Before Midnight – Antes da Meia-Noite

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Com uma indicação ao Oscar:
Melhor Roteiro Adaptado

Jesse: Não posso acreditar que tenho 41 anos.
Celine: Também não. Estamos tão velhos.
Nunca pensei que iria dormir com alguém com mais de 40.

Enquanto em Antes do Amanhecer (1995) Celine aceita o convite de um estranho e sai para um passeio noturno em Viena, em Antes do Pôr-do-Sol (2004) a decisão súbita veio de Jesse, ao deixar subentendido que iria perder o voo. Ao ficar, Jesse cria uma possibilidade de futuro bem mais complexa do que aquela que eles sonharam aos 23 anos. Com essa decisão, ele deixa para trás um casamento desgastado, mas também a convivência diária com o filho. Assim, se nos dois primeiros filmes vimos “possibilidades”, em Antes da Meia-Noite (2013) temos a consequência dos condicionais lançados, ou seja, temos a realidade de Jesse e Celine como casal.

E a realidade nunca é plenamente suave, mas, talvez, por isso mesmo seja mais interessante. No início do filme, durante a despedida de Jesse e seu filho (de 13 anos) no aeroporto, vimos que a decisão tomada em 2004 acarretou no distanciamento que ele tanto temia. É nítido que a ex-mulher o odeia, que ele tem dificuldade para superar a distância e o silêncio depois de cada frase com o filho mostra que é complicado fazer parte da vida de alguém, especialmente, se o tempo para isso é breve.

 

Celine: Lembra da carta que me deixou ler que escreveu quando tinha 20 anos pra você mesmo aos 40? […] Você ainda é o mesmo. Mas acreditamos que estamos evoluindo.

Jesse: Sabe que acho que mudei muito. Quando eu era mais jovem, apenas queria que o tempo corresse para que eu pudesse estar sozinho, ser livre dos meus pais, da escola e outras merdas, só queria fechar os olhos e acordar como um adulto. E agora sinto que isso passou e eu quero que tudo ande mais devagar. 

 

“Antes da meia-noite” tem como cenário uma ilha grega, em que Jesse e Celine, juntamente com suas filhas gêmeas, passam as férias. O roteiro é assinado novamente pelo trio (Linklater, Ethan e Julie) e, segundo Ethan (1), “como os dois primeiros filmes foram mais uma projeção romântica, o terceiro tinha que ser o oposto disso”. E Linklater acrescenta “os filmes anteriores foram sobre a exploração de uma conexão que não tinha sido totalmente definida. O que é maravilhoso, mas quanto tempo você pode explorar isso? O fato de que eles ainda estejam juntos é muito romântico. Mas é um romance diferente, mais árduo”.

 

“Estou feliz que você tenha tempo de contemplar o universo e tenha problemas existenciais, porque eu não tenho. Eu quase não tenho tempo para pensar.”  (Celine)

 

Acho que o grande desafio para o trio de roteiristas foi apresentar o romance no cotidiano, considerando as frustrações e conflitos que estão presentes em vários níveis e sob certos disfarces.  Quanto mais profunda é a rotina, mais fácil parece ser evitar pensar no presente. Assim, projeta-se um futuro, divaga-se sobre o passado, mas o presente, esse, permanece preso e seguro a uma espécie de teia formada pelas atividades diárias, por afirmações lançadas aparentemente sem contexto e pelo cansaço natural.

Na primeira parte do filme, Jesse e Celine estão com um grupo em uma longa cena de jantar. De certa forma isso foi necessário porque já não é tão natural uma conversa entre os dois sobre coisas banais e divertidas ou existenciais e reflexivas como aconteceu nos outros filmes.

“Uma vez que essas pessoas estão juntas há anos, o que elas têm a dizer uma para a outra? Isso levou a cena gigante do jantar, que nos deu uma desculpa para sabermos sobre eles a partir de uma conversa com outras pessoas”. [1] (Ethan Hawke, 2013)

Eles pedem a Jesse e Celine que contem sua história a um jovem casal. A partir disso, vem à tona o tema “almas gêmeas”, enfatizando os casais que passaram uma vida inteira juntos.

“A mãe de minha avó escreveu para toda a família uma carta de 26 páginas em seu leito de morte. Ela escreveu três páginas sobre um traje que fez para uma peça e apenas um parágrafo para o marido. […] Sobre meu bisavô, ela mencionou três coisas: foi para a guerra, mudou por causa do trabalho e morreu! Seu grande conselho foi para não sermos consumidos pelo amor romântico.  Amizades e trabalho deram a ela a maior felicidade.”(Anna)

“Quando penso no meu marido, o que eu mais sinto falta é a forma como ele se deitava ao meu lado à noite.  […] Ele aparece e desaparece como um amanhecer ou um pôr do sol. É tudo tão efêmero. É como a nossa vida, nós aparecemos e desaparecemos. E nós somos tão importantes para alguns. Mas estamos apenas de passagem.” (Natalia)

“Nunca fomos um, sempre fomos dois e assim nós preferimos.  […] No final do dia, não é o amor de uma pessoa que importa, e sim o amor pela vida.”  (Patrick)

 

A partir dessa conversa é mais fácil entender a lógica para o suicídio dos amantes adolescentes na obra de Shakespeare. Seria difícil para qualquer escritor eternizar o amor entre duas pessoas se isso não acabasse tragicamente cedo ou se não fosse mostrado apenas a parte da euforia, da paixão e dos sonhos exuberantes.

Mostrar a continuação da vida de Jesse e Celine, considerando o que foi apresentado nos filmes anteriores, ou seja, um casal com ideais românticos elevados, ainda que críveis, deve ter sido um quebra-cabeça para os roteiristas. Julie Delpy sintetiza essa complexidade assim: “Agora eles estão juntos. Eles estão lidando com a questão real de encontrar a sua alma gêmea e viver com ela.” [2]

 

“Sinto falta disso, de ouvir você pensar…” (Jesse)

A parte central do filme, que é o segundo momento da história, passa-se em um quarto de hotel. Ali, sem as filhas, sem as vozes das outras pessoas, nas horas que antecedem a meia-noite, tem-se o cenário para o romance e o embate.

O diretor optou por fazer cenas longas, filmadas sem cortes, o que ajuda a mostrar toda a tensão que existe, mesmo quando eles estão, aparentemente, se entendendo. O carinho mútuo e o desejo urgente de um pelo outro não são suficientes para criar um ambiente de harmonia. Basta uma ligação do filho de Jesse, que preferiu falar com Celine ao invés do pai, para trazer à superfície toda a dor e a raiva que estavam contidas.

 

Celine: é estranho – eu sempre tive esse sentimento, não importa onde eu estou na minha vida, que é tanto uma lembrança ou um sonho.

Jesse: Eu sei , você sempre pensou isso. Eu também. É como… esta é realmente a minha vida? Isso está acontecendo agora?

Em um dado ponto desse embate, provavelmente alguns mais românticos preferissem que a história tivesse sido concluída em “Antes do Pôr-do-Sol”, ao som de Nina Simone e na expectativa sobre a longevidade daquele reencontro. Mas, talvez seja a “queda” dessas expectativas mais românticas que torna esse filme tão interessante.

Toda essa raiva latente que foi trazida à tona no quarto do hotel nos permite enxergar nesse casal aqueles Jesse e Celine do início. De certa forma, essa explosão de emoções mostrou que ainda há sentimentos profundos e, quem sabe, esteja aí a grande vertente romântica desse filme, que é a exploração da realidade, não de projeções de uma relação ideal, que só existe no campo do imaginário ou dos sonhos.

REFERÊNCIAS:

[1] http://www.nytimes.com/2013/05/05/movies/ethan-hawke-and-julie-delpy-discuss-before-midnight.html

[2] http://www.thetranscript.com/ci_23317424/one-more-shot-at-romance-before-midnight

Leia mais sobre a trilogia “before”:

Antes do Amanhecer: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/13/Before-Sunrise-Antes-do-Amanhecer

Antes do Pôr-do-Sol: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/14/Before-Sunset-Antes-do-Por-do-Sol

FICHA TÉCNICA:

ANTES DA MEIA-NOITE

Título Original: Before Midnight
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater, Ethan Hawke e Julie Delpy
Elenco: Ethan Hawke e Julie Delpy
Ano: 2013

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Before Sunset – Antes do Pôr-do-Sol

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“Uma noite, sonhei algo estranho. Na verdade, foi um pesadelo. No pesadelo, eu tinha 32 anos. Depois, acordei e ainda tinha 23. Foi um alívio. Depois, acordei mesmo e tinha 32.”(Jesse)

“Não somos pessoas verdadeiras, certo? Somos apenas personagens do sonho daquela velha senhora. Ela está no seu leito de morte, fantasiando sobre sua juventude.” (Celine)

 

No final de “Antes do Amanhecer”, Celine e Jesse decidiram que se encontrariam novamente em dezembro daquele ano (1995).  Assim, não trocariam endereços, nem telefones, nem diriam seus sobrenomes. O bom de quando se tem 20 e poucos anos é que somos capazes de brincar com as amarras do tempo e dos acontecimentos. Nem nos damos conta de que os fatos se sucedem implacavelmente, mesmo contra nossa vontade, transformando nosso ingênuo “livre arbítrio” em um conceito cambaleante entre dois polos: a realidade e o sonho.

 

“Quando você é jovem, acredita que vai se ligar em muitas pessoas. Mais tarde na vida, você percebe que só acontece algumas vezes.”(Celine)

 

Em “Antes do Pôr-do-Sol” vimos que o encontro não aconteceu. Nove anos depois (2004), ouvimos Jesse falando, em uma pequena livraria de Paris, sobre um casal e sobre o significado da variável “tempo” (“o tempo é uma mentira”) numa sessão de autógrafos de seu livro. É nesse contexto que ele encontra Celine e enquanto tenta conversar com ela, é lembrado pelo dono da livraria que precisa chegar ao aeroporto até o início da noite. Nesse momento, o tempo parece não ser uma mentira, é real, irônico e cruel.

