Admirável Mundo Novo: perspectiva da Psicologia Social

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Fonte: http://migre.me/vF3ks
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A Psicologia Social tem por objetivo estudar os comportamentos no que são influenciados socialmente (LANE, 2006). Dessa forma, a disciplina de Psicologia Social buscou discorrer acerca dessa ciência e de temas que são relevantes para sua compreensão. A partir dos conteúdos discutidos em sala de aula o presente trabalho busca articulá-los com o livro “Admirável Mundo Novo”, tendo que em vista que a obra aponta diversas interferências sociais na forma dos personagens se comportarem, o que possibilita a identificação de diversos fenômenos sociais. O livro “Admirável Mundo Novo” (1932) de Aldous Huxley, apresenta a história de dois mundos, o “Civilizado” e o “Selvagem”.

Fonte: http://migre.me/vEZoD
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A narrativa tem início no Centro de Incubação e Condicionamento, que tem como lema do Estado Mundial: Comunidade, Identidade e Estabilidade, é localizado em Londres, no chamado estado da civilização. A história se passa nesses dois cenários, que embora completamente distintos interferem diretamente na construção da identidade de seus habitantes. No entanto, de acordo com suas especificidades produzem diferentes impactos e “jeitos de ser” dos indivíduos.

Diante dessas discrepâncias entre os contextos, surgem também preconceitos com relação ao outro, no qual o diferente é menosprezado e essas vivências também geraram impactos na forma de se comportar dos indivíduos. Assim, o presente trabalho visa realizar articulações entre o livro e os temas Identidade segundo Jacques (1998) e Preconceito de acordo com Myers (2014), a partir de textos que foram discutidos em sala de aula ao longo da disciplina.

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No Centro de Incubação e Condicionamento, os indivíduos eram condicionados a agirem de maneira estável e social, elementos que constituem suas identidades. Isto, considerando que identidade diz respeito a “um conjunto de representações para responder a pergunta quem és”, Jacques (1998, p.161). Os embriões eram divididos por castas, de forma hierarquizada e suas características biopsicossociais eram definidas a partir disso. Estatura, cor de pele, sensibilidade a determinadas temperaturas e outras especificidades eram estabelecidas previamente de acordo com a casta e suas atribuições.

O sujeito era condicionado a exercer as atividades de seu grupo e não conhecia outras possibilidades, por isso não se importavam com o papel desempenhado ao longo de sua vida. É possível notar que os indivíduos pertencentes a esse estado, o chamado “Civilizado”, tinham seus destinos previamente traçados, bem como suas identidades e características já pré-determinadas, que iam sendo reafirmadas ao longo dos anos, a partir do desempenho de determinadas funções e da ausência de criticidade.

Fonte: http://migre.me/vEZDL
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A partir dessa hierarquia, era notório o preconceito existente no trato com as castas tidas como “inferiores”. Referiam-se a eles como negros, horrorosos, pequenos e outros adjetivos que remetiam a desprezo. Preconceito segundo Myers (2014) consiste em um julgamento negativo de um grupo e seus membros, que predispõe contra uma pessoa apenas por ela pertencer a determinado grupo. Isso fica evidente no livro, à medida que um indivíduo era considerado inferior devido fazer parte de um referido grupo. Os Gamas, Deltas e Epsilons foram condicionados a associar massa corporal com superioridade social.

As castas representam a identidade social do indivíduo, que é uma das subdivisões dos sistemas identificatórios e diz respeito a atributos que demarcam a pertença a uma categoria ou grupo (JACQUES, 1998). Dessa forma, a identidade dos indivíduos nesse contexto era totalmente voltada para o aspecto social, uma vez que a maioria não reconhecia suas características pessoais, tendo em vista que isso não era bem visto pelos seus superiores.

