Vento

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No meu lugar, há o vento de setembro. Esse instável, perigoso, mas benfazejo vento de setembro…

Há areia por todas as casas, as telhas tilintam… e há o vento. Pequenos quadros voam da parede, portas batem violentas… e há o vento. Grandes pancadas e galhos rangendo… e há a constante, inevitável, presença do vento.

          – Ô, seu Biro! Cê viu?, berra, a contra-vento, o vizinho.

          – Pois não vi?

Voou longe a tampa de uma caixa- d’água, cocos quebraram telhas, uma pequena árvore se partiu. E há o vento.

Homens, com suas tralhas e suas figuras de pescador, sentam-se à beira-mar. Olham o mar e falam sobre o vento. Os esperançosos aguardam o “brando” para poder sair, os outros desistem cedo. Mas todos conversam, a esmo:

          – Ôôôô, vento!

          – Cada refrega!

          – Hoje, ninguém sai…

          – Ontem, a canoa do Louro alagou. Ainda bem que eles não iam muito fora…

Nessa época, a pescaria “fracassa”, o pescado some. Mas há quem – por um misto de bravura e necessidade – resista e siga em sua cotidiana busca pelo peixe. Levantam o pano e lutam heroicamente contra aquele que, em tempos brandos, é quem lhes faz ir e chegar.  Em geral, buscam o camurupim, que – como os próprios pescadores e apesar de tudo – gosta que setembro venha e que traga o vento.

Acidentes se seguem. A maioria resulta em algum prejuízo ou ferimento mais ou menos leves: um motor dentro d’água, um mastro que quebra, uma retranca que repentinamente golpeia. Mas, nessas beiras de praia, não são raras as viúvas jovens e as mães saudosas: homens ao mar, desespero e espera que nunca terminam.

          – O Vigarino… foi o vento; diz um, em um ritmo quase cantado, preguiçoso.

          – É… Mas o Chico Bureta… diz que foi a Mãe d´Água; resmunga  outro, entredentes, de olhos ao mar agitado e afoito.

           – Maré grande!

Os gatos (quem os tem sabe) desconfiam. Orelhas ágeis que assuntam cada barulho, caudas a balançar. Vez e outra, relaxam e felinamente dormitam sob o carinho doce de um ou outro vento brando. Fazem como nós, escutam a linguagem do vento.

Não há um tema, mas o vento fala. Palavras soltas, frases desconexas, gemidos e sons guturais: o vento fala caótico, poético, mutável… Fala na língua sofrida de quem sente falta de matéria e de organismo em que se amparar.

O vento não tem boca. Precisa da frenética garganta das palhas de coqueiro, do palato duro das telhas, da úmida e profunda laringe do mar. E o vento fala, grita, mas não diz. O vento cumpre tão somente seu fluido ofício de ventar.

Um dia, eu também, apenas ventarei.

Fotos: Mardônio Parente

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Ver(a)cidade

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A Ver(a)cidade das imagens capturas pela lente de Mardônio Parente, transcrevem a poesia em preto e branco das paisagens urbanas.

Aqui, as formas convergidas em retratos, são frascos comprimidos e carregados de um sentimento acromático, inebriado pelo aroma das emoções opacas de palavras circunscritas.

Saudade, nostalgia, vazio, e imensidão, são expressões inesperadas, catalizadas pela veracidade das formas copiosas e tristonhas das cenas registradas.

Hudson Eygo

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Verdes olhos

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Naquele dia, acordara tarde, o que de sua parte não era usual. A seu lado, entre cobertas, ela lindamente adormecida, enrodilhada como uma gata. Já ele não era de muito dormir e, como aprendera a gostar daquela cena, ultimamente, vinha acordando quase noite ainda. Acordava, olhava-a longamente e, quase sempre, beijava-a.

Levantou-se preguiçosamente e começou a preparar um café. Vinha acumulando manias ao longo da vida e o café era uma delas. Com o envelhecimento, aprendera a ser frugal e há anos seu desjejum era apenas isso: uma xícara grande de café puro, forte e amargo, quase intragável. Tinha certo orgulho dessa frugalidade que, para ele, era uma confirmação de que lentamente deixava de pertencer ao mundo.

Procurou pelo maço de cigarros. Havia esquecido de comprá-los na noite anterior e, agora, revirava ansiosamente os cinzeiros da casa, em busca de baganas aproveitáveis. Não havia nenhuma e decidiu sair para comprar cigarros.

