da casa. Após conseguir apoio e verba da Câmara de Vereadores, Simão Bacamarte a inaugurou, mediante uma festa que durou uma semana. Assim, a casa foi batizada de Casa Verde, primeiro hospício da cidade. Os loucos vinham de Itaguaí e arredores e tinham variadas manias. O alienista estudou com acuidade cada transtorno, classificando-os e prescrevendo terapias.

Em decorrência de seu estudo e de sua experiência, o Doutor Simão Bacamarte formulou uma teoria considerada revolucionária e convidou Crispim Soares para conhecê-la. A pesquisa com os doentes mentais o levou a considerar que a loucura era abrangente e só poderiam ser considerados sãos os que não tinham desvio de comportamento.

Diante dessa constatação e das observações Clínicas, Simão Bacamarte implementou, aos poucos, uma cultura de internações. Tal situação despertou nos cidadãos de Itaguaí indignação e revolta. Consternados, movimentam-se contra o médico, sendo a “gota d’água” a internação de um homem afortunado que não soube administrar seus bens, reduzindo-se à miséria. O referido descuido foi interpretado pelo Doutor Simão como um indício de loucura, caracterizado por um desequilíbrio mental. Essa situação e outras semelhantes fizeram com que os ânimos da população local se exaltassem, ao desconfiarem de que as internações tinham cunho pessoal em contraponto às patologias cerebrais.

Mas a manifestação liderada pelo barbeiro Porfírio, conhecida como “Revolta da Canjica”, continuou. Cerca de trinta pessoas fizeram uma representação na Câmara de Vereadores, que, por consequência, a recusou, ao declarar que a casa era Instituição Pública e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua. Recomendou, portanto: “Voltai ao trabalho, concluiu o Presidente, é o conselho que vos damos”. A irritação e indignação entre os moradores cresciam à medida que se iniciou uma ameaça de levantar a bandeira da rebelião contra a Casa Verde. Eles acreditavam que lá havia um laboratório de cadáver e que servia de estudo e experiências de um déspota.

Além das suspeitas de a Casa ser um depósito de cadáveres, os revolucionários acreditavam que havia muitas pessoas estimáveis, algumas distintas, outras humildes, mas dignas de apreço e que não mereciam viver reclusas à própria sorte. Desconfiavam, ainda, que o despotismo científico do alienista sobrevinha do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos loucos não eram tratados de forma gratuita, sendo que, subsidiariamente, a Câmara pagava ao alienista o suposto tratamento.

Em retrospecto, diante do suposto encarceramento arbitrário conduzido por Simão Bacamarte, o barbeiro Porfírio liderou uma revolta contra a Casa Verde reunindo e mobilizando a população para solicitar à Câmara o fim da instituição, mas os vereadores defendeu o médico. E o alienista logo cuidou de se pronunciar diante dos descontentamentos da comunidade local e fez um discurso: “Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes”.

Por outro lado, um de seus adversários (babeiro Porfírio) reagiu em meio à multidão, ao discurso: “Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno”. Porfírio estava quase a ordenar o ataque à Casa Verde quando chegaram os saldados do governo para detê-lo, mas, apesar de todo o alvoroço pela sociedade local, as internações continuaram.

Como se não bastasse a metade das pessoas de Itaguaí ter sido recolhida à Casa, Dr. Bacamarte, sob o argumento de inconstância no comportamento, recolhe os representantes das manifestações, o Senhor Barbeiro Porfírio e Boticário Crispim. Mas ainda assim a coleta de loucos pelas ruas não parava: qualquer caso de mentira, de vício, de inconstância no comportamento eram critérios para a internação. O Doutor passou a desconfiar da própria esposa diante de supostos sintomas de loucura e relata os indícios de loucura ao Padre Lopes: – certo dia de manhã — dia em que a Câmara devia dar um grande baile, — a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista ingressou na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era. Dona Evarista foi recolhida às duas horas da noite.

