O Príncipe das Marés: uma visão Psicanalítica

O filme O Príncipe das Marés, de 1991, dirigido por Barbra Streisand, narra a história da família Wingo, que marcada por uma trajetória de profunda violência, enfrenta os problemas deixados por essa realidade.

A família Wingo reside na Carolina do Sul e é formada pelos pais, que durante a trama se separam, e três filhos. A relação familiar era turbulenta, devido ao pai ser violento e alcoólatra. Frente a tantos problemas Savannah, filha do casal, passa a tentar suicídio diversas vezes. Diante de uma dessas crises, Tom irmão de Savannah se dirige a New York a chamado da psiquiatra de sua irmã, na tentativa de poder colaborar com o tratamento. E a partir de então vários acontecimentos que marcaram essa família são revelados.

A partir de uma análise do filme baseada no olhar psicanalítico, foi possível identificar na história dos personagens alguns elementos defendidos por essa abordagem.

Cena 1: Durante uma caminhada na praia, Sallie, esposa de Tom Wingo tenta conversar sobre a relação, mas Tom muda de assunto o tempo inteiro. E isso ocorreu também durante os encontros com a psiquiatra, nos quais ele evitava assuntos relacionados ao seu passado familiar.

Articulando com a psicanalise podemos perceber a presença de um mecanismo de defesa, sendo estes, processos subconscientes que possibilitam a criação de estratégias para solucionar conflitos, ansiedades, hostilidades, impulsos agressivos, ressentimentos e frustrações não solucionadas no nível da consciência. Os quais o ego utiliza para dissociar sentimentos ou impulsos tidos como ameaçadores para e integridade do sujeito (SILVA, 2010). Entre esses encontra-se  a resistência que segundo Paniago (2008, apud LOPES, 2012), é um mecanismo inconsciente ligado à parte do eu regida pelo princípio de realidade, que procura saídas contra a invasão dos elementos indesejáveis provenientes do próprio inconsciente e dos conteúdos recalcados. Quanto mais pressionado o eu se encontra, mais fortemente se apega a resistência.

Assim, durante a relação terapêutica, as reações do analisando que se constituem como obstáculos à evolução do tratamento e dificultam o acesso deste aos conteúdos do seu inconsciente, são determinadas pelas resistências que se manifestam à medida que o trabalho terapêutico se aproxima de uma representação. De acordo com Lopes (2012, s/p), “alguns aspectos de uma resistência podem ser conscientes e outra parte fundamental é realizada pelo ego inconsciente. As resistências são repetições das produções defensivas realizadas pelo paciente em sua vida”.

Cena 2: Apesar de assumir que tentou esquecer o passado e mesmo não muito conformado, Tom aceita colaborar com Susan no tratamento de sua irmã, onde aceitou relembrar alguns acontecimentos importantes para a evolução do quadro de Savannah. Aceitando se encontrar mais vezes com Susan.

A partir desses primeiros encontros que são de extrema importância para a psicoterapia psicanalítica Tom estabeleceu um vínculo com a psiquiatra, de maneira que propiciou a firmação da aliança terapêutica, fazendo com que ele contribua com tratamento, de modo ativo. O paciente estabelece acordos conscientes com o terapeuta a cerca do tratamento (FRONCKOWIAK; DEVIT; HOPPE, s/d). Após essa estruturação Tom se implica no processo, mesmo resistente passa informações importantes para a resolução dos mistérios da família Wingo.

Cena 3: A terapeuta narra para Tom que precisa da ajuda dele para ajudar Savannah porque precisa de informações sobre a infância dela mas ela não consegue contar porque “há passagens na vida dela que ela bloqueou, apagou”. Ela precisa de Tom para preencher os espaços em branco. No decorrer do filme Tom narra que a mãe teve um bebê em casa que nasceu morto, e ela os culpou pela morte dele. Iam enterrar no dia seguinte enquanto isso o bebê ficou no congelador. Ao levantar à noite viu Savannah, que na época tinha entre 7 ou 8 anos,com o bebê nos braços, sentada na cadeira de balanço, dizendo “você tem sorte, não vai conviver conosco”. No dia seguinte ela não se lembrava de ter feito isso. A partir desse episódio, os sinais e sintomas começaram a aparecer.