Não gostava de sair de casa antes de ela acordar. Depois que a conheceu, aprendera a olhar a vida gemeamente e era como se precisasse pousar seus olhos nos verdes olhos dela para que pudesse finalmente enfrentar o dia.

Via através dela e gostava de imaginar que ela também precisava dele para melhor ver o mundo.

Àquela hora, o comércio estava fechado e ele teve de rodar quilômetros na estrada para achar um lugar que vendesse cigarros. Chegou a um posto de gasolina e aguardou horas até que a loja de conveniências abrisse. Pediu um maço de cigarros, um expresso e, só então, percebeu que havia esquecido de desligar a chama do fogão que esquentava a água de seu café. Esqueceu o maço de cigarros em cima do balcão, deixou cair o expresso que estava ainda pela metade e saiu, atabalhoado, sem pagar. Sequer ouviu os xingamentos da moça que o atendera e que ficara sem entender a situação.

A caminho de casa, desesperado, já não via a estrada, já não via nada. Os pneus de seu automóvel como que presos, colados ao asfalto. A lentidão dos carros. A encarnada estridência das sirenes. A pressa da ambulância, sua própria pressa. Gotas de suor banhando-lhe o rosto. Gritos brancos, olhos verdes, vermelhas chamas. O vermelho sangue dos carros de bombeiro. Jatos de água, úmidas cinzas. Vizinhos e, depois, família, condolências, missa de corpo presente, aqui jaz. A gratuidade da existência, a morte, a morte…

E quando, alguns dias depois, perguntaram-lhe como se sentia, ele – que já nada sentia – percebeu que estava cego.

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Sobre Morte e Bem-te-vis

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A meu avô Epifânio, que parece que ainda vive.

A meus pais, que me ensinam a envelhecer.

A meu amigo Ventura, que escolheu a hora e a forma de morrer.

Fonte: Google Imagens

Lembro-me de repente de quando era criança e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

É difícil, muito difícil falar sobre o envelhecer. Difícil e inútil… Falar sobre o envelhecer é uma outra forma de falar da morte e é também, sobretudo, envelhecer e morrer um pouco. Não falar é também morrer. Morre-se simplesmente, a toda hora, aqui, em um outro lugar… Ingênuos, corremos dessa realidade e – ao dela corrermos – morremos e envelhecemos, talvez ainda mais.

Tenho, aqui, a difícil pretensão de falar, ainda que muito superficialmente, sobre esse temido e desconcertante tema. Mas sei que, por mais que tente, apenas falarei de meu próprio processo. Não pretendo generalizações, mas certamente me trairei, pois algo como a própria morte nos assusta tanto que, sem dúvidas, querendo ou não, cairei em pequenas armadilhas linguísticas. Aliás, acabei de ficar preso na primeira delas: melhor seria dizer que a morte me assusta, no lugar de nos assusta, como acima mencionei. Em relação a isso, sei quase nada de mim e nada dos outros, portanto, o pronome no plural é certamente uma maneira de não olhar muito tempo ou muito diretamente para uma luz que, de outra forma, me cegaria.

Desconfio que, a esse respeito, qualquer texto que não parta tão somente da experiência das próprias senectude e morte são vãs palavras e tentativa vã de se escapar do pessoal e intransferível morrer.  É por isso que vejo mais riqueza no velho do que naquele que dele fala. O primeiro encara – da forma como lhe é possível – sua morte, este se defende da dele através de intrincadas construções discursivas. Portanto, é possível que o que aqui se venha a dizer não terá qualquer utilidade para os que lerem este texto. Mal e mal, será de algum uso para mim mesmo.

Recentemente, ao publicar, em uma rede social, um pequeno texto sobre  a morte e o envelhecer (dito esteja: meus, sempre meus) aconteceu algo curioso e este é o motivo que me faz, agora, querer falar algo mais sobre isso.