Os sintomas de Dona Evarista, segundo o médico, era a inconstância em relação aos objetos, como furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas. Ela se propôs em fazer anualmente um vestido para a Nossa Senhora da matriz, o qual reputou como sintoma grave de insanidade mental. O médico relata ao Padre Lopes a total demência da esposa. “Ela tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira”. Veja bem, “Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa. – Que tem? perguntei-lhe. – Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito!—Pois leve o de safira.—Ah! mas onde fica o de granada?—Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo à Casa”.

 Doutor Bacamarte refutou a própria teoria que inicialmente acreditou que a loucura era qualquer desequilíbrio mental, situação em que um quinto dos cidadãos foram internados, sob tal argumento. Baseado nos novos estudos feito durante a constância da primeira teoria, o Alienista concluiu que a loucura real estaria naqueles que possuíam uma estabilidade psicológica absoluta e que esse sim é quem deveria ser internado na Casa Verde.

Com o novo conceito de loucura, o equilíbrio perfeito das faculdades mentais, a Câmara resolveu legislar sobre o assunto para evitar algum excesso nas internações e incluiu uma regra que impedia que eles, os vereadores, fossem internados na Casa-Verde. Com o apoio da Câmara, o Alienista passou a prescrever terapias que levava o recluso ao desequilíbrio mental. No entanto, o cientista percebeu que a cura propiciada por seus tratamentos apenas despertou um desequilíbrio latente em si. Por fim, ele se declarou alienado e internou-se solitário na Casa Verde.

Referências

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: FTD, 1994. (Grandes leituras).

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“Como estrelas na terra” – toda criança é especial

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Como Estrelas na Terra é um drama que retrata a exclusão social em face do que é diferente. Tal temática ainda é presente e traz sofrimento em todas as dimensões da vida, o que torna a referida obra cinematográfica comovente e atual, muito embora tenha sido lançada em 2007.

A falta de sensibilidade humana, o desconhecimento em relação à saúde mental e o desenvolvimento humano, a rigidez de determinadas personalidades, a surdez de algumas pessoas (profissionais) resvalam, por vezes, em intenso sofrimento, potencializado quando o tratamento de determinados transtornos é retardado, destruindo a autoestima daqueles que “gritam” por socorro.

 A narrativa central acontece no interior de uma escola de ensino fundamental, especialmente nas brincadeiras de futebol com o protagonista, Ishaan Awasth, de dez anos idade, que sofre de dislexia.

O desconhecimento daqueles que o cercam quanto aos verdadeiros motivos do déficit de aprendizagem levam o personagem a apresentar reações que potencializam as suas dificuldades, como a rebeldia no comportamento, a tristeza e o isolamento, sem olvidar de todo o sofrimento psicológico, emocional, neurológico e social de Ishaan.

A dislexia se configura em um distúrbio genético que embaralha o aprendizado, dificultando a realização da leitura e da escrita. O cérebro, por razões ainda não totalmente esclarecidas, apresenta dificuldade para encadear as letras e formar as palavras, e não relaciona direito os sons às sílabas formadas. Ishaan Awasth sentia angústia porque não conseguia aprender a escrever e nem a ler, quando comparado aos demais alunos.

 O cérebro do menino não diferenciava algumas letras do alfabeto. Ele trocava o “B” pelo “D”; o “R” pelo “S”; e o “H” pelo “T”. Fazia confusão na ordem de certas letras. Essa condição disléxica pode ser identificada durante a leitura, observada na escrita e no processo de soletração das palavras, considerando que é essencial, na aprendizagem, relacionar sons com os símbolos (objetos) e saber o significado deles. Ishaan Awasth padecia dessa habilidade básica que facilita o desenvolvimento do aprendizado.