Bernard, um dos personagens, era um Alfa que tinha oito centímetros menos do que o esperado para sua casta, por isso era tido também como “esquisito”, fora do padrão esperado o que o isolava de seus semelhantes. O rapaz se isolava e sentia-se inferior e quando se reportava aos seus “inferiores”, acreditava que eles não lhes respeitavam, por isso era hostil e ríspido para obter atenção. Myers (2014) relata que a frustração pode levar à hostilização, o preconceito pode ajudar a camuflar sentimentos de inferioridade, já que pode proporcionar sensações de superioridade. Isto pode justificar as condutas de Bernard.

Diante dos preconceitos sofridos, Bernard intensificava sentimentos de desprezo a si próprio devido aos seus “defeitos físicos” que o excluíam de sua casta, aumentando sentimentos de exclusão e solidão, apesar da sociedade civilizada não ser programada para vivencia-los. Nesse sentido, a medida que o preconceito “pode defender nossa individualidade contra a ansiedade que vem da insegurança ou do conflito interior” (MYERS, 2014, p. 190), o rapaz pode utilizar desse tipo de atitude para minimizar suas conturbações pessoais.

Fonte: http://migre.me/vF0Gl
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Bernard sempre se sentiu como um indivíduo à parte, mas encontrou Helmholtz, que havia percebido seu excesso mental e o que lhe diferenciava de outras pessoas, por isso poderiam compartilhar suas angustias. Bernard relatava ter o desejo de agir mais por si, e não tão parte de outra coisa, de ser apenas uma célula do corpo social. Esses desejos escandalizavam os outros, que diante do condicionamento não cogitavam essas possibilidades e achavam absurdos esses desejos, já que era tão felizes e se sentiam livres.

Aqui fica explicita uma relação de devoção, os indivíduos não tinham conflitos e nem passavam por dificuldades, por isso eram agradecidos ao grupo social que faziam parte, a “civilização”. Essa devoção pode predispor uma pessoa a menosprezar os outros (MYERS, 2014).  Os demais recomendavam o consumo de “soma” para que eles não tivessem essas ideias horríveis e se sentissem alegres.  Os rapazes tinham suas identidades distintas dos demais e se apropriaram do contexto de forma diferente. No entanto, por causa da necessidade de se sentirem pertencentes precisaram se conformar com as normas do grupo.

Cada grupo vestia uma determinada cor, e até por isso eram alvos de preconceito. Até mesmo os jornais eram destinados a castas. Em Londres tinham três jornais, Londres sendo eles o Rádio Horário, jornal para as castas superiores, A Gazeta dos Gamas, verde-pálido, e, em papel cáqui e exclusivamente em palavras monossilábicas, O Espelho dos Deltas. Tudo isso, atuava reafirmando a identidade social das pessoas que ali habitavam,  a medida que tudo era separado para cada grupo, fazendo com que cada vez mais eles se entendessem como Gama, Delta e outros.

Fonte: http://migre.me/vF01V
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A segregação favorece o preconceito, bem como a identidade social. Um grupo que usufrui de uma superioridade econômica e social pode justificar essa posição por meio de convicções preconceituosas (MYERS, 2014). Isso fica evidente no livro, pois as castas superiores se utilizavam de argumentos preconceituosos para relatar as diferenças.

Lenina, uma das personagens, era uma típica jovem de casta superior que seguia a risca os regulamentos e tinha atitudes preconceituosas com as outras castas. Isso é potencializado devido a identidade social fortalecida, segundo Myers (2014) é possível que essa identificação leve o indivíduo a detestar grupos diferentes. Além disso, o autor acrescenta que pertencer a um grupo implica também na definição de quem não se é. Por isso, a moça agradecia constantemente por não ser inferior, já que sabia que o grupo ao qual pertencia era de superiores.

Existiam regulamentos para nortear as condutas, por exemplo, as mulheres não deveriam engravidar, mas deveriam relacionar-se sexualmente com quantos homens elas desejassem, por isso, eram sujeitas a anos de hipnopedia intensiva e, dos doze aos dezessete, exercícios malthusianos três vezes por semana, de modo que esses cuidados se tornavam quase automáticos. Tudo isso, reforçava a identidade social e impediam os indivíduos de tomarem consciência de suas singularidades.