Apenas para contextualizar, transcrevo abaixo o que na ocasião escrevi e que causou, em alguns, certa comoção:

Tenho, ultimamente, pensado muito a respeito de minha morte. Não sei porque isso me ocorre às vezes, mas sei que – de nenhuma forma – isto me é agradável. Sei também que se morre todos os dias, mas há épocas em que sinto tão aguda e vivamente, em mim, meu gradativo processo de morrer, que me é impossível já não sentir também minha lenta e irreversível aniquilação física. Um dia, pela manhã, olho-me no espelho e, de repente, meus braços já não são os mesmos, a força de minhas pernas se esvaiu um pouco, meus cabelos mudaram juntamente com minha pele, meus olhos já não vêem o que antes viam, tenho marcas no rosto, pareço cansado. Em épocas como essa, estranho-me por inteiro e meu próprio nome, quando o pronuncio em voz alta, já não me é familiar. Quase não sei o que realmente restou de mim naquela estrangeira figura refletida no espelho. Penso no tanto que morri e no quanto matei. Penso também que minha hora se avizinha, que meu fim me acena e que a moça Caetana me espera na próxima esquina, pois o mundo já não me dá o doce conforto de sua familiaridade. E nessa fase, tudo, tudo é dúvida e estranhamento… Tudo é morte e, exatamente por isso, tudo é vida.

Algumas pessoas que leram a publicação ficaram mobilizadas, confortaram-me, sugeriram-me Deus etc. e, por fim, alguns amigos com quem há muito não falava me ligaram para saber como eu estava. Não posso deixar de agradecer a essas pessoas que, preocupadas, mostraram – cada um a sua forma – sua solidariedade. Este texto vai para elas, embora, como antes disse, talvez não lhes vá de nada servir.

Falar de envelhecimento é dizer de morreres… Todos estes pequenos morreres que a vida nos dá a farta bandeja e cotidianamente. A morte… A morte é dona de tudo, dizia Estamira (do documentário de mesmo nome, com a direção de Marcos Prado).

É estranho pensarmos no envelhecimento (e, por consequência, na morte) apenas quando estamos, cronologicamente e no que se convencionou chamar, velhos. Ingênuos novamente, não percebemos que  começamos a envelhecer quando viemos ao mundo (quem sabe antes?). Nascer é também envelhecer e, portanto, começar a morrer. Pergunto-me se não nascer também o seria, mas creio que tal questão vai muito além de minha compreensão. Deixo-a aos que dela entendem ou dizem que o fazem…. Mas devo confessar que me é muito difícil pensar em um envelhecer antes de um existir fisicamente. Contudo, envelhecer me fez incorporar a mim a característica de perceber que não sei sobre a maior parte das coisas do mundo.

Saber que não se sabe é um ponto importante do envelhecimento e isto tem tantas implicações que seria difícil, neste pequeno surto catártico-tanatológico, explicitar. Sim, tenho percebido, ao envelhecer, um certo respeito pelas coisas sobre as quais não sei e, ainda mais, uma desconfiança muito séria a respeito daquilo que imagino saber. Envelhecer é saber-se ignorante, é perceber que há mais beleza no que se ignora do que naquilo que se sabe. É mister que se diga que aqui não estou  a falar de uma ignorância  pura, simples, dada e marcada pela falta, mas a de um tipo que traz a marca da abundância e que só é adquirida através do exercício diário de morrer e de ser velho. Ou seja, refiro-me a uma ignorância a que, por falta de melhor nome, chamaria de cultivada. É preciso ser velho e saber cultivar a morte para cultivadamente ignorar.

Foto: Mardônio Parente

Há quem diga que há sabedoria nisso. Não estou muito certo a esse respeito, mas sei que nisso há angústia. Saber lidar com essa angústia é envelhecer, mas não saber também o é. Portanto, há apenas de se escolher (pois outra alternativa não há) que tipo de cotidiana morte se quer vivenciar.

Quanto a mim, envelhecer e morrer tem sido me deparar com minha pequenez diante do mundo, do tempo, da vida. Saber-me pequeno me leva ao exercício diário da humildade, aquele velho conceito que adquiriu, em nossa cultura, infelizmente, um aspecto quase completamente religioso. Envelhecer me mostra, mesmo que boa parte das vezes eu não consiga ter olhos para ver, que nós, bichos imperfeitos que somos, levamo-nos a sério demais. Mesmo sabendo que a morte nos ronda e que na próxima esquina a linda moça Caetana poderá nos beijar,  levamo-nos sempre em alta conta, como se indestrutíveis fôssemos.

Sabendo-me ignorante e pequeno, envelhecer – por consequência –  fez-me perceber, no outro, alguém que participa comigo desta insólita aventura errante: eu e ele presos a um minúsculo planeta de destino incerto. Embarcados nesta pequena nau esférica, em uma trágica travessia sem portos, vagando em um espaço-oceano infinito em tamanho e incertezas, eu e o outro, irmanados.