                                                                                     Fonte: https://www.jornaldafranca.com.br/

Ishaan Awasth vivencia o sentimento de humilhação, de vergonha, de constrangimento, de Billings, quando posto de castigo e tudo isso é vivido com frequência e sentido por ele com intensidade.

Tais fatos ocorriam na escola, no seio familiar e nas brincadeiras de criança, fazendo com que, em decorrência das dificuldades mencionadas, suplantavam situações em que o coloca em desigualdade em relação aos cérebros das crianças da mesma idade que não tinham tal condição neurológica.

 Houve uma situação na qual a professora solicitou ao estudante Ishaan que realizasse uma leitura em sala de aula em tom de voz que todos os presentes pudessem ouvi-lo. O garoto tentou explicar à professora que “as letras estavam dançando”. Em razão disso, as risadas tomaram contam da turma e a professora se irritava e ordenava para Ishaan que “lesse as letras dançarinas”. Devido ao transtorno neurológico, Ishaan não conseguiu fazer a leitura e foi tachado pejorativamente de “burro”, “retardado”, “preguiçoso” e, logo após, expulso da sala de aula.

A direção da escola, sem a expertise necessária para entender o real problema de Ishaan, que não se tratava de indisciplina, mas sim, de um transtorno neurológico (dislexia), chamou os pais do garoto para uma reunião. Entre as falas, disse aos genitores que “algumas crianças têm menos sorte e para elas existem escolas especiais”. E informou, ainda, que Ishaan vê os livros como inimigos e que o ato de ler e escrever se assemelha, para ele, a uma punição. Justificou, ainda, aos responsáveis, que a criança pede licença o tempo todo para ir ao banheiro e que as atividades dela, tanto escolar quanto as tarefas de casa, não melhoravam, indicando-o a transferência.

A família anunciou a Ishaan sobre a mudança de escola. E como era “rebelde”, iria para um internato, causando-o angústia, pesadelos e sofrimento. Suplicava-os para deixar em casa! Fazia promessa de melhorar, mas sem o seu consentimento, seus pais o levaram, sob o argumento de que era o “melhor” a ser feito. Foi para o colégio interno cujo lema é “Disciplinar Cavalos Selvagens”. Chegando lá, sentiu falta da mãe, do irmão, da casa, da rotina familiar, de tudo. Acometeu-se de uma imensa tristeza, de uma falta de ânimo, de um isolamento social, de um desinteresse generalizado.

Durante aula de artes, o professor da disciplina se apresentou aos alunos de forma criativa, sensível, observador e atento, dançando e cantando. Em determinado momento, ele solicitou que os alunos iniciassem uma pintura. Todos começaram, mas Ishaan não se animou. O educador logo percebeu o desinteresse e a falta de ânimo do garoto e ficou preocupado. E a partir de então, iniciou uma investigação e percebeu um padrão de escrita incomum, o que o levou a concluir que se tratava de um transtorno neurológico – dislexia.

                                                                                                           Fonte: https://www.netflix.com/br

 Ishaan estava com a sua autoconfiança destruída e sem vontade de fazer suas atividades. O educador ampliou várias possibilidades criativas para desenvolver a aprendizagem do menino e, por consequência, a sua autoestima. Os sinais de melhora logo começaram a aparecer, como uma rosa murcha que recebe água.

É interessante ressaltar que a melhora do garoto não se deu devido ao fato da descoberta do transtorno, mas em decorrência da metodologia usada, da paciência, da sensibilidade, da criatividade, do respeito e de muita vontade de ajudá-lo, de erguê-lo e dar vida ao menino, valorizando a habilidade de pintura de Ishaan – algo em comum entre o professor e aluno.

