Masculinidade e Feminilidade no contexto sociocultural contemporâneo

Compartilhe este conteúdo:

O homem moderno se vê defronte a um dilema quase que incompreensível aos indivíduos amarrados e emaranhados ao machismo estrutural. Ao longo de um passado não tão distante a sociedade lutou em sua tendência patriarcal contra a ascensão de qualquer tipo de manifestação enaltecedora do feminino. Isso pode ser observado, por exemplo, na maneira como o cristianismo clássico apagou diversos aspectos de religiões pagãs a partir do primeiro milênio, onde as figuras divinas eram descentralizadas e figuras femininas de poder eram enaltecidos, o mesmo as mulheres ocupavam o papel sacerdotal e espiritual proeminente (LEMOS, 2012).

O cristianismo é que citado por ser frequentemente associado com a base de valores que moldaram a sociedade moderna e pós-moderna, e também foi pivô na propagação da cultura patriarcal, com sua estrutura religiosa se organizando em uma trindade que enfatiza o papel do masculino em detrimento do feminino.

Essa característica fica imputada com mais veemência nas linhas protestantes de cristianismo; o catolicismo com sua versão modernizada do politeísmo representada nos santos dá espaço para os arquétipos representados nas imagens santas, porém ao invés de adorados como divindades, esses santos são intermediários entre o deus maior; já o protestantismo e suas variações futuras apaga essa grande variação arquetípica, eliminando os santos do dogma e tratando a maneira como os católicos recorrem a eles como adoração profana. Assim, grandes arquétipos perdem força no imaginário e na cultura cristã desse recorte populacional protestante, principalmente o da Grande Mãe, representados pela Virgem Maria, este que se apaga totalmente em detrimento da Trindade Pai, Filho e Espírito Santo. (DE AZEVEDO-MESQUITA, 2015)

Fonte: Pixabay

A Masculinidade Frágil Como Fenômeno Cultural

Esses exemplos citados anteriormente marcam alguns acontecimentos históricos que conduziram o pensamento cultural generalizado em direção a essa tendência patriarcal. Porém, há alguns anos a cultura e a indústria vem acompanhando um movimento social de rebelião contra esses preceitos muito enraizados, e dessa forma, vem trazendo o fenômeno que é o feminismo aos holofotes, demonstrando um movimento do inconsciente coletivo para ressaltar esse fenômeno cultural. As mulheres anseiam por mais visibilidade, por salários equivalentes, por mais participação ativa nas comunidades e principalmente o respeito por seus corpos e sua individualidade.

Logo, é possível observar a cultura crescendo ao redor dessa imagem feminina novamente. Nos últimos anos a quantidade de protagonistas femininas para os grandes blockbusters tem crescido de maneira vertiginosa, personagens pertencendo a outros espectros da sexualidade com grande representatividade para os LGBTQI+ também tem visto suas tramas serem escritas e contadas em detalhes por grandes produtoras de audiovisual. Tudo isso é palco para o temor daqueles que antes podiam se ver representados em todas as mídias e histórias, de repente se ver entendo que dividir espaço de tela com pessoas que no seu âmago são diferentes de um padrão estabelecido através da história ocidental.

Fonte: Pixabay

Masculinidade E Feminilidade Arquetípicas

Para compreender mais um pra mente essas dinâmicas é importante conhecer o âmago do conceito de masculinidade e feminilidade. De acordo com o psicólogo suíço Carl Gustav Jung, em sua observação da psique humana, este constata a existência de diversos arquétipos, ou seja, construtos psíquicos que constituem a personalidade humana (JUNG, 2018). Entre esses arquétipos, os que tangem o conceito de masculino e feminino são a Anima e o Animus.

Animus seria a contraparte masculina arquetípica existente dentro de cada ser humano que já habitou este planeta; de maneira semelhante a anima é a contraparte feminina que existe dentro de cada ser humano (SANFORD, 1987). Dessa forma, conclui-se que cada indivíduo está sujeito a sofrer influência da contraparte arte típica oposta, isso inclui a parcela da população que se encontra imersa no machismo estrutural (JUNG, 2006). Mas o que teria acontecido com a mulher que vive simbolicamente no interior dessas pessoas?

No desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, durante a tenra infância e juventude, a relação com esses arquetípicos é moldada, muitas vezes baseada nas figuras paterna e materna (JUNG, 2006). E qualquer disfunção durante esse período, pode acarretar casos de anima ou animus negativo. Ou seja, a imago masculina ou feminina prejudicada de alguma maneira, devido a tudo aquilo que foi absorvido e da maneira como isso se deu (MENIN at al. 2007). Poderia uma nação ou a sociedade ocidental inteira sofrer coletivamente com um quadro de Anima negativa, que levaria eles a tratarem o feminino arquetípico da maneira como foi levado durante todos esses anos?

Conclusão

Conclui-se que os conceitos de masculino e feminino vivem um conflito devido a maneira como o masculino se impôs por sobre o feminino histórica e culturalmente ao longo das décadas a partir do primeiro milênio. O ser humano é constituído de diversas partes incluindo uma parte masculina e feminina, arquetipicamente falando; logo dentro de cada um se constituem resquícios da sexualidade predominante oposta a não predominante, o que pode gerar conflitos a depender da maneira como esses aspectos foram constituídos na personalidade daquela pessoa. Logo é possível imaginar que talvez um processo coletivo de adoecimento e má digestão de simbolismos psíquicos, pode acabar por ter gerado um grande complexo da população masculina Mundial quanto ao símbolo do feminino.

REFERÊNCIAS

DE AZEVEDO MESQUITA, Fabio. A Veneração aos Santos no Catolicismo popular brasileiro–Uma aproximação histórico-teológica. Revista Eletrônica Espaço Teológico. ISSN 2177-952x, v. 9, n. 15, p. 155-174, 2015.

LEMOS, Márcia Santos. Os embates entre cristãos e pagãos no Império Romano do século IV: discurso e recepção. Dimensões, n. 28, 2012.

JUNG, Emma.  Animus e Anima. São Paulo: Cultrix. 2006

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Editora Vozes Limitada, 2011.

MENIN, Fernanda; LOUREIRO, Lilian; MORAES, Noely Montes. A maldição de Eva: a face feminina da violência contra a mulher. Psicologia Revista, v. 16, n. 1/2, p. 51-71, 2007. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/18057/13417>

SANFORD, John A. et al. Os parceiros invisíveis: O Masculino e Feminino em cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.

Compartilhe este conteúdo:

O desvendar da psique humana

Compartilhe este conteúdo:

Novo livro da psicóloga e escritora carioca Beatriz Breves reúne estudos teóricos e práticos sobre a Ciência do Sentir desenvolvidos por mais de três décadas

 

Fonte: imagens de arquivo pessoal

A psicóloga, psicanalista e psicoterapeuta Beatriz Breves dedicou praticamente toda a carreira ao estudo do sentir. Nestes 35 anos em que desenvolveu a teoria da Ciência do Sentir, a carioca foi além da pesquisa e levou a experimentação científica para o campo da música, das artes plásticas e da poesia. Agora, ela reúne tudo em um novo livro, aprofundando as abordagens de outros oito títulos publicados.

Entre o mistério e a ignorância – O Desvendar da Psique Humana é uma obra que transcende a psicologia e a psicanálise e passa, além da arte, também pela biologia e física. Esta última, inclusive, é a segunda formação da autora, que buscou ampliar o conhecimento sobre o ser humano a partir de uma outra perspectiva – os conceitos físicos.

Com essa visão holística, Beatriz propõe um contraponto ao olhar mecanicista e materialista do paradigma newtoniano, pelo qual é necessário dividir as partes para conhecer o todo. A pesquisa da autora parte do princípio de que o universo, definido por ela como macromicro, é um complexo vibracional, uno, inteiro e indivisível no qual o ser humano, sem se isolar, emerge como um recorte.

Essa concepção vibracional do universo, bem como as interações humanas, são apresentadas no primeiro recorte do livro. “Mistério” parte de uma viagem a Varanasi, na Índia, onde a autora experimentou sentimentos complexos, levando a algumas conclusões. Entre elas, a de que o ser humano somente pode se perceber simbolicamente nas três dimensões do espaço – altura, largura e profundidade –, enquanto no campo do Sentir é possível ir além.