Emoções, laços de maternidade/paternidade e conjugalidade também eram descartados na civilização, uma vez que poderiam gerar instabilidade. Para evitar tais “desconfortos”à sociedade, as pessoas ouviam repetidamente comandos que influenciariam seus comportamentos, eram anos de hipnopedia. Além disso, se por ventura, ocorresse algo desagradável eles utilizavam a “soma” medicamento que lhes permitiam fugir da realidade e suportar as adversidades sem acionar recursos pessoais de enfrentamento.

Ao longo da história, Bernard, decide ir passar suas férias em uma reserva, e leva com ele Lenina. A reserva era conhecida como o estado “Selvagem”, onde se encontram os nãos civilizados, ou chamados índios e mestiços. Lá existiam piolhos, suor, mau cheiro e as pessoas envelheciam. Bem como, casamento e famílias o que para o mundo civilizado era antiquado devido ao condicionamento.  Diferente de Londres e a sociedade civilizada de onde vinham.

Fonte: http://migre.me/vF0Tc
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Existiam os civilizados e os selvagens e para Myers (2014) as etnias são uma forma de categorizar as pessoas, na qual rotulamos os indivíduos na tentativa de simplificar o mundo.Os chamados civilizados viam os índios como sujos e merecedores de todas “mazelas” do mundo selvagem, ou seja, como tendo características que justificavam essa situação e fortalecem essa diferença de “status” (MYERS, 2014).

Durante a viagem Bernard e Lenina conheceram outra realidade que lhes gerou espanto, desconforto e atitudes preconceituosas.  O preconceito pode ser advindo de uma série de convicções negativas, os estereótipos (MYERS, 2014).Para Lenina, as pessoas da reserva eram sujas, imundas, feias, desprovidas de sabedoria, antiquadas, conforme lhe era descrito em Londres.

Conheceram ainda Linda que também trabalhou no Centro de Condicionamento e há alguns anos foi visitar a reserva e se perdeu, estava grávida e lá teve seu bebe. Tendo em vista que e gestação e a relação materna eram inconcebíveis na sociedade civilizada, ela não quis retornar para Londres com seu filho John.

Ao longo do livro são apontadas as dificuldades que Linda teve em se adaptar ao novo contexto e como foi conturbada a relação entre ela e seu papel de mãe. Tendo em vista que sua identidade a resposta para a pergunta quem és era voltada apenas para suas atribuições socais, frente a perda delas Linda não conseguia prosseguir. Isso também se deve ao fato dela ter sido condicionada ao uso de “soma”, um medicamento milagroso que lhe permitia fugir da realidade e evitar solucionar conflitos a partir de seus próprios recursos.

Fonte: http://migre.me/vF1ch
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Foi difícil para John se inserir na comunidade local e compreender as regras passadas por Linda. O preconceito era frequente não apenas na sociedade civilizada, mas também no estado selvagem. John era descendente de brancos tinha olhos azuis e pele clara, por isso fora excluído de algumas atividades da comunidade.

Lenina fica espantada com a aparência física de Linda, que devido à idade tinha rugas, dentes manchados e era gorda. Tudo isso, era inadmissível em Londres, pois lá não era permitido que ninguém ficasse assim. Eram utilizadas diversas estratégias para evitar o envelhecimento e esse aspecto “assustador”.

Linda e John retornaram para Londres e são narradas as dificuldades do rapaz para adaptação ao novo ambiente e os novos costumes. Quando Selvagem chegou, todos queriam conhece-lo e por isso tratavam Bernard bem, já que o contato se daria por meio dele. Diante dessa “aceitação” o rapaz mudou seus comportamentos, ficou deslumbrado com a possibilidade de inclusão, tinha quantas mulheres quisesse e sentia necessidade de gabar-se por isso. Aqui, nota-se que a identidade pessoal que está em constante modificação através das novas experiências, começou a se moldar a partir do novo perfil de relações estabelecidas.