O roteiro, assinado por Richard Linklater, Ethan Hawke e Julie Delpy, apresenta diálogos rápidos, repleto dos mais variados temas, na urgência que define o encontro de uma vida. Mas agora isso também vem permeado pelas lembranças do passado e pela ausência de inocência sobre a importância que esse encontro pode ter na redefinição do futuro.

 

Celine: Ler algo sabendo que o personagem foi baseado na gente é lisonjeiro, mas ao mesmo tempo incomoda.
Jesse: Incomoda como?
Celine: Sei lá. Saber que fazemos parte das lembranças de alguém. Me ver através do seu olhar. Quanto tempo levou para escrever o livro?
Jesse: Três ou quatro anos, mais ou menos.
Celine: É muito tempo para escrever sobre uma noite.

 

O fato de Ethan e Julie serem responsáveis pelos diálogos dos seus personagens dá uma veracidade ainda maior ao encontro, pois acreditamos que a Celine e o Jesse, agora com 32 anos, são essas pessoas melancólicas, com dificuldades em manter um relacionamento, mas, ainda assim românticas, que vemos nesse filme.

O tempo passou, houve o amadurecimento natural, mas enxergamos a Celine nessa idealista que se formou em Ciência Política e que faz ações práticas para mudar o mundo. Assim, como é possível entender que o Jesse, aquele que tinha ideias bizarras sobre programas de TV, tenha se tornado o escritor de sua história. E o fato do diretor filmá-los em seu breve passeio por Paris em grandes cenas sem cortes dá a impressão de que o filme acontece em tempo real.

 

“Acho que ninguém muda. Ninguém quer reconhecer, mas nascemos com referências e nada que acontece com a gente muda nossas tendências. […] Li um estudo sobre gente que ganhou na loteria e gente que ficou paraplégica. Imaginamos que um ficaria eufórico e o outro, com tendências suicidas. Mas o estudo mostra que, depois de seis meses, assim que as pessoas se adaptam à sua nova situação continuam a ser como eram. […] Se eram pessoas otimistas e alegres se tornam pessoas otimistas em cadeiras de rodas. Se forem chatas e imbecis, se tornam chatas e imbecis com casas e carros novos.” (Jesse)

 

A questão é: por que eles falam tanto sobre tantas coisas e não vão direto ao ponto? Não perguntam o que representou aquela noite em suas vidas, ou se estão apaixonados pelos seus companheiros? Mas, se essas questões viessem à tona diretamente, eles não seriam Jesse e Celine. Primeiro, eles precisam discutir sobre os universais que regem o mundo, assim como sobre os detalhes que definem quem eles são. Por isso que não estranhamos quando Jesse indaga “se nunca quiséssemos nada, nunca seríamos infelizes?”.

Mesmo sem ter à mão um livro de autoajuda, ou ter feito um curso de psicologia à distância, Celine reflete sobre a indagação com uma série de questões que carregam em si suas próprias respostas:

“Não querer nada não é sintoma de depressão? Isto é, é saudável sentir desejo, certo? Sinto-me viva ao querer algo além do que preciso para sobreviver. Desejar intimidade com alguém, ou um par de sapatos, é lindo. É bom sentir que nossos desejos se renovam, não é?”

Mas, os subterfúgios em um dado momento se esgotam, assim como o tempo que eles têm para ficarem na companhia um do outro. Então, em meio ao cinismo que parece ser tão peculiar no que concerne às relações depois dos 30, eles aos poucos mostram que existem alguns traços da personalidade que, de fato, não mudam.

E esse seria um momento adequado, estando no contexto (En)Cena, para trazermos uma discussão sobre a dicotomia inato/adquirido, sobre comportamentos que são definidos pelos nossos genes ou que são determináveis pelo meio [1]. Enfim, “seria”… Mas não vou. Prefiro acreditar que Jesse, ao divagar inicialmente sobre a variável “tempo”, tenha feito uma releitura romântica de Einstein: “Para aqueles de nós que acreditam na física, esta separação entre passado, presente e futuro é somente uma ilusão” [2].

 

Jesse: Lembro mais daquela noite do que de todos os anos que vivi.
Celine: Fico feliz que você diga isso, porque sempre sinto que sou anormal por não conseguir seguir em frente. As pessoas têm um caso, ou até relacionamentos, terminam e esquecem tudo. Muda como trocam de marca de cereal. Sinto que não esqueço as pessoas com as quais estive porque cada uma tem qualidades específicas. Não dá para substituir ninguém. O que foi perdido está perdido. […] Não se pode substituir ninguém porque todo mundo é uma soma de pequenos e belos detalhes. Lembro que a sua barba tem fios avermelhados e que o sol os fez brilhar naquela manhã, um pouco antes de você partir. Lembrei disso, e senti saudades.

E quando eles finalmente revelam a importância daquela noite em suas vidas, concluímos que talvez a brevidade de alguns acontecimentos não implique necessariamente no grau de sua intensidade. Nossa memória, essa que parece criar artifícios para nos fazer suportar certos fatos da vida, pode estabelecer conexões mais profundas entre determinadas situações emocionais. E essas conexões não parecem se relacionar diretamente com o tempo, mas com aquilo que nos toca mais profundamente.

 

“Mas sinto que, se alguém me tocar, eu dissolveria em moléculas.” (Jesse)
“Quero ver se você fica bem ou se vai se dissolver em moléculas.”(Celine)

 

Nas horas que antecedem ao pôr-do-sol, que culminará na consequente volta de Jesse aos Estados Unidos, é mostrado que a conexão entre eles permanece, mesmo que tudo ao redor tenha um aspecto nebuloso e transitório. A importância que eles deram a um único encontro talvez possa ser compreendida como uma forma de fuga, já que é mais fácil acreditar que um relacionamento não vivido seja o ideal, pois não vem acompanhado pelo desgaste natural da rotina. Mas, por outro lado, pode ser que determinadas afinidades não sejam estabelecidas com muita frequência e, se eles identificaram isso, arriscar relações longas, mas superficiais, em prol de uma relação tão intensa, embora breve, seja o mais sensato, por mais paradoxal que isso pareça. As relações humanas são extremamente complexas, assim, nesse contexto, a contradição não é apenas aceitável, é, possivelmente, a única forma de coerência.

REFERÊNCIAS:

[1] The Distinction Between Innate and Acquired Characteristics. Disponível em http://plato.stanford.edu/entries/innate-acquired/

[2] http://www.alberteinsteinsite.com/quotes/einsteinquotes.html

Leia mais sobre a trilogia “before”:

Antes do Amanhecer: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/13/Before-Sunrise-Antes-do-Amanhecer
Antes da Meia-Noite: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/15/Before-Midnight-Antes-da-Meia-Noite

FICHA TÉCNICA:

ANTES DO PÔR-DO-SOL

Título Original: Before Sunset
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater, Ethan Hawke e Julie Delpy
Elenco: Ethan Hawke e Julie Delpy
Ano: 2004

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Before Sunrise – Antes do Amanhecer

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“Acredito que se há algum Deus, ele não estaria nem em você nem em mim, mas nesse espaço que existe entre nós. Se há algum tipo de magia no mundo, ela deve estar na tentativa de entender e compartilhar algo com alguém. Sei que é praticamente impossível conseguir. Mas e daí? A resposta deve estar na tentativa.” (Celine)

 

“Antes do Amanhecer” estreou em 1995. Nessa época, a internet ainda não tinha sido massificada, não havia Google, nem Facebook e os celulares se assemelhavam a um tijolo. A contextualização é importante porque a história do filme poderia ser inverossímil nos dias de hoje, já que as relações, por mais breves que sejam, vêm sempre acompanhadas por um agregado de informações, seja um “curtir” em uma rede social, ou uma foto com filtro publicada no Instagram.

Celine e Jesse, uma francesa e um americano, ambos com 23 anos, se conhecem em um trem em direção a Viena. Resolvem, num impulso, passar o final da tarde e a noite juntos na cidade. Na manhã seguinte, ela seguirá para a França e ele partirá num voo para os Estados Unidos. Mas, talvez, a história se resuma numa simples constatação dita por Celine: “Isso parece uma fantasia masculina: conhecer uma garota francesa num trem, transar com ela e nunca mais vê-la novamente.

Navegando a ermo pela net, constato que “Antes de Amanhecer” se tornou um filme inesquecível para muita gente. E, quando penso sobre isso, acredito que uma das razões seja o fato das duas pessoas retratadas ali, apesar de serem tão singulares, parecerem tão reais. Elas podem ser alguém que já encontramos em algum lugar distante, quando estávamos sozinhos, ou alguém que ainda iremos encontrar. E enquanto pipocam por aí filmes que usam uma série de artifícios para servir de base para uma história de amor, esse filme tem apenas dois personagens nomeados (Celine e Jesse). Não há a divertida melhor amiga da mocinha, nem a mãe ciumenta do rapaz ou o chefe irritante. E é isso que torna o filme tão interessante, ele mostra que, de fato, cada um de nós carrega consigo um diversificado universo, que pode vir à tona quando dialogamos com alguém sem tantas amarras sociais e compromissos. Por isso, às vezes, é tão encantador simplesmente ouvir/ver duas pessoas conversarem.

Richard Linklater (diretor e roteirista), Ethan Hawke e Julie Delpy criaram um dos momentos mais intimista do cinema ao permitir que tantas pessoas pudessem enxergar o mundo que existe no interior dos dois personagens, acompanhando-os em uma noite de suas vidas. Se Celine e Jesse não tivessem a certeza da brevidade do encontro, muito provavelmente não se revelariam tanto.