Pertinente ressaltar que o educador, para trabalhar a autoestima do menino, apresentou grandes referências mundiais de personagens históricos, que apesar do transtorno, obtiveram sucesso, como: Albert Einstein, Agatha Christie, Pablo Picasso e Leonardo da Vinci. Para o processo de aprendizagem, em relação à escrita, utilizou-se dos sentidos – a própria pele, audição, tato, olfato. Usava o meio ambiente, a arte, associava o símbolo ao objeto, tudo para que Ishaan absorvesse e aprendesse de forma a suprir exatamente a sua necessidade de aprender, de forma leve, criativa e dinâmica. Um verdadeiro exemplo de empatia e amor.

De acordo com a Associação Brasileira de Dislexia (2016), o transtorno é considerado específico de aprendizagem e é de origem neurobiológica, caracteriza-se por dificuldade no reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração.

Há pouco tempo criou-se a Lei nº 14.254/2021, que dispõe sobre o acompanhamento integral para educandos com dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou outro transtorno de aprendizagem.

No artigo 3º da referida Lei, subscreve-se que os educandos com dislexia, TDAH ou outro transtorno de aprendizagem que apresentam alterações no desenvolvimento da leitura e da escrita, ou instabilidade na atenção, que repercutam na aprendizagem, devem ter assegurado o acompanhamento específico direcionado à sua dificuldade, da forma mais precoce possível, pelos seus educadores no âmbito da escola em que estão matriculados e podem contar com o apoio e orientação da área de saúde, de assistência social e de outras políticas públicas existentes no território.

Percebe-se que a elaboração da Lei foi um passo importante para iniciar a mudança, mas ainda precisa de outras ações para que ocorra a alteração de paradigma para que de fato a inclusão social aconteça na prática. Exige-se esforço, empenho, dedicação, pesquisa, estudo e os recursos em todos os níveis, além da adequação da estrutura física e da adaptação à realidade.

 

Os possíveis sinais — Alguns sinais na pré-escola

  • Dispersão;
  • Fraco desenvolvimento da atenção;
  • Atraso do desenvolvimento da fala e da linguagem;
  • Dificuldade de aprender rimas e canções;
  • Fraco desenvolvimento da coordenação motora;
  • Dificuldade com quebra-cabeças;
  • Falta de interesse por livros impressos

Alguns sinais na idade escolar

  • Dificuldade na aquisição e automação da leitura e da escrita;
  • Pobre conhecimento de rima (sons iguais no final das palavras) e aliteração (sons iguais no início das palavras);
  • Desatenção e dispersão;
  • Dificuldade em copiar de livros e da lousa;
  • Dificuldade na coordenação motora fina (letras, desenhos, pinturas etc.) e/ou grossa (ginástica, dança etc.);
  • Desorganização geral, constantes atrasos na entrega de trabalho escolares e perda de seus pertences;
  • Confusão para nomear entre esquerda e direita;
  • Dificuldade em manusear mapas, dicionários, listas telefônicas etc.;
  • Vocabulário pobre, com sentenças curtas e imaturas ou longas e vagas;

O psiquiatra Carl Jung cunhou a frase: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Essa sabedoria é convidativa para que haja o pensamento crítico acerca da praxe profissional. Será que só a teoria basta para que o profissional exerça o ofício? Uma profissão que lida com o ser humano condiz com uma personalidade rígida? O que é necessário para escolher uma profissão coerente à personalidade e ao desejo?

A escola deve ser um ambiente de compreensão, acolhimento, amor e respeito – um ambiente seguro, com uma metodologia criativa, sensível e um ensino inclusivo e adaptado, repleto de profissionais competentes e com uma escuta acurada e atenta.

A sociedade precisa se engajar mais, respeitar mais e denunciar qualquer tipo de violência, além de se atentar mais quanto aos governantes que são colocados, em ambientes públicos e decisórios, como nas câmaras de vereadores, nas prefeituras, no Congresso Nacional e no Palácio do Planalto.

 

Referências:

ASSOCIÇÃO BRASILEIRA DE DISLEXIA. Disponível em: https://www.dislexia.org.br/o-que-e-dislexia/ . Acessado em 04 de setembro de 2023.