Bernard vivenciou sentimentos de exclusão durante todo o tempo devido a suas características físicas desproporcionais a sua casta, por isso não tinha uma identidade pessoal positiva. Myers (2014) relata que nesses casos é comum que as pessoas busquem auto-estima por meio da identificação com grupo e do estabelecimentos de laços. Essa explosão de experiências positivas e de inserção na comunidade, caracterizavam uma grande oportunidade para se firmar com indivíduo.

Fonte: http://migre.me/vF1la
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Quando John foi pra civilização ele era uma pessoa distintiva, pois era diferente do grupo dos civilizados, o que fez com que ele se tornasse uma atração. Além disso, as pessoas o tomavam como modelo dos demais Selvagens, o que fazia com que os estereótipos se intensificassem (MYERS, 2014).

Inconformados com a civilização acrítica, Bernard, Helmholtz e Selvagem buscam falar com o diretor, a fim de questionar as motivações para as regras impostas. São informados que isso é para a felicidade de todos, pois as pessoas precisam de estabilidade e para isso precisam viver em hierarquia e sem muitos questionamentos. Aqui nota-se a mudança na identidade deles, que até então não tinha tido coragem de desafiar as regras, mas como o “eu” está em constante transformação passaram a questionar a sociedade na qual estavam inseridos.

Diante dessa petulância, Bernard e Helmholtz foram levados para ilhas longe dali, na qual vão todos que adquiriram demasiada consciência de sua individualidade, que não se satisfizeram na ortodoxia da comunidade ou os quem tem ideias próprias ou independentes.  Essa conduta era baseada na tentativa de evitar que outros fossem “contaminados” com essa consciência de si. Selvagem permaneceria na civilização para ser estudado, porém ele resolveu ir também, pois não desejava modificar-se a agir conforme a comunidade civilizada. A mídia local ia a ilha para filmá-lo e observar o seu modo de viver.

Fonte: http://migre.me/vF1Cf
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A partir da história contada no livro “Admirável Mundo Novo” e dos conteúdos discutidos por meio da Psicologia Social é possível ressaltar o quanto de social tem em cada indivíduo. O contexto em que cada um está inserido influencia diretamente na sua forma de ser, mesmo que o indivíduo não perceba essas interferências e considere-se livre.

Durante a narrativa os habitantes do estado civilizado foram condicionados a terem uma falsa impressão de liberdade e autonomia, e qualquer um que chegasse a ter consciência dessa ausência de individualidade era tirado da sociedade afim de não contaminar os demais. Diante dessa identidade previamente moldada e da força desse papel social, os preconceitos aumentavam, tendo em vista que o diferente era visto como inferior. Todavia, os preconceitos, rótulos e discriminações estavam presentes nos dois mundos, ainda que por vezes se mostrasse da maneira mais sútil possível.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

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Editora: Globo
Assunto:  Ficção científica e distópica
Idioma: Português
Ano: 1979
Páginas: 178
Ano de lançamento: 1932

REFERÊNCIAS: 

HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1979.

JACQUES, M. G. C. Identidade. Em: JACQUES, M. G. C. Psicologia Social Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1998.

LANE, Silvia T. Maurer. O que é psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2006.

MYERS, D. G.Preconceito: o ódio ao próximo. Em: MYERS, D. G. Psicologia Social. Porto Alegre: Artmed, 2014.

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O Príncipe das Marés: uma visão Psicanalítica

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O filme O Príncipe das Marés, de 1991, dirigido por Barbra Streisand, narra a história da família Wingo, que marcada por uma trajetória de profunda violência, enfrenta os problemas deixados por essa realidade.