Celine: Eu acho que é porque eu sempre tenho esse sentimento estranho de que eu sou essa mulher velha se preparando para a morte. De que minha vida é um resumo das memórias dela.

Jesse: Isso é tão louco. Sempre penso que ainda sou um garoto de 13 anos, que ainda não sabe como ser um adulto, fingindo viver minha vida, cuidando para quando realmente for um. Como se estivesse num ensaio para uma peça de teatro.

Celine: Então, lá na roda gigante, foi uma mulher velha beijando um jovem garoto, certo?

A velha e o menino que andam pelas ruas de Viena, talvez pelo pouco tempo que lhes resta, têm uma urgência em falar sobre os mais variados assuntos. Nas palavras jogadas de forma desordenada e meio caótica, tem-se de tudo, de Deus à morte, de casamento Quark a ritos sexuais de insetos.

“Eu sempre gostei da ideia de que todas essas pessoas desconhecidas estão perdidas no mundo. Quando eu era pequena, pensava que se nenhum conhecido seu soubesse que você havia morrido, não seria tão ruim assim. As pessoas podem inventar o melhor e o pior pra você”. (Celine)

Imaginem o quão libertador seria se encontrássemos um desconhecido em algum lugar do mundo e pudéssemos simplesmente expor a ele nossos mais estranhos pensamentos sem termos que criar artifícios para nos moldar ao precioso círculo da “normalidade”. Então, poderíamos divagar – como Jesse – e, em um dado momento, refutar religiões ou corroborar com algum tipo de crença maluca ou ingênua:

50 mil anos atrás não havia nem um milhão de pessoas no planeta.  Há 10 mil anos havia 2 milhões de pessoas. Agora temos cerca de 5 ou 6 bilhões,  certo? Então, se temos uma alma individual, de onde vieram todas as outras? Será que as almas novas são uma fração das originais? Porque se elas são, isso representa uma divisão de uma alma em 5 mil, apenas nos últimos 50 mil anos. O que não é nada comparado à idade da Terra. Na melhor das hipóteses, somos uma dessas pequenas frações… Será por isso que estamos todos tão afastados? Será por isso que somos tão limitados? (Jesse)

E em meio a uma explosão de diálogos sobre os assuntos mais variados percebemos que Jesse e Celine passam por vários estágios emocionais. Esses estágios vão desde o cinismo perante alguns fatos da vida e a uma visão pessimista sobre alguns aspectos da natureza humana até a simples constatação de que alguns dos gestos mais simples e cotidianos podem ser os mais significativos, aqueles que nos lembraremos mesmo diante da implacável passagem do tempo.

“Gosto de sentir seus olhos em mim quando desvio o olhar.” (Celine)

Linklater conseguiu transformar a cidade de Viena em uma espécie de folha em branco para que Celine e Jesse escrevessem sua brevíssima história. E isso parece que foi possível somente porque eles não tinham um passado juntos ou a possibilidade de um futuro. De certa forma, pensar sobre isso provoca até um certo incômodo, especialmente quando percebemos que a rotina e todas as obrigações sociais agregadas a ela limita uma característica aparentemente tão humana: a capacidade de enxergar o outro.

“Eu tenho a sensação de que estamos sonhando. […] É como se o tempo em que estamos juntos fosse só nosso. Como se fosse uma criação nossa.” (Jesse)

“Como se eu estivesse no seu sonho, e você no meu, ou algo do tipo.” (Celine)

Essa liberdade que eles sentem nessa convivência tão súbita e breve e sua associação às manifestações que rementem aos sonhos é, em alguns aspectos, bem freudiano.

A fórmula que, no fundo, melhor atende à essência do sonho é esta: o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (recalcado). O estudo do processo que transforma o desejo latente realizado no sonho no conteúdo manifesto do sonho – processo conhecido como trabalho do sonho – ensinou-nos a maior parte do que sabemos sobre a vida mental inconsciente. (FREUD, 1924 [1923]/1987, p.249).

Ou seja, se essa relação só existe para eles como se fosse vivida apenas numa espécie de sonho, então não há compromisso com a realidade, logo também não precisa estar presa às regras que acompanham nosso estado consciente.

Telas de Georges Seurat

“Suas figuras humanas são sempre tão transitórias.” (Celine)

Quando Celine vê um cartaz de uma exposição das telas de George Seurat, um pintor francês do século XIX, e fala do quanto seu trabalho a impressiona, percebemos que as figuras humanas tão nebulosas naquelas pinturas funcionam como uma metáfora para o filme. A técnica usada por Seurat, denominada Pontilhismo, vem de uma vertente do Impressionismo e utiliza os pontos justapostos como uma forma de apresentar “o desprezo dos impressionistas pela linha, uma vez que esta é somente uma abstração do Homem para representar a natureza”.  Então, considerando nossa transitoriedade e a impossibilidade de delimitarmos linhas precisas que nos separem de indivíduos e coisas, parece mais fácil entendermos a ligação estabelecida de forma tão rápida e tão profunda entre essas duas pessoas.

Quase 20 anos depois do primeiro filme, a história de Celine e Jesse se transformou numa trilogia, em um caso único no cinema em que a vida de dois personagens acompanha o processo de amadurecimento dos próprios atores. Em 2004, eles mostraram o que aconteceu com os dois após os nove anos que se passaram depois do primeiro encontro em Viena (Antes do Pôr-do-Sol) e em 2013 ficamos sabendo como estão suas vidas aos 40 (Antes da Meia-Noite). E em meio há tantos filmes com histórias de amor superficiais ou estúpidas demais, a história destas duas pessoas nos faz pensar inevitavelmente na variável tempo, tão temida e complexa.  Diante das rugas inevitáveis, das responsabilidades que acompanham a vida adulta e do pouco tempo destinado à reflexão e aos sonhos, acompanhar uma história assim provoca até um sopro de esperança. Mesmo que não saibamos definir, ao certo, que tipo de esperança é essa.

REFERÊNCIAS:

FREUD, S. Uma breve descrição da psicanálise (1924[1923]). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. XIX, p.235-259.

Leia mais sobre a trilogia “before”:

Antes do Pôr-do-Sol: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/14/Before-Sunset-Antes-do-Por-do-Sol

Antes da Meia-Noite: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/15/Before-Midnight-Antes-da-Meia-Noite

 

FICHA TÉCNICA:

ANTES DO AMANHECER

Título Original: Before Sunrise
Direção e Roteiro: Richard Linklater
Elenco: Ethan Hawke e Julie Delpy
Ano: 1995

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O Apanhador no Campo de Centeio

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The Catcher in the Rye II by Dheeraji1

“A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, começa a sentir saudade de todo mundo.” (Holden Caulfield)

“O apanhador no campo de centeio”, publicado em 1951, apresenta alguns momentos da vida de Holden Caulfield, um menino de 16 anos, que foi expulso de um colégio de elite e resolveu perambular pelas ruas de Nova Iorque por três dias. Desde sua publicação, tanto o livro quanto seu autor, J. D. Salinger, adquiriu um status de lenda. Talvez porque Salinger tenha sido ousado o bastante para apresentar, em primeira pessoa, a linguagem e as inquietações de um adolescente. E se atualmente esse nicho de mercado editorial é o mais rentável, na década de 50 do século XX, ainda era incomum um livro cujo personagem principal fosse alguém dessa idade e, principalmente, que falasse como o garoto do lado, sem construções textuais requintadas.

No ano de sua publicação, apesar do livro ser aclamado pela crítica e ter ficado por mais de 30 semanas na lista de Best Sellers do New York Times, foi também depreciado com igual vigor.  Diretores de colégio, religiosos e pais teciam críticas sobre o vasto teor de “imoralidades e perversões” que compunha o livro. Inclusive, o livro do Salinger foi, por muito tempo, proibido em alguns países e em várias escolas. Mas, um clássico não se faz apenas com boas críticas, nasce especialmente através de sua capacidade em gerar provocações e debates.

J. D. Salinger

Além do fato do Salinger se tornar um recluso pouco tempo depois da publicação do livro e de não permitir que este fosse levado ao cinema, apesar das infindáveis e rentáveis propostas que recebeu durante toda a sua vida, a lenda em torno livro se intensificou por conta de alguns fatos históricos. O evento mais conhecido deles foi o assassinato do John Lennon [1]. Na noite em que atirou em Lennon, o assassino Mark David Chapman foi encontrado com uma cópia do livro. Nessa cópia, ele escreveu: “Esta é a minha declaração” e assinou com o nome “Holden Caulfield”.

Talvez seja impossível compreender as estranhas associações que a mente doente de Chapman fez ao acreditar que assassinar John Lennon seria uma forma de libertá-lo do mundo mesquinho que o cercava. Uma associação que se tornou ainda mais doentia quando ele se comparou ao personagem do livro, por achar que o distanciamento que Holden queria do mundo dos adultos seria similar ao distanciamento que ele, Chapman, estava propiciando ao seu ídolo.

“Não importa que seja uma despedida ruim ou triste, mas, quando saio de um lugar, gosto de saber que estou dando o fora. Se a gente não sabe, se sente pior ainda.” (p. 9).

Escrever sobre a personalidade de Holden é uma forma de se tornar o tipo de pessoa que ele odiava. Ou seja, aquele tipo de pessoa que cria um contexto e assume um conjunto de verdades sobre o mundo e as pessoas. Em vários momentos do livro, ele afirma sua aversão a isso: “ninguém nunca repara em coisa nenhuma” (p. 14).  Embora haja certo exagero em várias de suas afirmações, explicitado pelo uso excessivo dos quantificadores universais (p. ex.: todo, nenhum, qualquer), em alguns aspectos do seu discurso isso soa verdadeiro, pois, as construções que fazemos do mundo parecem sempre vir acompanhadas pelos pré-conceitos que erigimos no decorrer de nossas vidas.