Fonte: Google Imagens

Envelhecer é também lidar  diferentemente com o tempo. Cronos, esse senhor, ao contrário do que possa parecer aos mais jovens, em geral, não aflige demais os velhos. Estes, já saturados pelo tempo, aprendem a metabolizá-lo de uma forma diferente. As marcas que os anos deixam no corpo, por exemplo, não são apenas os da degeneração física, mas – sobretudo – as cicatrizes que indicam como cada um digere o tempo, metaboliza-o.

Eu, por mim, tenho uma história (ou penso ter uma) para cada pequena marca que percebo em mim. Meus cabelos brancos, no tempo em que ainda era possível contá-los, tinham cada um deles um nome e, como tudo que tem um nome, uma história. Este pequeno pelo esbranquiçado em minha fronte, resultado de sonolentas aulas, é Ana; aquele, fruto de todas as monótonas cerimônias  de que já participei, é Bete; e assim por diante. Hoje, pela quantidade deles, já não é mais possível lhes dar a atenção merecida ou lhes pôr um nome. Minha atenção, quando se volta para isso, mantém-se tão apuradamente às voltas com os outros brancos fios mais as pequenas cicatrizes, rugas etc. (todos com suas diminutas biografias) que já não me é possível nominá-los, saber suas histórias, sequer contá-los.  Todavia, imagino que cada um deles, velhos que são, compreendem minha ausência, pois já não dou conta de relatar assim, de forma tão pessoal, cada uma das histórias que eles simbolizam e que me constitui como gente.

Sim, os velhos (eis outra característica do morrer) são mais compreensivos. E é importante que se diga que isso, embora parte das vezes leve a uma maior aceitação dos fatos da vida (e da morte), não quer dizer que os velhos entendem melhor as coisas. Compreender, aqui, vai no sentido de abranger. Os velhos compreendem exatamente no mesmo sentido em que – por exemplo – um estado compreende várias cidades. É neste sentido em que digo que os velhos são mais compreensivos. Outra forma de dizê-lo seria falar que os velhos são mais abrangentes.

Fonte: Google Imagens

Ser compreensivo, no sentido que dou ao termo, não raro, leva os velhos à não aceitação e à intolerância, pois – por vezes – é necessário compreender (ser abrangente) para saber da inutilidade e da futilidade de grande parte das coisas que aí estão. Quando, dentro de nós, abrangemos coisas (e todos os dias abrangemo-las mais), necessariamente, ligamo-las umas às outras. A consequência disso é percebê-las em suas relações intrínsecas, permitindo que se construa intimamente um grande quadro de produção de sentidos cada vez mais interligados. Em outras palavras: envelhecer é como, de repente, deparar-se com uma grande revelação. Recentemente, ouvi uma história, relatada por um amigo, que ilustra, de forma algo jocosa, esse tipo de compreensão do velho.

Um homem idoso teria entrado em uma loja para comprar uma camisa. Depois de escolher a roupa, a prestimosa vendedora ofereceu-lhe mais duas ou três peças. Depois de o velho negar algumas vezes as ofertas da moça e depois de a mulher insistir outras tantas, o homem, algo irritado, diz: Não quero, minha filha. Quero apenas uma camisa. Eu só tenho um corpo.

Morrer é também ir em direção à simplicidade: comprar apenas uma camisa, ter apenas um corpo… Tudo o mais que se diga é vão, diante da inegável realidade deste meu único e perecível corpo. E é por isso que agora encerro este texto.’

A rigor, não há sentido em continuar a escrever sobre o morrer enquanto o Sol ainda me brilha, um bem-te-vi canta estridente à minha janela – como se cantasse para mim – e a vida (quem sabe a morte) me chama do lado de fora.

Fonte: Google Imagens

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O humano, a loucura, a cidade

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Pagamos um preço alto por nossa condição de humanos. Angustiamo-nos com as coisas mais cotidianas: com a conta que está por vencer, mesmo sabendo que temos dinheiro para pagá-la; com a possibilidade de sol ou de chuva, mesmo impotentes em relação ao clima; com os filhos, quando os temos; e também com a falta deles, quando eles não vêm. Sofremos por tudo aquilo de incerto que nos cerca e, como não temos muitas certezas, sofremos por quase tudo. Temos medo também do que nos é certo. A morte, a certeza mais definitiva, apavora-nos.