Tudo o que senti naquele lugar é algo impossível de representar. Quantas dimensões precisei perder, para, primeiramente, realizar em minha mente, in loco, a imagem em três e, depois, na fotografia, em duas, se considerar de que hoje se aceita o universo como possuidor de dez dimensões de espaço e uma de tempo? (Entre o mistério e a ignorância, p. 20)

Se o “Mistério” compõe a primeira parte da obra, o segundo recorte mergulha no “desvendar da psiquê humana”. Apoiada nas teses de físicos teóricos, filósofos e cientistas, a autora aborda temas como realidade psíquica, o sentimento do Eu e a identidade como um processo em construção. Por fim, fazendo a junção das partes que formam o nome do livro, a “Ignorância” refere-se ao sentimento vivenciado pela autora frente à transcendência do espaço-tempo em outro destino, Machu Picchu.

A contemplação da vida e a desconstrução de um possível saber foram as bases para a teorização da Ciência do Sentir. Somado às viagens, Beatriz Breves se submeteu como paciente à psicanálise por longos 32 anos. Para ela, foi esta sua grande escola, maior até que o estudo teórico e a prática clínica. E para socializar e enriquecer seu trabalho, fundou a Sociedade da Ciência do Sentir (SoCiS), em 2010. O grupo que se encontrava semanalmente, em Copacabana, atualmente mantém encontros virtuais para falar de sentimentos.

 

Ficha Técnica:
Título
: Entre o mistério e a ignorância – O Desvendar da Psique Humana
Autora: Beatriz Breves
ISBN: 9786587631486
Páginas: 160 páginas
Formato: 15 x 23 cm
Preço: R$ 45,90 e R$ 35,10 (eBook)
Link de compra: 
Amazon e Google Books

 

 

Fonte: imagens de arquivo pessoal

Sobre a autora: presidente, membro efetivo e fundador da Sociedade da Ciência do Sentir (SoCiS), Beatriz Breves é mestre em Psicologia pela American Word University (AWU/Iowa/USA), psicóloga, bacharel e licenciada em Física, com especialização em Física Moderna com base na Física Clássica pela Faculdade de Humanidades Pedro II (FAHUPE). Também é psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise, filiada à International Psychoanalytical Association (SBPRJ/IPA), e psicoterapeuta analítica de grupo pela Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo (SPAG-E.Rio), da qual foi presidente no biênio 1998-99. Como servidora pública aposentada, foi psicóloga estatutária do Serviço de Psicossomática do Instituto de Assistência aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ). Autora da Ciência do Sentir, entre outros livros escreveu: “Macromicro – A Ciência do Sentir”, “O Homem Além do Homem”, “A Fronteira do Adoecer – Por que Você Adoece?”, “O Eu Sensível”, e “Falando de Sentimentos com Beatriz Breves”, todos publicados pela Mauad Editora.

Site: www.bbreves.socis.net.br
Redes sociais: Facebook | Instagram

Compartilhe este conteúdo:

O Homem Aranha de Sam Raimi e a Sombra do Herói

Compartilhe este conteúdo:

Um dos super heróis que mais se identifica com seus leitores sem dúvida é o Homem Aranha. Conhecido popularmente como o “amigão da vizinhança” nas suas histórias, o personagem foi criado nos quadrinhos por Stan Lee (1922-2018) e pelo desenhista Steve Ditko (1927-2018) e teve sua primeira aparição na antologia Amazing Fantasy #15 (1962). Nos cinemas, o herói já foi vivido por três atores diferentes em Hollywood desde o começo do milênio; e por motivos de objetividade este texto tratará da versão dirigida por Sam Raimi (de The Evil Dead, 1981 e Oz: The Great and Powerful, 2013) na trilogia de filmes iniciada em Spider-Man (2002) e termina em Spider-Man 2 e 3 (2004; 2007).