LEI Nº 14.254, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2021Dispõe sobre o acompanhamento integral para educandos com dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou outro transtorno de aprendizagem. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14254.htm. Acessado em 05 de setembro de 2023.

PAPALIA, D. E. e FELDMAN, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. Porto Alegre, Artmed, 12ª ed.

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Temas e reflexões atemporais são percebidos na vida e obra de Machado de Assis

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Joaquim Maria Machado de Assis foi um escritor renomado da literatura brasileira. Carioca, de família pobre e negro. Foi o fundador da Academia Brasileira de Letras e, consequentemente, o primeiro presidente dela. Nasceu em 21 de junho de 1839 e morreu em 1908, aos 69 anos de idade, vivendo a maior parte de sua vida no século XIX, momento em que criou memoráveis obras, poemas, peças teatrais e romances.

Suas obras fazem com que o leitor, atento às entrelinhas, reflitam sobre as temáticas atemporais retiradas do contexto vivido por ele, àquela época. Dessa forma, sua escrita, com pitadas de ironia, virou paradigma, chamado por muitos de “estilo machadiano” de escrever.

No clássico “Dom Casmurro”, surge questões relacionadas aos dilemas das relações humanas, como o ciúme, a traição, os conflitos. Em contraponto ao tempo transcorrido desde o lançamento da obra, mesmo diante dos avanços tecnológicos e científicos, os referidos temas se mostram ainda atuais.

Não obstante o contexto cultural marcado pelo preconceito, Machado de Assis, com seu talento, inteligência e elegância na escrita e nas produções, eternizou-se diante da literatura brasileira, apesar das dificuldades que as pessoas negras têm em ascender socialmente, mormente porque a construção social, ainda que subjetiva, tende a distorcer a realidade.

O escritor estudou em escola de ensino público e a sua infância foi vivida no Morro do Livramento, na cidade do Rio de Janeiro. Seu pai, o senhor Francisco José de Assis foi pintor e sua mãe, a senhora Maria Leopoldina Machado de Assis, lavadeira.

Machado, autodidata e amigo dos livros, começou a escrever com 14 anos de idade. Com a abolição da escravatura, no Brasil, ocorreu somente em 13 de maio de 1988, Machado viveu em um espaço de tempo marcado fortemente pelo preconceito racial, o que não o impediu de mudar a realidade de sua própria existência, através de seu acurado intelecto.

Atualmente, a sociedade ainda convive com tal forma de sofrimento. Contudo, o Brasil avançou com a implementação de políticas públicas destinadas a aplicar a igualdade substancial às pessoas negras, como, por exemplo, a “Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial”, instituída por meio do Decreto nº 4.886/2003, com o desiderato de extirpar o preconceito racial no Brasil, mediante a realização de ações exequíveis a longo, médio e curto prazos, com o reconhecimento das demandas mais imediatas e das áreas de atuação prioritária. Apesar disso, o combate ao preconceito é uma luta constante.

O preconceito racial é todo e qualquer julgamento que discrimina uma raça ou etnia, considerando-a menos capaz, considerando que os padrões são derivados da construção social.

A história e a realidade mostram que os negros ao longo de décadas sofreram, e ainda sofrem privações, tratamentos desumanos, torturas físicas e psicológicas. Como exemplo, é comum a mídia veicular campeonatos de futebol e nele registrar atitudes e comportamentos preconceituosos em relação ao jogador negro.

Ao retomar as obras machadianas, em especial, “Dom Casmurro”, publicado em 1899, é possível perceber uma escrita recheada de recursos linguísticos como metáforas, comparações, metonímias, ironias, objetividade, sem olvidar da crítica social subjacente.

Além de Machado brincar com as palavras, deixa lacunas a serem preenchidas pela imaginação e fantasia do leitor, o que enriquece tanto suas obras. Ele ressalta de forma realista as questões psicológicas, de personalidade, além dos defeitos e das qualidades inerentes ao ser humano, ao narrar as interpretações de seus personagens adolescentes: Bento Santiago e Capitu.