“…a gente se sentia como se estivesse desaparecendo toda vez que atravessava uma estrada.” (p. 10)

Ao ser expulso do colégio elitizado no qual estava, Holden resolveu antecipar sua saída em três dias porque se sentia cada vez mais só e oprimido, de forma que ficar ali poderia resultar em mais confusão, especialmente quando ele soube que a menina que “pensava gostar” tinha saído com seu companheiro de quarto. Mas, estranhamente, abandonar aquilo tornava-o ainda mais fraco, era como se a renúncia daquele tipo de vida fizesse com que ele desaparecesse, já que a ida ao mundo sonhado por ele parecia impossível.

“Allie, não me deixa desaparecer.” ( p. 191)

A solidão e a depressão que acompanham Holden podem ter relação, especialmente, com a morte prematura do seu irmão Allie, uma espécie de “menino perfeito”. Para ele, Allie era inteligente, sensível e bom, além disso, sua morte por leucemia aos 11 anos fez com que se tornasse um menino eterno. A partir disso, esse passou a ser o status ideal para uma vida sem hipocrisias, responsabilidades, moralismos e obrigações sociais. Allie era singular como toda criança, logo diferente da homogeneidade que Holden via ao observar o cotidiano dos adultos.

“Estou sempre dizendo ‘Muito prazer em conhecê-los’ para alguém que não tenho nenhum prazer em conhecer. Mas a gente tem que fazer essas coisas para seguir vivendo.” (p. 89)

O episódio da morte do irmão foi o fato que o levou ao psicanalista pela primeira vez. Além disso, a ida do irmão mais velho, um escritor famoso, para Hollywood (que ele considerava um ambiente abominável) transformou-se no estopim para a criação de uma realidade alternativa na mente dele. Daí começou a busca por um mundo que só existia na infância.

Ainda que Holden parecesse odiar todas as pessoas, tinha uma sensibilidade rara para entender o sofrimento de cada individuo que o rodeava, mesmo que fosse alguém que ele não respeitasse intelectualmente, ou cuja vida fosse superficial demais. Havia sempre um dualismo quando se tratava de sentimentos. Assim, o menino aparentemente egoísta, que supervalorizava seus problemas (muita gente acredita que adolescentes são mesmo assim), era capaz de olhar com atenção o homem velho que carregava malas e esperava as gorjetas e refletir sobre sua vida e achar que havia algo de muito errado num mundo em que um velho tivesse que continuar a fazer esse tipo de trabalho.

“Tem gente que passa dias procurando alguma coisa que perdeu. Eu acho que nunca tive nada que me importaria muito de perder. Talvez por isso eu seja em parte covarde.” ( p. 91)

A covardia que Holden pensava ter parece estar associada à sua vontade de permanecer vivo, mesmo que em sua mente uma trajetória sombria e contrária a esse objetivo parecesse se formar. Então, enquanto ele pensa que é covarde porque nada parece ser importante suficiente que mereça sua luta, o fato dele fazer sua jornada pelos caminhos que ama na cidade de Nova Iorque faz com que seja desafiado a encarar o que estaria deixando para trás e repensar as suas aparentes decisões.

“Há coisas que deviam ficar do jeito que estão. A gente devia poder enfiá-las num daqueles mostruários enormes de vidro e deixá-las em paz. Sei que isso não é possível, mas é uma pena que não seja.” (p. 121)

O encontro de Holden com sua irmã mais nova, Phoebe, fez com que novas inquietações viessem à tona. A principal delas parecia ter relação com seu medo e, de certa forma, sua raiva nas implicações resultantes do processo de tornar-se um adulto. Assim como o carrossel que tanto Phoebe amava permanecia sempre da mesma forma, em um círculo vicioso e eterno, Holden também gostaria de poder seguir uma trajetória assim, sem mudanças, sem perigos. Ou seja, sem ter que se tornar aquilo que ele costumava desprezar e que inevitavelmente seria o caminho mais provável.

Algumas das coisas que ele mais amava permaneceriam, segundo ele, da mesma forma, como era o caso do seu irmão Allie e do Museu de História Natural.

“Mas a melhor coisa do museu é que nada lá parecia mudar de posição. Ninguém se mexia… Ninguém seria diferente. A única coisa diferente seríamos nós.” (p. 120)

Essa diferença nas pessoas é que era difícil para ele suportar. E não era uma diferença apenas associada ao passar do tempo, ou seja, à idade, mas a acontecimentos. A força que alguns acontecimentos tem de nos moldar e de modificar quem somos muitas vezes de forma imperativa e implacável.

Dave White Paintings

“… fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num imenso campo de centeio. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer.” (p. 168)

Voltando ao Mark David Chapman e sua obsessão pelo Lennon e pelo livro… Eu, particularmente, não acredito que uma obra (seja ela um filme, um jogo ou um livro) possa desencadear um crime. Sou mais propensa a acreditar que tais situações podem apenas justificar desejos que já estão presentes no indivíduo, ainda que de forma subconsciente, seja por alguma patologia, seja por um desvio de personalidade não identificável. Talvez esses desejos latentes fizeram com que Chapman se colocasse no papel do Apanhador no Campo de Centeio. Uma forma de criar uma representação similar à criada por Holden, que talvez pensasse que sua tarefa ideal seria livrar as crianças do abismo que era se tornar adulto.

Catcher in the Rye by an95dy

“Não se pode achar nunca um lugar quieto e gostoso, porque não existe nenhum. A gente pode pensar que existe, mas, quando se chega lá e está completamente distraído, alguém entra escondido e escreve ‘FODA-SE’.” (p. 197)

A questão é que o campo de centeio repleto de crianças, uma espécie de Terra do Nunca, só existia na fantasia do Holden, e ele parecia ter consciência disso, só não tinha forças para aceitar sem luta o que o aguardava depois da adolescência. Um de seus professores disse a ele durante sua jornada: “… você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enojada, pelo comportamento humano” ( p. 184). E ele parece ter entendido o que significavam essas palavras, só que estava cansado e confuso demais para encontrar um meio de equilíbrio entre o que entende de forma racional e aquilo que algumas emoções provocam em seus sentidos.

“Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor.” (p. 23).

Acho que o carinho que tanta gente tem por esse livro em vários cantos do mundo tem relação com a cumplicidade que criamos com o Holden ao acompanhar sua jornada. E isso acontece, quem sabe, pelo adolescente que somos ou fomos, pelas dúvidas que temos ou tivemos, mas, especialmente, pelo medo que carregamos conosco em nossa sempre tão breve vida.

 

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO

Título Original:The Catcher in the Rye
Autor: J. D. Salinger
Tradução: Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster
Editora: Editora do Autor
Edição: 18ª.
Páginas: 203
Ano: 2012

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Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças: o que se perde em esquecer?

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“Abençoados sejam os esquecidos, pois tiram o melhor de seus equívocos.”
Nietzsche

 

Segundo Albert Schweitzer (ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1952), “felicidade nada mais é do que ter boa saúde e memória ruim”. E qual de nós, especialmente nos dias de hoje, assoberbados de informações, de explicações sobre traumas, permeados por doenças que ganham forma justamente pelo excesso de relações entre fatos e lembranças, não gostaria, vez ou outra, de simplesmente ESQUECER.

A possibilidade de ESQUECER é a premissa central do filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”.  Mas, talvez a questão principal lançada pelo fantástico roteiro de Charlie Kaufman (de Quero ser John Malkovich) esteja naquilo que deixamos para trás ao esquecer, aquilo que perdemos. Se nossas lembranças, sejam elas boas ou más, constrangedoras ou edificantes, humilhantes ou prazerosas, definem, de certa forma, quem somos, até que ponto poderíamos escolher o que esquecer sem nos apagar também nesse processo?

Esse é um dos questionamentos que vem à tona enquanto acompanhamos a história de Joel e Clementine. Jim Carrey (Joel), longe da leveza que costuma imprimir nos personagens dos vários filmes cômicos que protagonizou, mostra-nos um homem enfadado pela rotina, rodeado por um mundo opaco, cansado, introspectivo, subjugado, mas cuja vida parece mudar ao conhecer a colorida e cheia de vida Clementine. Tudo na personagem de Kate Winslet (Clementine) nos remete a uma ideia de excesso de vida, seja a cor laranja de sua jaqueta, seja o azul/vermelho/laranja dos seus cabelos. Mas, assim como o cabelo muda de cor rapidamente, o humor de Clementine também é alterado com frequência. Ela, como alguns de nós, se cansa facilmente da rotina e questiona-se sobre o motivo de ter que permanecer em um relacionamento no qual parece não ser mais feliz.

Esses dilemas e a sua impulsividade fizeram com que Clementine decidisse pela opção mais rápida e, talvez, mais fácil de tirar Joel de sua vida. Talvez fosse difícil demais para ela carregar a responsabilidade de ser o “brilho” que faltava ao seu cotidiano opaco ou, na verdade, estivesse cansada de ter que se importar com alguém. Já que parece que à medida que nos importamos com alguém aumenta a probabilidade de termos que lidar com o sofrimento.

É nesse contexto que o Dr. Howard Mierzwiak, um cientista que conseguiu sucesso ao criar um sistema que permite mapear a memória e, a partir disso, apagar rotas indesejadas que se definem na arquitetura da mente, entra na vida de Clementine. Ela procura a clínica que promete o esquecimento milagroso e apresenta as justificativas necessárias para realizar o procedimento. Assim, Joel passa a ser apenas um espaço apagado em sua memória, um espaço disponível para ser ocupado por novas lembranças, novos amores.

“Deixar as pessoas recomeçarem é lindo. Olhamos para um bebê e é tão puro, tão livre e tão limpo. Os adultos são essa confusão de tristezas e fobias.