Foto: Cristiano Mascaro

Por isso, enlouquecemos. A loucura é um fenômeno exclusivamente humano. Bichos não ficam loucos, pois enlouquecer é algo tão complexo que exige de quem o faz características só encontradas no pensamento do homem. Portanto, enlouquecer – de uma certa forma – é mais uma das certezas que temos. Se não é uma certeza para cada um de nós, o é para a humanidade como espécie. Não se conhece época ou cultura sem loucos.

Caminhando pela moderna cidade de Palmas, arrisco-me na escuridão das ruas (pela falta de iluminação pública) e no meio dos carros (pela falta de calçadas). Depois de notar que me esqueci, mais uma vez, de colar em minha camiseta uma faixa reflexiva para não ser atropelado, sentindo-me um alienígena e quase que pedindo desculpas ao mundo por minha atitude imprudente de voltar caminhando do trabalho para casa, decido andar pelas ruas internas das quadras. Lá, a cada vinte passos, preciso voltar a arriscar-me pela rua, já que vários moradores têm o curioso costume de estacionar seus carros sobre o passeio. Sem lugar, completamente sem lugar…

Mesmo assim, a caminhada me faz pensar. Entre um e outro susto, carros passando colados a mim, pergunto-me que espécie de espaço se está construindo aqui. Que cidade é esta em que não há lugar para gente?  Um motorista me olha com cara de poucos amigos. O pensamento mais que os pés, acostumados ao caminho de casa, divaga. Um automóvel entra em meu caminho, ou melhor, eu no dele. Ouço um xingamento. Penso em outras situações e, com pesar, noto que o trânsito é só mais uma – entre muitas – em que as pessoas, aqui, sentem-se como intrusas. Uma freada e outro xingamento. Penso agora nos que enlouquecem. Eu, que me considero quase normal, sinto-me sem canto. O que dizer dos que enlouquecem? Uma buzina quase me faz perder o foco. Onde estariam, a estas horas, os loucos daqui? Trancados em casa? Amarrados a uma cama de hospital? Medicados, trancados por dentro? Outra buzina. Sem lugar, completamente sem lugar…

A loucura foi acorrentada e afastada do convívio da cidade há cerca de 300 anos. Há duzentos, decretou-se que ela era uma doença. A partir daí, presa aos grilhões dos esquemas diagnósticos, a loucura pôde ser desacorrentada, mas permaneceu apartada da cidade, enclausurada no hospital. Foi lentamente deixando o manicômio após o advento das medicações que, se mal usadas, podem representar um novo aprisionamento, ainda que com lustrosas e modernas correntes. Hoje, com o desenvolvimento das diversas especialidades que se debruçam sobre a loucura, o louco parece dar mais um passo em seu longo e demorado caminho de volta à cidade. Contudo, cabe perguntar: em direção a que espécie de cidade o louco se encaminha?

Foto: Cristiano Mascaro

A cidade contemporânea, pretendendo-se eficiente e ordenada, não consegue, ao que parece, comportar a desorganização que a diferença em geral provoca. É como se houvesse, na cidade, um texto rígido a se seguir, sem possibilidade de rasuras. Toda nova escrita só pode ser admitida se não comprometer a ordem e a finalidade do texto como um todo. Mas, neste ponto, é importante uma observação: o ser humano, em geral, não segue textos e se os segue rigidamente, perde muito de sua humanidade.

Não é a toa que resolvemos um dia afastar a loucura de nosso convívio. Ao lado de razões de ordem econômica, decidimos manter a loucura longe de nossos olhos porque ela nos faz recordar uma daquelas certezas que nos angustiam. Conviver com o louco nos faz lembrar, de pronto, nossa condição de humanos e, tão só por isso, passíveis de enlouquecer. Portanto, negamos também nossa própria humanidade quando nos privamos do convívio com aquele que enlouquece.

E aqui, na jovem e modernosa cidade de Palmas, onde o espaço urbano possui um texto mas não conta histórias – porque quase não as tem para contar – o humano, coitado… Sem lugar, completamente sem lugar.