A família Wingo reside na Carolina do Sul e é formada pelos pais, que durante a trama se separam, e três filhos. A relação familiar era turbulenta, devido ao pai ser violento e alcoólatra. Frente a tantos problemas Savannah, filha do casal, passa a tentar suicídio diversas vezes. Diante de uma dessas crises, Tom irmão de Savannah se dirige a New York a chamado da psiquiatra de sua irmã, na tentativa de poder colaborar com o tratamento. E a partir de então vários acontecimentos que marcaram essa família são revelados.

A partir de uma análise do filme baseada no olhar psicanalítico, foi possível identificar na história dos personagens alguns elementos defendidos por essa abordagem.

Cena 1: Durante uma caminhada na praia, Sallie, esposa de Tom Wingo tenta conversar sobre a relação, mas Tom muda de assunto o tempo inteiro. E isso ocorreu também durante os encontros com a psiquiatra, nos quais ele evitava assuntos relacionados ao seu passado familiar.

Articulando com a psicanalise podemos perceber a presença de um mecanismo de defesa, sendo estes, processos subconscientes que possibilitam a criação de estratégias para solucionar conflitos, ansiedades, hostilidades, impulsos agressivos, ressentimentos e frustrações não solucionadas no nível da consciência. Os quais o ego utiliza para dissociar sentimentos ou impulsos tidos como ameaçadores para e integridade do sujeito (SILVA, 2010). Entre esses encontra-se  a resistência que segundo Paniago (2008, apud LOPES, 2012), é um mecanismo inconsciente ligado à parte do eu regida pelo princípio de realidade, que procura saídas contra a invasão dos elementos indesejáveis provenientes do próprio inconsciente e dos conteúdos recalcados. Quanto mais pressionado o eu se encontra, mais fortemente se apega a resistência.

Assim, durante a relação terapêutica, as reações do analisando que se constituem como obstáculos à evolução do tratamento e dificultam o acesso deste aos conteúdos do seu inconsciente, são determinadas pelas resistências que se manifestam à medida que o trabalho terapêutico se aproxima de uma representação. De acordo com Lopes (2012, s/p), “alguns aspectos de uma resistência podem ser conscientes e outra parte fundamental é realizada pelo ego inconsciente. As resistências são repetições das produções defensivas realizadas pelo paciente em sua vida”.

Cena 2: Apesar de assumir que tentou esquecer o passado e mesmo não muito conformado, Tom aceita colaborar com Susan no tratamento de sua irmã, onde aceitou relembrar alguns acontecimentos importantes para a evolução do quadro de Savannah. Aceitando se encontrar mais vezes com Susan.

A partir desses primeiros encontros que são de extrema importância para a psicoterapia psicanalítica Tom estabeleceu um vínculo com a psiquiatra, de maneira que propiciou a firmação da aliança terapêutica, fazendo com que ele contribua com tratamento, de modo ativo. O paciente estabelece acordos conscientes com o terapeuta a cerca do tratamento (FRONCKOWIAK; DEVIT; HOPPE, s/d). Após essa estruturação Tom se implica no processo, mesmo resistente passa informações importantes para a resolução dos mistérios da família Wingo.

Cena 3: A terapeuta narra para Tom que precisa da ajuda dele para ajudar Savannah porque precisa de informações sobre a infância dela mas ela não consegue contar porque “há passagens na vida dela que ela bloqueou, apagou”. Ela precisa de Tom para preencher os espaços em branco. No decorrer do filme Tom narra que a mãe teve um bebê em casa que nasceu morto, e ela os culpou pela morte dele. Iam enterrar no dia seguinte enquanto isso o bebê ficou no congelador. Ao levantar à noite viu Savannah, que na época tinha entre 7 ou 8 anos,com o bebê nos braços, sentada na cadeira de balanço, dizendo “você tem sorte, não vai conviver conosco”. No dia seguinte ela não se lembrava de ter feito isso. A partir desse episódio, os sinais e sintomas começaram a aparecer.