 

Através de um bilhete da Clínica Lacuna, Joel entende que foi banido da vida de Clementine. Não há mais lembranças do primeiro encontro, nem das histórias que contavam um ao outro antes de adormecer, nem das infindáveis brigas. Ele não existe mais em sua memória, logo, não existe em sua vida.

E enquanto assistimos a tudo isso com aquela sensação de estarmos vendo mais um filme de ficção científica, pesquisas, como as citadas a seguir, são apresentadas cada vez com mais frequência em sites especializados ou, de forma mais superficial, na mídia de uma forma geral.

Um novo estudo do MIT [1] revelou um gene que parece ser fundamental para o processo de extinção de partes da memória. Segundo Li-HueiTsai, pesquisador do instituto de Aprendizagem e Memória do MIT, aumentar a atividade desse gene, conhecido como Tet1, poderá, por exemplo, beneficiar pessoas com transtorno de estresse pós-traumático, pois isso facilitará a substituição de memórias relacionadas ao medo a partir de associações com memórias mais positivas. O gene Tet1 parece controlar um pequeno grupo de genes necessários para a extinção da memória. “Se houver uma maneira de aumentar significativamente a expressão destes genes, então o processo de extinção pode se tornar muito mais ativo”, diz Tsai.

Já a equipe liderada por Courtney Miller, do The Scripps Research Institute (TSRI) na Flórida, conseguiu apagar com sucesso memórias associadas às drogas em camundongos e ratos, fornecendo esperança para a recuperação de viciados ou pessoas que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático [2]. Eles observaram, por exemplo, que o desejo de drogas por ex-dependentes de metanfetaminas é desencadeado por associações de memória. Assim, o retorno de um paciente de uma clínica de reabilitação à sua rotina diária pode se tornar uma experiência terrível, já que as lembranças associadas ao vício podem retornar de forma mais intensa.

Os testes realizados após a alteração da estrutura das células nervosas nos camundongos e ratos revelaram que eles perderam “imediatamente e persistentemente” todas as memórias associadas com a metanfetamina. Todas as outras lembranças, tais como recompensas alimentares ou choque nas patas, ainda estavam intactas [2]. Miller diz:

“Não muito diferente do que é apresentado no filme “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, estamos à procura de estratégias para eliminar seletivamente evidências de experiências anteriores relacionadas ao abuso de drogas ou a um evento traumático. Nosso estudo em camundongos nos mostrou que podemos fazer exatamente isso, ou seja, apagar memórias relacionadas às drogas sem prejudicar outras memórias”.

E é com essa ideia de apagar uma experiência traumática, que no caso é sua relação com Clementine e, especialmente, uma forma de esquecer o fato de que foi sumariamente e literalmente apagado de sua vida, que Joel também procura os serviços do Dr. Mierzwiak. Desta forma, inicia-se uma nova fase no filme, que se passa dentro da mente de Joel.

O interessante de percorrermos essa jornada com o Joel é que podemos entender não apenas como ele vê a Clementine de forma consciente, mas, especialmente, como ele a percebe em seu subconsciente.

E é a Clementine construída por ele, em seu subconsciente, que traz à tona as formas e nuances mais profundas do seu relacionamento. Quando a vemos falar e interagir com ele, na verdade estamos vendo a marca mais profunda que ela deixou em seu subconsciente, ou seja, tudo ali é ele, é a forma que ele percebe o mundo com ela.

Em um dado momento nessa jornada, o entendimento de que o procedimento de exclusão da memória de suas vivências com ela está sendo realizado, faz com que ele tente criar meios para confundir o sistema, pois se arrepende de ter desejado apagá-la. Assim, ele leva-a a partes de sua memória em que o programa não poderia alcançar, já que o mapeamento realizado considerou um encadeamento de lembranças vividas com ela através de objetos, cheiros, locais. E é esse desejo inconsciente de estar com ela que o faz buscá-la mesmo depois que o procedimento é concluído com sucesso, ainda que, em tese, já a tivesse esquecido.

Com isso, retornamos ao início do filme, que na verdade é o seu final, já que o roteiro não é linear. E aquelas duas pessoas, esquecidas de sua vida em conjunto, voltam a se encontrar.

Ele, achando que estava agindo por impulso pela primeira vez na vida, desiste de ir ao trabalho e pega um trem em direção à praia. Mas, na verdade, seu impulso é um ato movido pelo subconsciente, onde as sensações vividas não foram totalmente apagadas e a lembrança da praia, que foi o lugar em que a conheceu, ainda estava presente, mesmo sem um significado consciente.

Em meio à jornada de Clementine e Joel, outras histórias se cruzam, como o fato de que em qualquer ambiente existem aqueles que vão se aproveitar de determinadas situações. Por exemplo, se o uso do cartão de crédito de alguém provoca estragos financeiros terríveis, o que dirá do uso de suas memórias? É isso que um dos funcionários da clínica faz ao ter acesso às memórias do romance do casal. Por achar que estava apaixonado por Clementine, tenta reconstruir as ações do Joel para que ela pudesse se apaixonar por ele, já que seguindo um raciocínio lógico, isso poderia ser provável.

Mas, a lógica não explica a maior parte das questões que permeia os sentimentos humanos. Ainda que o Joel tivesse sido apagado da memória de Clementine, as emoções que ela viveu e as sensações que tais emoções provocaram ainda estavam vívidas em seu subconsciente e refletiam nas formas mais variadas em seu dia-a-dia. Sem cair em um dramalhão vazio, a mensagem que o filme remete nesse aspecto é que mesmo seguindo um manual com regras e palavras adequadas, o funcionário da clínica não conseguiu atingir as emoções de Clementine. Assim, por mais que ela não se lembrasse da pessoa que encontrou no trem indo em direção a praia, o “conjunto de fatores” que formava aquele indivíduo despertou nela um interesse imediato.

As pesquisas que tem como temática o mapeamento da memória apresentam uma série de justificativas embasadas em problemas complexos. Esses problemas vão desde a dependência química até traumas terríveis vivenciados na infância (como abuso sexual). A questão, claro, é o limite que será imposto ao uso desses métodos. Será que algum dia poderemos modelar nossas memórias como modificamos nossa aparência em cirurgias plásticas? Quem decidirá que tipo de intervenção é “saudável”?

Somos apenas a soma das nossas memórias ou o somatório dessas experiências está intrinsicamente relacionado há algo que já se encontra inscrito em nosso DNA? Apagar um evento traumático poderá modificar o que esse evento já causou ou os danos dessa remoção poderão causar mais perturbações do que o próprio incidente?

A frase que deu título ao filme foi extraída de um poema de Alexander Pope, um dos maiores poetas britânicos do Século XVIII:

“Feliz é o destino da inocente vestal ! Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida. Brilho eterno de uma mente sem lembranças! Toda prece é ouvida, toda graça se alcança.”

Será que o esquecimento é, de fato, uma benção? A impressão que temos, ao final do filme, é que ter uma mente sem lembranças nem sempre significa ser tocado pelo brilho eterno. Antes de criarmos meios para apagar, talvez seja necessário entendermos o complexo conjunto de variáveis envolvido no processo de esquecer.

REFERÊNCIAS:

[1] How old memories fade away – Discovery of a gene essential for memory extinction could lead to new PTSD treatments. Disponível em http://web.mit.edu/newsoffice/2013/how-old-memories-fade-away-0918.html

[2] Scientists successfully erase unwanted memories. Disponível emhttp://www.medicalnewstoday.com/articles/265957.php

FICHA TÉCNICA:

BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS


Direção: Michel Gondry
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco:  Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dunst, Victor Rasuk, Mark Ruffalo, Tom Wilkinson, Elijah Wood
Ano: 2004
Premiação: Oscar de roteiro original (Charlie Kaufman)

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Sobre meninos e lobos: um retrato cruel das consequências do abuso infantil

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“Talvez algum dia você se esqueça de como era ser gente e, então, fique tudo bem.” (Dave)

Essa é a história de três amigos de infância, Jimmy (Sean Pean), Dave (Tim Robbins) e Sean (Kevin Bacon), e de como um acontecimento trágico que ocorreu quando eles tinham 11 anos definiu o rumo de suas vidas.  O filme inicia-se justamente nessa época, em uma cena aparentemente trivial de três garotos em mais um dia de brincadeiras no subúrbio. Mais tarde, já adulto, Jimmy vai concluir que alguns dos caminhos que eles escolheram ou foram obrigados a percorrer em algum ponto da vida causaram um encadeamento complexo de uma série de sofrimentos e perdas.

Sobre meninos e lobos tem como principal premissa a questão da sobrevivência após um grande trauma. Segundo Robinson et al. (2013), “um trauma emocional e psicológico é o resultado de eventos extraordinariamente estressantes que quebram a sensação de segurança, fazendo com que o indivíduo se sinta impotente e vulnerável em um mundo perigoso”. Acrescenta ainda que “não são os fatos objetivos que determinam se um evento é traumático, mas como aquela experiência afetou a subjetividade do indivíduo”. Assim, quanto mais assustada e indefesa a pessoa se sente, mais traumatizante foi o evento vivenciado.

Voltando a infância dos garotos, em um dado momento durante a brincadeira, Jimmy, o mais impulsivo deles, resolve escrever seu nome no cimento ainda fresco da calçada de alguém. Depois, provoca os colegas para que façam o mesmo, de forma que, além do nome “Jimmy”, ficasse inscrito na calçada, também, os nomes “Sean” e “Dave”. O problema é que um carro estaciona em frente à calçada no momento em que Dave começa a escrever.

Assim, o nome incompleto de Dave na calçada se torna um triste presságio para a sua vida também incompleta. Ao entrar no carro com dois homens que alegavam ser policiais e que, por isso, o levariam até sua mãe, Dave inicia um tipo brutal de morte, aquela em que o corpo ainda segue vivo guiado por alguma força desconhecida. Aquele momento e os acontecimentos que se seguiram nos dias que ele ficou preso num cativeiro marca a morte de quem Dave poderia ter sido. Tudo, a partir daquele ponto, ficou encoberto de sombras, algo situado entre o medo e o horror.