 

Fonte: encurtador.com.br/yEHN7

 

No primeiro filme somos apresentados a origem do alter ego Homem Aranha, e a movimentação de Peter Parker (Tobey Maguire) na saída de sua vida comum e adentrando em uma jornada que se inicia quando é picado por uma aranha modificada geneticamente. Aqui ele deve assumir as responsabilidades que são trazidas por suas habilidades extraordinárias, lidar com a morte de sua figura paterna e enfrentar um grande amigo que se torna o grande antagonista de sua saga inicial. Na Jornada do Herói, de Joseph Campbell, descrita em O Herói de Mil Faces (1949), esse filme poderia representar a Partida, rumo à jornada.

No filme de 2004, Peter deve entender que sua vida pessoal e sua vida secreta como herói não podem se misturar, e pessoas queridas por ele começam a entrar em risco. Além de sua figura materna, sua amada também se vê em meio a trama perigosa que envolve o vilão Octopus (Alfred Molina). Mais uma vez deve enfrentar um grande amigo, pois Octopus era seu benfeitor e muito próximo e no fim, acaba tendo de se digladiar com ele. Coincidentemente esse filme é considerado o melhor da trilogia, tanto no meio da crítica especializada quanto pelos fãs; aqui na jornada do herói veríamos a Descida, rumo a parte mais intensa de sua aventura.

O último filme da trilogia retrata Peter tentando viver com o peso do heroísmo e agora também com o fato de sua amada saber de seus segredos heroicos. Esta parte final também fica marcada pelo retorno de seu melhor amigo, Harry Osborn (James Franco) que vem como o vilão Duende Macabro, pelo Homem de Areia (Thomas Haden Church) e pelo nêmeses máximo, Venom, um ser simbionte que vem do espaço, que primeiramente começa a parasitar Peter e entrar em sua mente. Nesse terceiro filme, que seria o Retorno do herói na narrativa de Peter, o protagonista é forçado a enfrentar o pior de si mesmo por conta desse simbionte: sua Sombra passa a ser seu principal inimigo.

Fonte: encurtador.com.br/hlKT5

 

A Sombra de Cada Um

Em uma dissertação sobre perfis fakes intitulada, Manifestações da Persona e Sombra em Perfis Fakes, Bruna Valdez Bizzotto aponta que “a Sombra é composta por conteúdos tanto do inconsciente pessoal quanto do inconsciente coletivo. Ela representa os aspectos negativos da personalidade que são socialmente reprováveis e, portanto, recalcados” (p. 5). 

A partir daí é possível construir uma noção acerca da função desse arquétipo na psique dos indivíduos. C. G. Jung na obra O Homem e Seus Símbolos, ao se referir aos símbolos culturais e sua relação com o inconsciente quando são reprimidos ou confrontados aponta que: 

Estas tendências formam no consciente uma “sombra”, sempre presente e potencialmente destruidora. Mesmo as tendências que poderiam, em certas circunstâncias, exercer uma influência benéfica, são transformadas em demônios quando reprimidas. É por isto que muita gente bem-intencionada tem um receio bastante justificado do inconsciente e, incidentalmente, da psicologia. (JUNG et al., 2016)

Fonte: encurtador.com.br/fFJSZ

 

Então compreende-se nesse recorte que a repressão de conteúdos psíquicos gera consequências, contudo, especificamente os conteúdos de cunho moral, cultural e ideológico, no que diz respeito a visão de mundo e comportamento dos indivíduos podem gerar demasiada tensão psíquica. Mais a frente na mesma obra, M. L. Von Franz define: 

(…) o conceito da sombra, que ocupa lugar vital na psicologia analítica. O professor Jung mostrou que a sombra projetada pela mente consciente do indivíduo contém os aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis (ou nefandos) da sua personalidade. Mas esta sombra não é apenas o simples inverso do ego consciente. Assim como o ego contém atitudes desfavoráveis e destrutivas, a sombra possui algumas boas qualidades — instintos normais e impulsos criadores. Na verdade, o ego e a sombra, apesar de separados, são tão indissoluvelmente ligados um ao outro quanto o sentimento e o pensamento. (JUNG et al., 2016)

Conclui-se que cada indivíduo então projeta uma sombra, em oposição ou contraposição às características numinosas de sua personalidade, no caso de Peter Parker no terceiro filme da trilogia, não é diferente. O herói passa por um momento de crise em sua vida pessoal – seu relacionamento está abalado, seu melhor amigo está internado e a culpa é sua, por conta de sua identidade secreta. 