O trauma, segundo Laplanche e Pontalis (2001, pág. 522), é um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. Os traumas são formados por mais de um acontecimento, e podem deixar lacunas uma vez que a repressão (que exclui do consciente a lembrança patogênica) e a resistência (força que impede o acesso da ideia incompatível ao consciente), agem numa intensidade proporcional ao sofrimento. Essa lacunas são preenchidas por sonhos, chistes, atos falhos, e inclusive sintomas.

O lapso na memória de Savannah com relação a fatos ocorridos na infância pode ser explicado através desse conceito. Não sabendo lidar de forma adequada ao acontecimento traumático, ficando impotente diante dele, houve uma utilização anormal dos afetos contidos nele. Dois dos fenômenos lacunares que surgem são os sintomas e sonhos.

Cena 4: Desde o primeiro encontro entre Tom e a terapeuta Suzan, ele se mostra cínico e irônico ao relatar acontecimentos relacionados a sua infância e a de Savannah. Quando questionado sobre o motivo de fazer tais piadas com assuntos sérios, responde que é o jeito do Sul.

Nessa cena é possível ver claramente a utilização de um mecanismo de defesa chamado Chiste.

A palavra chiste, oriunda do alemão Witz, significa “gracejo”, e é encontrada na obra de Freud, que o define como uma espécie de válvula de escape de nosso inconsciente, utilizado para dizer, em tom de brincadeira, aquilo que verdadeiramente se deseja (RABUSK , pág. 1, s/d) .

Assim, o discurso do personagem carregado de chistes, em praticamente todo filme, demonstra a forma que ele encontrou, mesmo que inconscientemente, de lidar com a temida realidade causadora da angustia e sofrimento que ele quer a todo custo evitar.

Cena 5: A psiquiatra Susan revela que Savannah, que utilizava o codinome Rafaela, escrevia seus livros inspirados em conteúdos oníricos, que era sua forma de ligação com seu passado, uma vez que haviam muitas lacunas em sua memória referente a isso.

Os sonhos são a realização dos desejos inconscientes. A simbologia do sonho está diretamente relacionada aos conteúdos latentes (motivações inconscientes) que, através dos mecanismos de defesa, sofreram modificações originando o conteúdo manifesto (o que lembramos ao acordar). Condensação e deslocamento, são os mecanismos de defesa que agem nos conteúdos dos sonhos fazendo com que estes se manifestem de maneira distorcida, impedindo que esse conteúdo manifesto seja associado ao conteúdo latente, ou seja, que haja sua conscientização e elaboração.

Dessa maneira podemos afirmar que o passado reprimido de Savannah, encontrou nos sonhos uma maneira de manifestar-se, que sob efeito da condensação e do deslocamento ganhavam uma forma fantasiosa e que era por ela utilizada numa atitude de sublimação para contar aquilo que ela nem se lembrava mais.

Cena 6: Tom se recorda sobre um fato de sua infância no qual seu pai se irrita com uma comida servida por sua mãe. Tom diz ter gostado seu pai o pergunta quem o perguntou, Tom começa a chorar e o pai o proíbe e insinua que quem chora é “Marica”. E no final do filme onde Tom recordando sobre o passado, quando ele sua mãe e irmã foram estuprados, evita chorar, reprimindo a dor.

Tom reprime o choro como maneira de evitar o contato com a dor, mantendo-a á distancia.

Cena 7: Tom conta durante o encontro terapêutico que quando era pequeno numa conversa com a mãe, Lila, ela lhe disse que ele era o único que ia se dar bem na vida, pois Luke não era esperto e Savannah era mulher. Tom não concordou. A mãe disse ainda que amava Tom e que ele era seu favorito, e o ama mais que aos outros, mas isso era um segredo deles. Tom diz em terapia que levou 20 anos para contar esse segredo, e quando contou descobriu que a mãe havia dito a mesma coisa para os irmãos. Contou isso à psiquiatra como forma de justificar sua falta de confiança na mãe, afirmando que ela era uma mentirosa.