Vinte e cinco anos depois desse acontecimento, Jimmy (que ficou na prisão por um breve tempo) dirige a loja da esquina, tem uma filha de 19 anos da primeira esposa que morreu de câncer e mais duas filhas da atual esposa; Sean é um detetive do departamento de homicídio e constantemente recebe “ligações silenciosas” da esposa que o abandonou; já Dave (com uma constante expressão de desamparo) faz pequenos trabalhos domésticos na vizinhança, é casado e tem um filho.

É nesse cenário que uma nova tragédia ocorre e isso faz com que a história dos três meninos, agora homens, seja fatalmente relacionada novamente.

Katie, a filha de Jimmy, é brutalmente assassinada e seu corpo cheio de hematomas é encontrado por Sean em um buraco de um parque da cidade. O desespero do pai diante da resposta silenciosa do antigo amigo de infância à pergunta “É minha filha que está lá?” é desolador e terrível.

Na noite em que Katie é assassinada, Dave aparece sujo de sangue em sua casa, depois de uma suposta discussão com um assaltante na rua que levou a uma briga e a um assassinato. Mas sua expressão e seus gestos dão a entender que ele esconde algo. A esposa, sem saber ainda da morte da Katie, resolve esconder todos os indícios de que o marido tenha cometido um crime, mesmo porque, em seu meio, a morte de alguém nem sempre era considerada algo terrível.

“Ela fez com que eu me lembrasse de um sonho que eu tinha.” (Dave)

“Que sonho?” (Jimmy)

“Um sonho de juventude. Não me lembro de ter tido juventude.” (Dave)

A morte brusca de Katie faz Jimmy buscar apoio na companhia de Dave, talvez porque ambos tenham partilhado uma tragédia antes, ou porque diante de alguém que ele considerava tão fraco e doente, ele poderia mostrar-se também fragilizado. Homem ruim da cabeça, naquele bairro, era sinônimo de pessoa fracassada. E essa era a forma como todos viam Dave. Acreditavam que um menino que foi abusado sexualmente nunca poderia se recuperar, ter uma vida normal (aquilo que eles consideravam ser uma vida normal). Tinham pena da mulher que casou com ele, do filho que ele teve. Sua presença era uma lembrança incômoda que eles gostariam de apagar.

 “Henry e George, eles eram os lobos e Dave era o menino que fugiu dos lobos. Levaram-me para um passeio de quatro dias. Me jogaram em um velho porão sujo, com um saco de dormir. E… eles se esbaldaram! E ninguém apareceu para ajudar o Dave. Dave teve que fingir que aquilo era com outra pessoa.” (Dave)

“Isso aconteceu há muitos anos, quando você era um garotinho. Dave…” (Esposa)

“Dave está morto! Não sei quem saiu daquele porão, mas, certamente, não foi o Dave!”(Dave)

Segundo Smith e Segal (2013), “o abuso sexual infantil é uma forma especialmente complicada de abuso por causa de suas camadas de culpa e vergonha”. Acrescenta ainda que, “além do dano físico que o abuso sexual pode causar, o componente emocional é poderoso e de longo alcance. Crianças abusadas sexualmente são atormentadas por vergonha e culpa”.

Por isso, Dave levou tanto tempo para conseguir pronunciar o nome dos seus molestadores. Havia sempre um componente de culpa e horror que só poderia ser suportado com o reconhecimento da morte do menino que ele havia sido.  É como se ele, de certa forma, tivesse corroborado com a situação que culminou no abuso.

“Às vezes o homem não era absolutamente um homem. Ele era o menino. O menino que havia escapado dos lobos.”(Dave)

Aparentemente, ocorreram dois crimes, mas só havia sido encontrado um corpo (o de Katie). As investigações estavam sendo conduzidas para a confirmação da culpa de Dave, já que ele era a aberração. E Dave, na medida em que tentava recompor o crime que ele pensava ter cometido (e que não era o assassinato de Katie), assustava-se com a sua conturbação mental. Já não sabia distinguir que fatos eram reais ou quais ele havia construído no cativeiro que existia em sua mente. Lembrava-se de matar um molestador de crianças. De gritar para o Dave fugir. Isso, em vários aspectos, separou-o de forma brutal do menino que ainda se escondia nele. Em um dado momento, ele confessou a sua esposa: “Ferir alguém faz você se sentir sozinho”.

“Sabe, às vezes eu acho que nós três entramos naquele carro. E tudo isso é apenas um sonho. A realidade é que ainda somos aqueles meninos de 11 anos trancados em um porão, imaginando o que as nossas vidas teriam sido se tivéssemos escapado.”(Sean)

Sean e Jimmy também tiveram vidas conturbadas, relacionamentos confusos e ambos possuíam um senso de justiça sustentado em verdades duvidosas. Como disse Sean, ao final, parece que todos tiveram suas vidas distorcidas pelo trauma sofrido por seu amigo de infância. No entanto, nenhum deles ousou entrar no carro com Dave. Eram apenas crianças, sentiram medo. Esse medo que os paralisou fazia-os carregar um insistente sentimento de culpa e vergonha, porque, para eles, a imagem que ficou, ao olhar para o passado, foi a de um amigo seguindo para o horror sozinho. Sempre viam Dave abandonado.

Ao final, de forma perturbadora, vimos que todos tentam conduzir suas vidas, recompor suas famílias. Dave, sozinho no carro, parece que nunca teve o direito de ter uma esposa, um filho. Ficará para sempre perdido entre a obscuridade do cativeiro e a liberdade sem vínculo da floresta à espera de um resgate que nunca virá.

Referências:

ROBINSON, Lawrence;SMITH, Melinda; SEGAL, Jeanne. Emotional and Psychological Trauma.Symptoms, Treatment, and Recovery. Disponível em:

http://www.helpguide.org/mental/emotional_psychological_trauma.htm

SMITH, Melinda; SEGAL, Jeanne.Child Abuse & Neglect. Recognizing, Preventing, and Reporting Child Abuse. Disponível em:

http://www.helpguide.org/mental/child_abuse_physical_emotional_sexual_neglect.htm


FICHA TÉCNICA DO FILME

SOBRE MENINOS E LOBOS

Título Original: Mystic River
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Brian Helgeland (screenplay), Dennis Lehane (novel)
Elenco Principal:  Sean Penn, Tim Robbins, Kevin Bacon, Laurence Fishburne, Marcia Gay Harden e Laura Linney
Ano: 2003

Alguns Prêmios:

Oscar: Melhor Ator (Sean Penn), Melhor Ator Coadjuvante (Tim Robbins)
Globo de Ouro: Ator em Filme de Drama (Sean Penn), Ator Coadjuvante em Filme de Drama (Tim Robbins)

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O que você escreve no Twitter define quem você é?

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Enquanto você digita uma sentença no Twitter tranquilamente na solidão do seu quarto, dados são armazenados, programas executados e traços de sua personalidade podem vir à tona e serem usados para compor algum relatório produzido para um determinado fim.

Teoria da conspiração?

A quem interessa seus tweets muitas vezes lançados ao mar virtual na calada da madrugada? Suas interjeições de euforia ou descontentamento ao assistir um programa de TV? Sua opinião sobre um produto? Você não é o presidente de um país, logo por que suas opiniões seriam relevantes para alguém que não o conheça pessoalmente?

Resposta: porque agora é possível vender a ideia de que você é importante.

Mas, importante em qual sentido?

O “ser importante” a ponto de suas particularidades provocarem o interesse de alguma entidade já não é mais uma sensação advinda de um mero sentimento afetivo. A importância no ambiente virtual, que é compreendida a partir de uma série de análises de complexos algoritmos computacionais, pode ser refletida em determinadas ações, seja nas especificidades dos produtos que são direcionados a você, na indicação de filmes e músicas que tenham relação com suas preferências ou na forma que as centrais de atendimento a clientes entrarão em contato para lhe informar algo.

Com base nesse contexto, a IBM está testando uma tecnologia que tem como propósito o entendimento dos traços psicológicos das pessoas a partir da análise do que elas postam no Twitter. O objetivo inicial do projeto é oferecer um atendimento personalizado a seus clientes, com mensagens promocionais direcionadas ao seu perfil. A questão é: como identificar a personalidade de alguém com base em um conjunto de sentenças de 140 caracteres?

Segundo Michele Zhou, líder do grupo de pesquisa USER (User Systems and Experience Research) da IBM, pode-se fazer uma análise da personalidade a partir de técnicas de mineração de texto combinadas com o Modelo “Big Five”, que segundo TRENTINI et al. (2009),  “define a personalidade humana como uma rede hierárquica de traços, compreendidos teoricamente como predisposições comportamentais de respostas às situações da vida”. Um dos níveis desse modelo consiste na observância de cinco fatores, apresentados a seguir acompanhados de algumas das características que os definem (SRIVASTAVA, 2013):

  • Extroversão (falante, enérgico e assertivo);
  • Socialização (simpático, gentil e afetuoso);
  • Conscienciosidade (organizado, responsável, orientado para os deveres e para atingir objetivos e autodisciplinado);
  • Estabilidade Emocional (tenso, temperamental e ansioso);
  • Abertura para Experiência (amplos interesses, criativo e perspicaz).

Imagem – MIT Technology Review

“Queremos usar a mídia social para obter informações sobre uma pessoa, por exemplo, qual o efeito global desta pessoa? O quão resiliente ela é? Pessoas com diferentes personalidades querem algo diferenciado?”, são alguns dos questionamentos apresentados pela pesquisadora e que o software tenta responder.