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Dois

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Este não é um ensaio de ballet. Este não é um ensaio na praia. Este não é um ensaio fotográfico. Este não é um ensaio nos cataventos. Este é um ensaio de dois corpos: o da bailarina e o do fotógrafo. Este ensaio só existe porque existem dois. Vão e vem juntos, vibram juntos, olham juntos, caem e levantam juntos. Fazem passé, dão clique, fazem demi-pliê, dão clique, fazem arabesque, dão clique, fazem en dehour, dão clique. O olhar do fotógrafo e o gesto da bailarina. A luz do sol que se põe e o barulho das ondas que quebram. Eles são puramente movimento. Eles são um par. Eles, enfim, dançam.

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Mais médicos, mais saúde?

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Resumidamente, o programa em questão tem três dimensões que se entrelaçam: o incentivo para que médicos – estrangeiros e brasileiros – fixem-se e trabalhem em áreas carentes de profissionais (pequenos municípios e periferias de grandes cidades); o investimento em infra-estrutura (construção e melhoria de unidades de saúde nos municípios que se cadastrarem no programa, compra de equipamentos, investimento em hospitais universitários etc.); além de uma dimensão que diz respeito à formação dos médicos (aumento do tempo de duração do curso de seis para oito anos e aumento do número de vagas tanto para a graduação quanto para a residência médica)1.  Cada uma dessas dimensões mereceria, por si, uma análise mais aprofundada, o que – obviamente – foge do objetivo deste texto.


É importante – contudo – que se note que não é necessária muita argúcia e nem é preciso nos determos tempo demais sobre o que se tem dito na mídia, para que possamos rapidamente concluir que o debate em torno do Programa Mais Médicos está temperado de ignorância, desinformação, alienação política, falácias mal disfarçadas  e, frequentemente,  uma pitada de arrogância.

As entidades médicas se mostram terminantemente contra o programa e baseiam seu posicionamento, principalmente, no fato de que a importação de médicos não obedecerá a legislação vigente. O Revalida – exame ao qual médicos, brasileiros ou não, formados fora do Brasil, devem se submeter caso queiram exercer a profissão no país, não será necessário para os médicos estrangeiros vindos através do Programa Mais Médicos.

O Revalida garante que uma instância superior julgue e certifique a habilitação do profissional, baseado no fato inquestionável de que aquele que é atendido por um médico não tem, em geral, condições de julgar a expertise deste. Aliás, exame semelhante, destinado a médicos, está presente em grande parte dos países do mundo. Neste sentido, e sem entrar na questão sobre qual seria a melhor maneira de julgar os conhecimentos de um profissional (talvez, o Revalida não seja mesmo a melhor forma), o exame é de fundamental importância, assim como é importante que, diante da incapacidade de um leigo em julgar as habilidades de um piloto de avião, algum órgão competente o faça. O Governo Federal, por sua vez, contesta a argumentação das entidades médicas, à medida em que o Programa Mais Médicos pressupõe uma capacitação com duração de três semanas para os médicos estrangeiros a ele vinculados, ao final das quais o profissional será avaliado, podendo ser desligado do programa em caso de reprovação1.

Outro argumento corrente das entidades médicas e que faz parte do discurso oficial da classe (como se pode ver no link a seguir: http://www.crmpb.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=22138:a-solucao-nao-e-f..) é o de que não faltam médicos no Brasil, já que o país, com cerca de 1,8 profissional para cada mil habitantes, teria mais médicos do que o que é preconizado como ideal pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que seria 1 profissional para cada mil habitantes.

Misteriosamente, aqueles que divulgam tal dado, mesmo em textos acadêmicos,  jamais esclarecem exatamente de onde o tiraram e não mostram qualquer documento, trabalho ou estudo da OMS que o confirme. Neste ponto, não se pode deixar de comentar, em nome de um debate honesto e informativo, que o motivo de tal omissão é tão simplesmente por ser esse um dado falso e a divulgação dele só pode se justificar pela ignorância ou pela intenção de confundir. A Organização Mundial da Saúde não recomenda qualquer proporção ideal médico/habitante e o motivo disso é claro como o Sol: afinal, como se poderia recomendar a mesma taxa, seja ela qual for, de modo a contemplar lugares tão díspares como, por exemplo, a Amazônia, o Saara, Tóquio e São Paulo? E é exatamente pelo mesmo motivo que a proporção inglesa de 2,7 médicos para cada mil habitantes, almejada pelo Governo Federal, é tão arbitrária e aleatória quanto qualquer outra, já que dois países cultural, geográfica, histórica e politicamente tão distintos quanto a Inglaterra e o Brasil têm certamente necessidades de saúde amplamente diferentes.