 

Fonte: encurtador.com.br/gFHQ8

 

Em dado momento o advento do simbionte (ser parasita cósmico que se alimenta e se fortalece através de seu hospedeiro) literalmente depois de cair do céu e posteriormente se funde ao traje do Homem-Aranha. De maneira muito simbólica esse traje é preto e ao usar ele, Peter cede a pulsões violentas, às paixões e à vaidade devido a suas habilidades sobre humanas, mostrando aspectos extrovertidos de sua personalidade, sendo até malicioso em determinados momentos. Aspectos bem antagônicos a sua personalidade usual, que é pacífica, introvertida e bondosa. 

O Herói e a Caverna

No final apoteótico do filme, Peter deve confrontar sua sombra. Em uma cena marcante, ao se dar conta dos efeitos do traje preto em sua personalidade, ou, simbolicamente ao se ver confrontando sua sombra fisicamente, o herói tem um embate consigo mesmo tentando remover esses aspectos nocivos de si. Na noite tempestuosa numa catedral gótica imensa no topo da torre do sino mais alta Peter Parker se debate e arranca de sua pele a negritude do simbionte.

 

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=_dbwoNlZpeM

 

Ao remover literalmente esse aspecto de si, recobrando contato com seu Self, Peter ainda tem que lidar com as consequências das decisões de sua sombra. O conflito final da película gira em torno das inimizades, dos desafetos e das consequências de comportamentos impulsivos cometidos por ele. Mas dessa experiência ele retorna mais seguro de si, mais ciente de sua força e mais crítico sobre si mesmo.

A descida do herói à caverna é parte fundamental da jornada. Enfrentar seu lado sombrio, entrar em contato com ele propicia amadurecimento, pois é preciso reconhecer que há uma sombra e integrar partes dela. Peter Parker aprende isso de um jeito difícil, mas que ao final da caminhada sempre é recompensador.

Fonte: encurtador.com.br/giptH

 

REFERÊNCIAS

BIZZOTTO, Bruna Valdez; FORTIM, Ivelise. Manifestações da Persona e Sombra em perfis fakes. In: Anais Congresso Brasileiro de Psicologia e Adolescência. 2011.

JUNG, Carl G. et al. O Homem E Seus Símbolos. HarperCollins Brasil, 2016.

Compartilhe este conteúdo:

Abzû, um mergulho no inconsciente

Compartilhe este conteúdo:

O mergulho

Tudo começa em um plano sequência, a câmera passeia pela superfície de um oceano cristalino e depois mergulha. Alguns cardumes de peixes são visíveis, de cores deslumbrantes e formas extravagantes, a água primeiramente clara quase como o céu vai tomando uma tonalidade azul marinha profunda e a as formas de vida ficando cada vez mais diversificadas e maiores; lulas, golfinhos, orcas. Por fim a água fica escura como o céu noturno, e aqui, apenas a luminescência das criaturas abissais ressalta aos olhos, em conjunto elas brilham como um céu estrelado. Então a câmera retorna a superfície, fitando um ser humanoide, boiando desacordado e com traje de mergulho.

 

Fonte: encurtador.com.br/cpF14

 

A aventura começa aqui em Abzû, um jogo indie em terceira pessoa produzido pelo estúdio 505 Games e lançado em 2 de agosto de 2016. O pano de fundo aqui é um oceano vasto e belo, você controla um personagem sem nome, que por conveniência textual será nomeado de Mergulhador. Ele começa sua aventura na superfície, sem memória, e sem conhecimento de causa de sua situação e vai entrando em contato com a natureza e ajudando a restaurar os ambientes à medida que passa por eles enquanto mergulha cada vez mais profundamente nesse oceano misterioso.

De maneira semelhante a outros jogos do gênero, em Abzû o jogador deve guiar o personagem em uma narrativa contada através de gestos, ações e de imagens simbólicas interpretativas. O Mergulhador logo descobre ruínas antigas submersas, estas que contêm desenhos semelhantes a hieróglifos e imagens com narrativas acerca do povo que as deixou, e também contém uma verdade simbólica bem nítida: a água e o ambiente marinho, além de suas criaturas mais majestosas eram venerados por aquele povo.