Para a análise da personalidade do indivíduo, o software utiliza, em média, 200 tweets (cerca de 2500 a 3000 palavras) das suas últimas atualizações. A partir disso, as informações são analisadas com base nas categorias do modelo “Big Five” e, também, através de uma pontuação realizada a partir de determinadas medidas de “valores” (p. ex.: lealdade, autovalorização, fatalismo) e de “necessidades” (p. ex.: controle, harmonia social, curiosidade).

Muitas empresas já fazem uso de softwares que analisam as atividades nas mídias sociais. Mas as análises realizadas frequentemente tendem a fornecer um resumo geral sobre um dado assunto, a verificação de alguns aspectos de discussão, por exemplo, se uma dada marca está sendo aceita entre um grupo de usuários da rede, ou se há muita menção negativa sobre um determinado artista ou político. Mas, o diferencial do software da IBM é concentrar as análises nos aspectos da personalidade de um indivíduo em específico.

Segundo Simonite (2013), um grupo de pessoas foi avaliado em testes psicológicos e os resultados apontados nesses testes foram comparados com os resultados advindos de suas atividades no Twitter. Para tanto, a IBM utilizou uma técnica de Aprendizado de Máquina para a verificação dos diferentes padrões de uso de uma palavra em combinação com determinados traços psicológicos. Essas correlações foram cruciais para a determinação de modelos que pudessem indicar o tipo de personalidade de uma pessoa a partir da análise de seus tweets.

 

 

Perfil pessoal: de acordo com o software de análise da IBM em uma determina conta do Twitter, foi revelado que a pessoa em questão é mais neurótica do que extrovertida (SIMONITE, 2013)

Michele Zhou falou a Tom Simonite, em matéria publicada no MIT Technology Review, que em um estudo no qual foram analisados 300 pessoas, tanto através do software quanto em testes psicológicos, os resultados obtidos foram “altamente correlacionados” (80% dos resultados). Apesar do sucesso inicial, ela também observou que quando as pessoas usam o Twitter como atividade de trabalho, por exemplo, os tweets de jornalistas, os perfis derivados de suas mensagens não são tão representativos de sua personalidade.

Com esse software, a IBM vai além das técnicas de Recomendação de Produtos usadas pela Amazon, por exemplo. É possível um entendimento mais específico de cada pessoa e com isso obter informações mais relevantes para saber como conquistar clientes, já que anúncios poderão ser feitos de acordo com o perfil psicológico detectado e não apenas pela utilização de mais um questionário enfadonho (quase nunca preenchido de fato) ou por escolhas feitas anteriormente, ou, ainda, pelas características gerais de seu grupo de amigos.

Em tempos de Big Data, trabalhos como esses pipocam em grandes centros de pesquisa em diversos países. Diversos artigos sobre essa temática são publicados em revistas científicas, mas outros tantos são divulgados na mídia de forma mais superficial, pois têm detalhes que são cruciais para a proposta de inovação da empresa, logo os algoritmos usados não são de domínio público.

Nesse contexto, a importância de uma vertente da psicologia, denominada Psicologia do Consumidor, que lida justamente com os aspectos que influenciam as pessoas em sua relação com produtos e serviços, mostra-se atual, multidisciplinar e com amplas possibilidades de aplicações de forma a gerar inúmeros processos de inovação tecnológica. Para tanto, o estudo do comportamento do indivíduo, suas crenças, sentimentos e percepções em determinados contextos são cruciais para a proposição de novos modelos e técnicas.

Voltando à pergunta do título: o que você escreve no Twitter define quem você é?

Possivelmente, não. Mas, talvez, indique os elementos necessários ao propósito de vários softwares que estão constantemente analisando os dados dispostos nas redes sociais virtuais. Ou seja, em um contexto em que produtos e pessoas flutuam em meio a uma rede de dados cada vez mais abundante, não é mais possível pensar em uma Economia baseada apenas nos critérios da Escassez, é necessário saber quem são e o que pensam as pessoas que estão dando voz a esses dados.

A questão não é apenas entender quem somos, pois isso, considerando a complexidade humana, seria mais uma dessas perguntas lançadas ao vento. O que se busca a partir desses softwares é entender que parte do que somos (e que pode ser mapeada por um programa de computador) é interessante para alavancar as vendas de alguma empresa, tornar um artista famoso, contribuir para que um candidato se torne presidente de um país.

Houve um tempo em que tentávamos entender quem somos a partir de um olhar profundo sobre nós mesmos, ou em virtude do que algumas pessoas pensavam de nós, ou, ainda, por meio de anos e anos de terapia, ou, simplesmente, diante de certas circunstâncias da vida. Agora que somos, em grande parte, humanos demasiado tecnológicos parece que cada vez mais algoritmos computacionais tendem a nos decifrar e apresentar aspectos da nossa personalidade em forma de gráficos. E, simplesmente, não há como impedir que isso aconteça, pois não há como voltar a um contexto que não existe mais.

 

A convivência virtual ampliou nossas relações e contribuiu para a exposição de parte do que somos. E isso também promoveu uma certa obscuridade em torno de determinadas distinções que existiam de forma bem mais clara no século passado, como as linhas limítrofes entre vida pessoal e trabalho, entre quem somos e o que queremos que as pessoas saibam sobre quem somos.

Referências:
Simonite, T. (2013). Ads Could Soon Know If You’re an Introvert (on Twitter). MIT Technology Review. Disponível em: http://www.technologyreview.com/news/520671/ads-could-soon-know-if-youre-an-introvert-on-twitter/
Srivastava, S. (2013). Measuring the Big Five Personality Factors. Disponível em:  http://psdlab.uoregon.edu/bigfive.html

Trentini, C. M., Hutz, C. S., Bandeira, D. R., Teixeira, M. A. P., Gonçalves, M. T. A., & Thomazoni, A. R. (2009). Correlações entre a EFN – Escala Fatorial de Neuroticismo e o IFP -Inventário Fatorial de Personalidade. Avaliação Psicológica, 8(2)209-217.

Uma entrevista com Michele Zhou: http://venturebeat.com/2013/10/11/how-ibms-michelle-zhou-figured-out-my-personality-from-200-tweets-interview/

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Gravidade: um universo de silêncio e solidão

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Com 10 indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Alfonso Cuaron), Melhor Atriz (Sandra Bullock), Trilha Sonora (Steven Price), Fotografia, Melhor Edição (Alfonso Cuarón e Mark Sanger), Design de produção, Edição de Som, Mixagem de Som, Efeitos Visuais.

 

“No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.”
(Gênesis 1: 1,2)

 

“Gravidade” inicia-se com o silêncio de um espaço imenso. Nesse contexto, a valoração que damos para a maior parte das coisas parece subitamente perder o sentido. Se fosse fazer uma comparação inicial, a introdução dos dois astronautas naquela imensidão lembrou-me o início do filme Lawrence da Arábia, quando o homem surge no deserto e se assemelha a um grão de areia, o que torna a sua pretensa superioridade tão controversa.

 

 

Dra. Ryan Stone (Sandra Bullock, numa interpretação marcante), uma cientista em sua primeira incursão ao espaço, e Matt Kowalski, um astronauta veterano, estão fazendo uma caminhada espacial de rotina para averiguações no telescópio Hubble, mas são interrompidos por causa da detonação de satélites russos. Isso provoca uma reação em cadeia de colisões e a presença de um campo de destroços que se movimenta em direção ao seu ônibus espacial.

Com essa situação totalmente inusitada, tem-se início a jornada complexa dos dois astronautas. E, geralmente, quando algo sai do padrão em um ambiente hostil, torna-se um problema com proporções gigantescas. Acompanhar essa trajetória, em alguns momentos como se fôssemos tão poderosos como o próprio espaço, em outros como se estivéssemos tão frágeis como a Dra. Ryan, pois várias das cenas são apresentadas a partir da sua visão, dão ao filme um sentimento misto de deslumbramento e horror. Mostrar as cenas na perspectiva de alguém que está à deriva no espaço, com todos os sons e, principalmente, ausência de sons peculiares desse ambiente, é um dos pontos altos da direção de Alfonso Cuarón.

 

 

Nos cartazes do filme está escrita a frase “Don’t let go”(não o deixe ir). Talvez a principal questão do enredo reside na difícil sina de termos que, constantemente, desapegar, quando na verdade, seria mais reconfortante seguirmos atados uns aos outros, às nossas lembranças, aos nossos medos. As cenas entre Ryan e Matt ligados e sozinhos no espaço podem ter inúmeras interpretações, em todo caso, a sensação que tive foi que aquelas duas pessoas ligadas a um fio como se aquilo fosse um cordão umbilical representavam, em um dado nível, a aventura da natureza humana: de um lado os indivíduos e seus laços tênues, do outro, o espaço e Deus, paradoxalmente, tão presentes e tão indiferentes.

 

O astronauta no filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço e a astronauta em “Gravidade”

Há inevitáveis comparações entre filmes que parecem transitar em uma mesma temática, como é o caso de 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, e Gravidade (2013), de Cuáron. No entanto, enquanto em 2001 há uma profusão de contextos sendo explorados em seus 142 minutos, que perpassa a criação do universo e as questões relacionadas à evolução humana, em Gravidade são usados 90 minutos para mostrar algumas horas na vida de seu personagem principal (a Dra. Ryan).

Mas, mesmo que em “Gravidade” questões sobre a nossa origem e a unidade da vida não sejam abordadas de forma literal, acompanhar a trajetória da Dra. Ryan nos faz, de alguma forma, iniciar uma jornada em torno da condição humana, ainda que tal caminho seja percorrido no interior de um indivíduo. E isso lembra-me a poesia “O Homem; As Viagens”, de Carlos Drummond de Andrade.