Não se pode deixar de comentar, também em nome da honestidade, a respeito do uso político e eleitoreiro que a presidente Dilma Rousseff tem feito do Programa Mais Médicos e, assim como outras partes envolvidas no debate (incluindo aí as próprias entidades médicas), o discurso da presidente, não raro, visa mais confundir que esclarecer, de forma que alguns dados são obviamente manipulados. É interessante e curioso notar, por exemplo, que o discurso proferido pela presidente no dia 21 de junho deste ano, após as manifestações do dia dezessete, onde Dilma prometeu trazer de imediato milhares de médicos do exterior2,  o que causou pruridos entre as entidades que representam a classe, foi “coincidentemente” seguido da publicação, apenas 12 dias depois, de um estudo do IPEA (órgão do governo) que aponta a Medicina como a carreira mais bem remunerada entre as quarenta e oito carreiras universitárias pesquisadas3.

Ora, em um país como o Brasil, em que o salário médio de profissionais de nível superior, segundo o próprio IPEA3, não passa de R$ 2.400,00, não se pode dizer francamente que um médico ganhe pouco (segundo o mesmo estudo, o salário médio do médico brasileiro gira em torno de R$ 8.500,00). O salário inicial de um médico na Inglaterra, segundo site oficial do próprio governo inglês, equivale a algo em torno de R$ 6.400,004, ou seja, mais baixo do que o salário de R$ 10.000,00 oferecido pelo Programa Mais Médicos. É claro que, considerando os benefícios sociais a que os ingleses têm direito, a comparação não pode ser feita assim de forma direta e sem as devidas ressalvas.

Contudo, a imagem do médico – divulgada pela imprensa, disseminada socialmente e apoiada pelo discurso oficial do governo – como um profissional nababescamente remunerado e da Medicina como uma  profissão que garantirá o enriquecimento fácil daquele que a exerce faz parte de um conjunto de manobras claras para a manipulação da opinião pública e tem – por consequência – efeito danoso à imagem e à representação social que tem a Medicina e os médicos como um todo.  Pintar a Medicina com essas cores é esquecer outros matizes que talvez demonstrem que o que se tem demandado desse profissional, muitas vezes, está além de suas possibilidades pessoais.

Inúmeros estudos têm demonstrado, com dados estatísticos bem consistentes, que a vida profissional dos médicos, no Brasil e no exterior,  não parece ser exatamente esse mar de rosas que se pinta. Se não, como explicar o fato de os médicos mentalmente adoecerem mais5 e se matarem mais do que a população em geral?6,7,8,9,10. Como explicar o resultado de um estudo escocês,  que mostra que os médicos têm duas vezes mais chance do que outros profissionais tanto de serem dependentes de álcool quanto de serem tratados por doenças afetivas?11 O que significa o achado de  que os médicos, quando comparados a outros profissionais de mesmo nível sócio-econômico, tendem a ter casamentos mais pobres, além de fazerem mais uso de tranquilizantes e anfetaminas?12

Muitos outros aspectos dessa discussão não têm sido convenientemente abordados pelos diversos setores que se ocupam da questão, ora por ignorância ora por leviandade. Entre eles, os quase 15 bilhões de reais que serão investidos (boa parte deles nos municípios) em vésperas de uma campanha eleitoral.

Contudo, há uma questão maior e anterior, que perpassa o Programa Mais Médicos e que não tem sido abordada seriamente, que é o fato de se atribuir ao médico a responsabilidade quase exclusiva pela melhoria (e, consequentemente, pela atual precarização do Sistema Único de Saúde), como se um bom sistema de saúde fosse feito apenas por médicos. Tal fato representa uma flagrante contradição em relação ao que o próprio SUS preconiza: um conceito ampliado de saúde que reconhece a importância de outras disciplinas na construção de um saber e de uma prática holísticos nessa área. A hegemonia da Medicina frente a outras disciplinas da área da saúde é algo apregoado aos quatros ventos pelas entidades médicas e, nesse momento, aparentemente, os médicos estão colhendo os frutos de sua própria arrogância classista.