O trauma, segundo Laplanche e Pontalis (2001, pág. 522), é um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. Os traumas são formados por mais de um acontecimento, e podem deixar lacunas uma vez que a repressão (que exclui do consciente a lembrança patogênica) e a resistência (força que impede o acesso da ideia incompatível ao consciente), agem numa intensidade proporcional ao sofrimento. Essa lacunas são preenchidas por sonhos, chistes, atos falhos, e inclusive sintomas.

O lapso na memória de Savannah com relação a fatos ocorridos na infância pode ser explicado através desse conceito. Não sabendo lidar de forma adequada ao acontecimento traumático, ficando impotente diante dele, houve uma utilização anormal dos afetos contidos nele. Dois dos fenômenos lacunares que surgem são os sintomas e sonhos.

Cena 4: Desde o primeiro encontro entre Tom e a terapeuta Suzan, ele se mostra cínico e irônico ao relatar acontecimentos relacionados a sua infância e a de Savannah. Quando questionado sobre o motivo de fazer tais piadas com assuntos sérios, responde que é o jeito do Sul.

Nessa cena é possível ver claramente a utilização de um mecanismo de defesa chamado Chiste.

A palavra chiste, oriunda do alemão Witz, significa “gracejo”, e é encontrada na obra de Freud, que o define como uma espécie de válvula de escape de nosso inconsciente, utilizado para dizer, em tom de brincadeira, aquilo que verdadeiramente se deseja (RABUSK , pág. 1, s/d) .

Assim, o discurso do personagem carregado de chistes, em praticamente todo filme, demonstra a forma que ele encontrou, mesmo que inconscientemente, de lidar com a temida realidade causadora da angustia e sofrimento que ele quer a todo custo evitar.

Cena 5: A psiquiatra Susan revela que Savannah, que utilizava o codinome Rafaela, escrevia seus livros inspirados em conteúdos oníricos, que era sua forma de ligação com seu passado, uma vez que haviam muitas lacunas em sua memória referente a isso.

Os sonhos são a realização dos desejos inconscientes. A simbologia do sonho está diretamente relacionada aos conteúdos latentes (motivações inconscientes) que, através dos mecanismos de defesa, sofreram modificações originando o conteúdo manifesto (o que lembramos ao acordar). Condensação e deslocamento, são os mecanismos de defesa que agem nos conteúdos dos sonhos fazendo com que estes se manifestem de maneira distorcida, impedindo que esse conteúdo manifesto seja associado ao conteúdo latente, ou seja, que haja sua conscientização e elaboração.

Dessa maneira podemos afirmar que o passado reprimido de Savannah, encontrou nos sonhos uma maneira de manifestar-se, que sob efeito da condensação e do deslocamento ganhavam uma forma fantasiosa e que era por ela utilizada numa atitude de sublimação para contar aquilo que ela nem se lembrava mais.

Cena 6: Tom se recorda sobre um fato de sua infância no qual seu pai se irrita com uma comida servida por sua mãe. Tom diz ter gostado seu pai o pergunta quem o perguntou, Tom começa a chorar e o pai o proíbe e insinua que quem chora é “Marica”. E no final do filme onde Tom recordando sobre o passado, quando ele sua mãe e irmã foram estuprados, evita chorar, reprimindo a dor.

Tom reprime o choro como maneira de evitar o contato com a dor, mantendo-a á distancia.

Cena 7: Tom conta durante o encontro terapêutico que quando era pequeno numa conversa com a mãe, Lila, ela lhe disse que ele era o único que ia se dar bem na vida, pois Luke não era esperto e Savannah era mulher. Tom não concordou. A mãe disse ainda que amava Tom e que ele era seu favorito, e o ama mais que aos outros, mas isso era um segredo deles. Tom diz em terapia que levou 20 anos para contar esse segredo, e quando contou descobriu que a mãe havia dito a mesma coisa para os irmãos. Contou isso à psiquiatra como forma de justificar sua falta de confiança na mãe, afirmando que ela era uma mentirosa.