 

Parte da poesia “O Homem; As Viagens”, de Carlos Drummond de Andrade

 

O paradoxal minimalismo da temática de Gravidade é o que torna o filme tão inquietante. Em meio a cenas grandiosas e extremamente reais que dão razão a existência do 3D (enquanto tantos outros filmes apresenta isso de forma totalmente desnecessária), há uma mulher angustiada e solitária (não apenas por estar perdida no espaço), cuja memória da filha morta aos 4 anos a assombra e a distancia de todos.

 

 

Em imagens que parecem um retorno ao útero, a Dra. Ryan tenta encontrar um meio para iniciar uma nova vida ou recuperar aquela que deixou partir. Sua viagem física ao espaço é, também, marcada por sua busca psicológica. E essa busca parece ganhar forma no silêncio do espaço, pois ao afastar-se da vida na terra, Ryan exponencializa sua vontade de pertencer a algo. De apegar-se a algo, mesmo que, para isso, tenha que deixar outros partirem.

Com a ausência da gravidade, flutuamos com os astronautas, assombrados pela ideia de que estamos sem base. Sem a terra, perdemos o chão que nos faz caminhar eretos (e, talvez, perdemos também o sentido de toda a evolução que nos permitiu chegar a esse ponto) e nos tornamos algo que se encontra entre o etéreo e o inexistente.

 

 

Na música “Space Oddity”, David Bowie diz “Planet Earth is blue, and there’s nothing I can do….” (O planeta Terra é azul, e não há nada que eu possa fazer…). A grandiosidade apresentada em “Gravidade” nos dá essa sensação de impotência, confirmando, em algum grau, a frase do Carl Sagan: “o universo não foi feito à medida do ser humano, mas tampouco lhe é adverso: é-lhe indiferente”. Em contrapartida, a trajetória da Dra. Ryan nos remete a uma reflexão mais pessoal e, a partir disso, provoca a necessidade de produzirmos alguma mudança no universo que compõe a existência de cada um de nós.

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

GRAVIDADE

Título Original: Gravity
Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón, Jonás Cuarón, Rodrigo García
Fotografia: Emmanuel Lubezki
Trilha Sonora: Steven Price
Elenco: Sandra Bullock, George Clooney
Ano: 2013

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Pensamos de forma lógica?

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A lógica formal é um instrumento abstrato usado para modelar problemas em diferentes áreas. É também uma disciplina que permeia vários cursos, desde Computação, Direito até algumas vertentes da Psicologia. É comum ouvirmos a afirmação de que a maioria das pessoas pensa, naturalmente (ainda que implicitamente), de forma lógica.  Mas, a lógica como disciplina, justamente por ser abstrata e não pertencer à classe das disciplinas que lidam diretamente com elementos concretos (como as disciplinas que versam sobre plantas, corpo humano, rochas, animais etc.), tende a parecer complexa e incitar um certo sentimento de rejeição.

Em seu livro “Como a mente funciona”, o professor de Psicologia e Diretor do Centro de Neurolinguistica do MIT, Steve Pinker, faz o seguinte questionamento: “o cérebro usa lógica”?Essa questão foi apresentada por ele a partir do fraco desempenho de estudantes universitários em problemas dessa natureza.

Mas, voltando ao nosso contexto, como professora de disciplinas que têm relação com essa temática, percebo que há uma dificuldade latente no que tange ao entendimento da lógica a partir de seus elementos constitutivos: por exemplo, quando as frases têm termos como “Todo”, “Algum”, “e”, “ou”, “se… então”, as interpretações tornam-se mais complexas. E a ideia, presumo eu, é que tais elementos fossem, justamente, contribuir para um melhor entendimento da forma do texto. O entendimento da semântica de um texto requer, algumas vezes, um conjunto maior de dados (informações sobre determinados contextos); já a estrutura (forma) de um argumento pode ser compreendida mais facilmente se houver uma interpretação adequada dos operadores e quantificadores lógicos que a permeiam.

Em seu livro, Pinker propôs o seguinte desafio a um grupo de universitários:

Há alguns arqueólogos, biólogos e enxadristas em uma sala. Nenhum dos arqueólogos é biólogo. Todos os biólogos são enxadristas. 
O que se deduz disso, se é que se pode deduzir alguma coisa?

O resultado do problema foi desastroso: a maioria dos estudantes concluiu que nenhum dos arqueólogos é enxadrista (o que não é válido) e nenhum concluiu que alguns dos enxadristas não são arqueólogos (o que é válido). E, ainda, houve aqueles que concluíram que as premissas não admitem inferências válidas.

Claro que produzir qualquer inferência mais geral sobre esse teste transformaria esse texto numa falácia. A ideia aqui é apenas provocar, de uma forma mais simples, reflexões sobre como pensamos e se há, de fato, uma estrutura lógica do pensamento.

A Lógica, conforme afirmou Pinker, também foi por muito tempo considerada como a “formalização das leis do pensamento”, o que é uma afirmação exagerada, tendo em vista o que sabemos sobre o pensamento (ou melhor, o que não sabemos).

Então não pensamos de acordo com as leis da lógica? Para responder a essa questão, primeiro, é importante o entendimento de que a lógica clássica (a que me refiro nesse texto) trata de verdades a partir de uma dada formalização que considera a estrutura de um argumento, não seu conteúdo. Assim, uma verdade lógica pode não fazer sentido em nosso dia-a-dia. Por exemplo, o argumento:

Se hoje é terça, então as rãs cantam sertanejo universitário no meu quintal. Hoje é terça. Logo, as rãs cantam sertanejo universitário no meu quintal.

Isso soa totalmente sem sentido, claro, se considerarmos que as tais rãs não são a designação de um novo grupo musical formado por homens ou mulheres de calças coladas e voz esganiçadas. Mas, independente do sentido do argumento, a forma lógica dele é correta e válida.

Um ponto interessante que Pinker traz sobre isso ajuda a corroborar, em um dado nível, o fato da lógica formal ser parte da estrutura da lógica mental:

É difícil imaginar uma espécie descobrindo a lógica se seu cérebro não produzisse um sentimento de certeza quando descobrisse uma verdade lógica. Existe alguma coisa singularmente atrativa, e mesmo irresistível, em P, P implica Q, portanto Q

Isso nos mostra que algumas verdades necessárias são universais, no que tange à sua estrutura, enquanto que no nível do sentido a verdade é, por vezes, obscura, confusa ou, até mesmo, utópica.

Então, parece-me que podemos inferir (com um certo grau de certeza) que há lógica em nossa forma de pensar, assim como há lógica na linguagem que usamos para nos comunicar (não importa o idioma). A questão é que não há apenas isso. Se usássemos a linguagem e pensássemos apenas segundo os preceitos da Lógica Formal, muito provavelmente já teríamos máquinas que reproduziriam totalmente o cérebro humano e teríamos menos patologias psíquicas, mas, talvez seríamos menos humanos. Mas, nem vamos entrar nessa questão, pois isso pode resultar em um outro questionamento tenebroso: o que é ser humano? (daí vem indagações sobre o conceito de identidade, da condição humana etc.).

Segundo Pinker, “as inferências lógicas são ubíquas no pensamento humano, particularmente quando entendemos a língua”. Para salientar essa premissa, ele traz um exemplo do psicólogo Martin Braine:

John chegou para almoçar. O cardápio oferecia um prato especial com sopa e salada e, grátis, uma cerveja ou café. Além disso, com o bife ganhava-se um copo de vinho grátis. John escolheu o especial com sopa e salada com café, juntamente com algo mais para beber.

(a)   John ganhou uma cerveja grátis? (Sim, Não, Impossível responder)

(b)  John ganhou um copo de vinho grátis? (Sim, Não, Impossível responder)

Segundo eles, praticamente todo mundo (nada mais paradoxal do que algum lógico usando o tenebroso quantificador universal numa conclusão, mas o “praticamente” livra-nos de todo o mal) acertou as duas questões. Ou seja, responderam “não”. Na primeira situação, viram que era uma disjunção (o “ou”) que estabelecia (de forma exclusiva, nesse caso) que se a pessoa escolhesse o café, não teria a cerveja gratuita, pois é um ou outro. Já a segunda, como havia um condicional estabelecido para que a pessoa levasse o bife gratuitamente e tal condicional não foi cumprido, então a cerveja também não foi liberada.

A questão que Pinker apresenta é: por que o teste de lógica inicial teve um resultado tão desastroso (praticamente ninguém na turma acertou) e, nesse caso, o acerto foi tão natural, se nos dois casos usa-se a lógica?

A questão é como a lógica é apresentada. Se é dentro de um contexto do dia-a-dia, em que a pessoa usa da sua experiência e do conhecimento dos termos da sua língua (sem perceber que esteja, de fato, usando tudo isso), ela entende a situação e acerta as inferências, mesmo que (ou principalmente) não tenha pensado no processo que usou para chegar a tais conclusões. Ter que pensar no processo, investigar termos (por exemplo, os quantificadores: todo, algum) que no cotidiano vem de forma mais contextualizada, acaba por dificultar a resolução do problema (o que pode ter acontecido no primeiro exemplo).

Respondendo à questão do título, pensamos “em parte” de forma lógica. Mas há a lógica formal, essa que tem relação com a estrutura, e uma lógica mental. Enquanto a primeira é conhecida, com uma quantidade limitada de elementos, a segunda ainda é, em grande parte, desconhecida.

E, para finalizar, um teste apresentado no livro do Pinker, elaborado pelo psicólogo Peter Wason, inspirado pelo formato de raciocínio científico do filósofo Karl Popper: “uma hipótese é aceita se as tentativas para refutá-la fracassam”.

A regra: “Se um cartão tem um D em um lado, então tem um 3 do outro”.

Os cartões:
(Os cartões possuem letras de um lado e números do outro)

O questionamento: que cartões você deve virar para verificar se a regra é verdadeira?

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