A ideia de saúde baseada em um modelo biologicista, em que a Medicina aparece como atriz principal, tem se mostrado claramente insuficiente para responder às demandas de saúde da população, uma vez que aborda o homem a partir de uma mirada única, transformando-o em um mero depositário de órgãos e tecidos e à doença em um simples desarranjo desses órgãos, sem que se leve em conta os muitos outros aspectos que contribuem para a saúde ou  o processo de adoecimento humano. Tal questão é algo que nem as entidades médicas nem o Governo Federal abordam francamente no debate, pois – aparentemente – esse é um ponto de convergência em seus discursos, já que tal forma de se fazer saúde interessa a ambas as partes neste momento.

É necessário que se faça notar que aqui não há uma crítica à Medicina em si, mas à transformação do modelo biomédico em prisma único através do qual se deve olhar a saúde. Nesse sentido, qualquer outro modelo que não permitisse uma ideia integradora do processo de adoecimento humano seria tão danoso quanto o ora hegemônico.

Em relação a isso e para finalizar este texto, que já não está tão curto quanto manda o bom senso, torço para que outras profissões da área da saúde se organizem e exijam sua participação no programa em questão, sob pena de que se vejam transformar em meras coadjuvantes no processo de construção SUS  e de que fiquem omissas diante do Programa Mais Médicos, que – a rigor – representa um reafirmação espetaculosa e oficial do modelo biologicista acima comentado.

Quem sabe assim, ao invés de Mais Médicos, pudéssemos realmente  alcançar mais saúde?

Referências:

1.Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/area/417/mais-medicos.html. Acessado em 25 de julho de 2013.

2.Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/dilma-comenta-os-protestos-no-brasil-leia-a-integra-do-discurso. Acessado em 25 de julho de 2013.

3.Disponível em:  http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/radar/130703_radar27.pdf

4. Disponível em: http://www.nhscareers.nhs.uk/explore-by-career/doctors/pay-for-doctors/. Acessado em 25 de julho de 2013.

5. BENNETT G. The wound and the doctor. In: Healing technology and power in modern medicine. London: Secker and Warburg, 1987:14-28.

6. SIMON W, LUMRY GK. Suicide among physician-patient. J Nerv Ment Dis 1968; 147(2): 105-12.

7. ROSS M. Suicide among physicians: a psychological study. Dis Nerv System 1973; 34(3): 145-50.

8. RICHINGS JC, Khara GS, Mc Dowell M. Suicide in young doctors. Br J Psychiat 1986; 149: 475-8.

9. ROSE KD, ROSOW I. Physicians who kill themselves. Arch Gen Psychiat 1973; 29: 800-5.

10. AGARIE CA, LOPES PS, CORDÁS TA. Suicídio, “Doença das condições do trabalho” entre médicos e estudantes de medicina. Arq Med ABC 1983; 6(1:2): 5-7.

11. RUCINSKI J, CYBULSKA E. Mentally ill doctors. BrJ Hosp Med 1985;33:90-4.

12. VAILLANT G, BRIGHTON J, McARTHUR  C. Physicians use of mood-altering drugs. N Engl J Med 1970;282:365-70.

Ultimamente, temos visto na mídia diversas manifestações, tanto individuais quanto coletivas, relacionadas ao Programa Mais Médicos, do Governo Federal. As entidades médicas andam em polvorosa com a promessa de importação de médicos estrangeiros para o país e não é diferente com a população em geral, que tem se manifestado ora a favor ora contra o programa. Diversos dados, estatísticas e opiniões (referentes ao número de médicos no Brasil, aos benefícios e malefícios de um programa como esse etc.) têm povoado jornais, televisão, revistas e sítios naweb.

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Homens do mar

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“O homem do mar me atravessa o pensamento com força.”

 Os homens que se entregam ao mar nos botes/canoas/jangadas têm seus caminhos feitos de vento e de água na conjunção com o barco. As insígnias maiores do trabalho da pesca em alto-mar são a liberdade e, ao mesmo tempo, o perpétuo esforço. Quem diz como será a pescaria não são os homens que habitam temporariamente as embarcações, mas o próprio mar. O pescador sai do porto e tropeça em ondas, desliza em correntes marítimas, iça a vela, usa tempestades para locomoção, gira o mastro, faz da calmaria oportunidade para contar causos, ancora, lança redes, linhas, tarrafas, navega, navega, navega, navega…

O homem do mar me atravessa o pensamento com força. Aliás, assim é ele: um homem forte. Forte ao transportar cargas, limpar o barco que lhe abriga e carrega, suportar a solidão, pescar seu sustento, fazer viver histórias do seu casamento com o mar.

Ariana Campana

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