Em outra cena conta sobre a traição da esposa e diz que não fazia a menor ideia, e é indagado se estava atento. Alega que as mulheres são mais sacanas que os homens, escondem o jogo e vivem sorrindo, esperando que o homem seja uma fortaleza e quando ele demonstra fraqueza simplesmente o traem. Susan pergunta se Tom acha que sua mãe o traiu, ele responde que estava falando de sua mulher.

Tom era hostil em algumas sessões com a terapeuta, quando essa o questionava sobre seu passado ao lado de sua família, sendo tal atitude justificada na raiva que sentia de sua mãe, ocasionada por ter descoberto que quando ela disse que era o preferido havia na verdade dito isso para os outros filhos também.  Dessa maneira, nesse campo, a transferência refere-se ao “fenômeno pelo qual um estado afetivo é transportado do objeto que provocou primitivamente para um objeto diferente” (LAGACHE, 1990, pág. 102). Os sentimentos não são justificados na realidade terapêutica entre Tom e Susan.

Da mesma maneira desconfiava das mulheres, de maneira que percebia seu casamento com um olhar de frustração, transferindo expectativas não cumpridas originadas na relação com sua mãe na infância para esta relação. Devido à mentira de sua mãe que até o momento não havia sido perdoada por ele, fazendo com que esses sentimentos sejam reeditados em suas demais relações.

Cena 8: Quando a psiquiatra, Susan Lowenstein, pede ajuda a Tom para que ele seja  a “memória de Savannah”, e lhe conte sobre o passado da dela, ele com muita resistência lhe confessa um dos grandes segredos de sua família, conta sobre o episódio em que sua casa foi invadida e sua mãe, ele e a irmã foram estuprados; o outro irmão, Luke, chega no momento do estupro e mata dois dos bandido a tiros, e a mãe mata o outro. Depois eles se livraram dos corpos. Ele relata que depois foram obrigados pela mãe a fingir que nada tinha acontecido e que o assunto foi proibido, e nunca havia sido contado para mais ninguém. Tom resiste, mas acaba chorando.

Assim, percebemos que o evento traumático não estava inconsciente e sim no nível de pré-consciência, estando disponível para se tornar consciente dependendo do grau da energia investida no esforço para conscientizar, de modo que ainda provocava intenso sofrimento em Tom, sempre vindo à tona e o atormentando.

No tratamento psicanalítico, somente a conscientização de um trauma não garante que ele seja elaborado, ou seja, que novas configurações da experiência traumática sejam construídas permitindo que o sujeito se distancie dela “podendo vislumbrá-la como uma representação, uma vez que é possível o esquecimento e não apenas o silêncio forçado” (FRIEDL; FARIAS, 2012, pág. 22).

A cena permitiu observar que partir do momento que Tom conseguiu contar os acontecimentos para a psiquiatra, livrando-se do esforço reflexivo que desde o episódio do estupro fizera, para não entrar em contato com essas lembranças, ele se sentiu melhor, porém não conseguia entrar em contato com a dor. Depois que Tom, se permitiu chorar e expressar o sofrimento que aquilo tudo lhe causara com uma intensidade afetiva proporcional a do momento do fato traumático, pôde elaborar e liberta-se do peso e das angústias causadas por esse sofrimento que ficou tanto tempo intocável.

FICHA TÉCNICA 

O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Gênero: Drama
Direção: Barbra Streisand
Roteiro: Jay Presson Allen, Pat Conroy
Elenco: Barbra Streisand, Blythe Danner, Brad Sullivan, George Carlin, Jason Gould, JeroenKrabbé, Kate Nelligan, Melinda Dillon, Nick Nolte
Produção: Andrew S. Karsch, Barbra Streisand, CisCorman
Fotografia: Stephen Goldblatt
Trilha Sonora: James Newton Howard
Ano: 1991