Em outra cena conta sobre a traição da esposa e diz que não fazia a menor ideia, e é indagado se estava atento. Alega que as mulheres são mais sacanas que os homens, escondem o jogo e vivem sorrindo, esperando que o homem seja uma fortaleza e quando ele demonstra fraqueza simplesmente o traem. Susan pergunta se Tom acha que sua mãe o traiu, ele responde que estava falando de sua mulher.

Tom era hostil em algumas sessões com a terapeuta, quando essa o questionava sobre seu passado ao lado de sua família, sendo tal atitude justificada na raiva que sentia de sua mãe, ocasionada por ter descoberto que quando ela disse que era o preferido havia na verdade dito isso para os outros filhos também.  Dessa maneira, nesse campo, a transferência refere-se ao “fenômeno pelo qual um estado afetivo é transportado do objeto que provocou primitivamente para um objeto diferente” (LAGACHE, 1990, pág. 102). Os sentimentos não são justificados na realidade terapêutica entre Tom e Susan.

Da mesma maneira desconfiava das mulheres, de maneira que percebia seu casamento com um olhar de frustração, transferindo expectativas não cumpridas originadas na relação com sua mãe na infância para esta relação. Devido à mentira de sua mãe que até o momento não havia sido perdoada por ele, fazendo com que esses sentimentos sejam reeditados em suas demais relações.

Cena 8: Quando a psiquiatra, Susan Lowenstein, pede ajuda a Tom para que ele seja  a “memória de Savannah”, e lhe conte sobre o passado da dela, ele com muita resistência lhe confessa um dos grandes segredos de sua família, conta sobre o episódio em que sua casa foi invadida e sua mãe, ele e a irmã foram estuprados; o outro irmão, Luke, chega no momento do estupro e mata dois dos bandido a tiros, e a mãe mata o outro. Depois eles se livraram dos corpos. Ele relata que depois foram obrigados pela mãe a fingir que nada tinha acontecido e que o assunto foi proibido, e nunca havia sido contado para mais ninguém. Tom resiste, mas acaba chorando.

Assim, percebemos que o evento traumático não estava inconsciente e sim no nível de pré-consciência, estando disponível para se tornar consciente dependendo do grau da energia investida no esforço para conscientizar, de modo que ainda provocava intenso sofrimento em Tom, sempre vindo à tona e o atormentando.

No tratamento psicanalítico, somente a conscientização de um trauma não garante que ele seja elaborado, ou seja, que novas configurações da experiência traumática sejam construídas permitindo que o sujeito se distancie dela “podendo vislumbrá-la como uma representação, uma vez que é possível o esquecimento e não apenas o silêncio forçado” (FRIEDL; FARIAS, 2012, pág. 22).

A cena permitiu observar que partir do momento que Tom conseguiu contar os acontecimentos para a psiquiatra, livrando-se do esforço reflexivo que desde o episódio do estupro fizera, para não entrar em contato com essas lembranças, ele se sentiu melhor, porém não conseguia entrar em contato com a dor. Depois que Tom, se permitiu chorar e expressar o sofrimento que aquilo tudo lhe causara com uma intensidade afetiva proporcional a do momento do fato traumático, pôde elaborar e liberta-se do peso e das angústias causadas por esse sofrimento que ficou tanto tempo intocável.

FICHA TÉCNICA 

O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Gênero: Drama
Direção: Barbra Streisand
Roteiro: Jay Presson Allen, Pat Conroy
Elenco: Barbra Streisand, Blythe Danner, Brad Sullivan, George Carlin, Jason Gould, JeroenKrabbé, Kate Nelligan, Melinda Dillon, Nick Nolte
Produção: Andrew S. Karsch, Barbra Streisand, CisCorman
Fotografia: Stephen Goldblatt
Trilha Sonora: James Newton Howard
Ano: 1991

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