Obra é lida e relida por décadas. É escrita em primeira pessoa. O narrador desejou fechar um círculo da vida, quando aduziu: “o meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”.

Narrou o romance de Bento, com 15 anos e Capitu, aos 14. Bentinho dá sinais de ser apaixonado pela Capitu e reconhece não saber lidar com os seus sentimentos e emoções. O narrador diz que “conhecia as regras do escrever sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres”.

Dizia, ainda, que “todo eu era olhos e coração”. Uma fala de alguém extremamente apaixonado, que desconhecia viver sem o ser amado. Alguém que agia com o coração. A “natureza em mim enlouqueceu. Sou todo coração”.

Fonte: https://www.pinterest.pt

As autoras Papalia e Feldman (2013) explicam que os adolescentes estão em processo de maturação cerebral e que estão em desenvolvimento físico, psicológico e social. Essas características citadas no parágrafo acima, cuja emoção se sobrepõe à razão, são comuns nessa fase da vida, ainda que se repitam, também, na vida adulta.

É importante ressaltar que a identidade do adolescente ainda está em processo de construção. A identidade, segundo Erikson (1972), forma-se quando os jovens resolvem três questões importantes: a escolha de uma ocupação, a adoção de valores sob os quais vivem e o desenvolvimento de uma identidade sexual satisfatória.

Durante a leitura percebe-se que o narrador discorre sobre o comportamento de Capitu “Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes”. Bentinho ardia de ciúmes de Capitu, sendo que apenas o fato de ela contemplar o mar, levantava suspeitas de que ela pensaria em outro homem.

Sobre o tema, não é demais comentar que o ciúme patológico pode trazer danos de ordem física, moral, psicológica e patrimonial, comuns nas relações que envolvem violência doméstica, tratada no Brasil por meio da 11.340/2006, intitulada “Lei Maria da Penha”. Em casos mais avançados, até mesmo o feminicídio, incrementado no Código Penal, mediante a Lei 13.104/2015, quando a razão da morte for a condição de sexo feminino.

A obra “Dom Casmurro” mostra o quanto o ciúme é capaz de ofuscar e distorcer a realidade, destruindo relacionamentos. Para Bentinho: “Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro; qualquer homem me enchia de terror ou desconfiança”.

Dessa forma, como Capitu se sentia em um relacionamento envenenado de ciúme? O que fazer diante de alguém assim? É possível ser feliz com alguém adoecido? Como identificar alguém ciumento?

Há um poema de um autor desconhecido que diz que: “O tempo tem o seu próprio rumo e ritmo. É como um rio, que sempre flui. Carrega lembranças, sonhos e experiências. Não tem caminho de volta. O tempo segue. Sempre em frente. O tempo do tempo é o agora”.

Será que o narrador conseguiu atar as duas pontas da vida – restaurar na velhice a adolescência? Isso é possível? É possível Bentinho ajustar as regras do escrever às do amor, considerando que ele desconhecia as regras do amor?

Referências Bibliográficas: 

ABL, Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm%3Fsid%3D240/Discurso%20de%20Encerramento%20do%201%C2%BA%20Ano%20Acad%C3%AAmico%20%2807/12/1897%29. Acessado em 16 de ago.de 2023.

ASSIS, Machado de, 1839-1908. Dom Casmurro [recurso eletrônico] / Machado de Assis ; prefácio de Ana Maria Haddad Baptista. – 2. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. – (Série prazer de ler; n. 7 e-book)

ERIKSON, Erik H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdade-etnico-racial/acoes-e-programas/politica-nacional-de-promocao-da-igualdade-racial. Acessado em 17 de ago. 2023.

 PAPALIA, D. E. e FELDMAN, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. Porto Alegre, Artmed, 12ª ed.

 

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