Fonte: encurtador.com.br/sAS37

 

A simbologia da Água

A ideia dos quatro elementos componentes da vida e do universo vem de diversas cosmogonias distintas. A concepção de um universo feito dos quatro elementos pode ser encontrada em praticamente todas as narrativas mitológicas ancestrais, onde de uma massa caótica ou um mar de caos, surgem os seres divinos responsáveis por reger cada um dos elementos (CHEVALIER, 2020). 

 

Fontes: encurtador.com.br/yKU47

 

O ponto principal na ambientação e estética do jogo é o oceano em que o Mergulhador está inserido. A vastidão das águas e das espécies de animais aquáticos contidas nele é absurda e a narrativa te leva sempre para baixo. Para o ponto mais profundo; passando por correntes marítimas nas profundezas que sempre o levam mais e mais profundamente e essa atitude tem metáforas muito claras na linguagem simbólica do inconsciente. No trecho a seguir, Carl Gustav Jung fala sobre a imagética da água no sonho de um de seus pacientes.

A mãe do paciente derrama água de uma bacia para outra. (Somente no 28° sonho o paciente se lembra de que essa bacia era da irmã.) Esta ação é realizada com a maior solenidade; seu significado é de importância para o mundo circunstante. Depois, o sonhador é rejeitado pelo pai. Defrontamo-nos aqui de novo com o tema da troca (v. sonho 1). Uma coisa é colocada em lugar de outra. O “pai” é eliminado e então começa a ação da “mãe”. Assim como o primeiro representa a consciência coletiva, o espírito tradicional, a mãe figura o inconsciente coletivo, a fonte da água da vida (JUNG, 2018, p. 79)

A analogia então se dá no mergulho, que indica profundeza, que se conecta com o Inconsciente Coletivo, a fonte da água da vida. Em linguagem alquímica, os sentimentos frios que inundam a psique para se contrapor o fogo quente da raiva, do ódio. No próprio ato do choro isso fica evidente, a maneira como uma pessoa parece estar se esvaziando e desaguando suas tristezas ao chorar. O conceito da água, de maneira simbólica, para os pesquisadores modernos segue praticamente inalterado.

A água, fonte e origem da vida, está ligada ao princípio feminino e materno. Nos mitos de criação ela está associada ao caos, ao estado amorfo do universo antes de existir. Segundo o catolicismo, a água é o veículo de expressão do Espírito Santo, motivo pelo qual ela é empregada no batismo. Há também um aspecto lúgubre para a água: ela abriga monstros e, em quantidade, provoca calamidades. Na psicologia do inconsciente, a água turva, escura, com as suas profundezas insondáveis, está ligada ao inconsciente (…). (FERNANDES, 2013, p.1139)

Dessa maneira, é simples observar a jornada do Mergulhador como uma busca por um reencontro, tanto com a natureza, à medida que ele ajuda os ecossistemas ao seu redor a se recomporem, quanto com os sentimentos e as memórias escondidas dentro de si. O fato de se encontrar desacordado e aparentar desconhecimento de tudo ao seu redor no início da aventura não vem sem propósito; além de um recurso de roteiro, para fazer o jogador descobrir as coisas juntamente ao protagonista, também representa essa necessidade do mesmo de mergulhar cada vez mais no desconhecido para reaprender e se reconectar consigo mesmo, e descobrir uma verdade que pode ser meio amarga quando revelada.

Fonte: https://imgur.com/ogsaykt

 

As Lições de Abzû

Na trama que decorre, é logo evidenciado que ali, em harmonia com os seres aquáticos e com a fauna e flora daquele ambiente, vivia uma sociedade pacífica. O Mergulhador logo descobre que ele é parte da calamidade que veio a destruir o balanço delicado daquele lugar, matando e destruindo tudo ao seu redor, pois sua natureza é a mesma das máquinas que encontrou ao longo de sua jornada.

Esses seres vieram e mudaram todo o balanço ecológico daquela região e caçaram os antigos seres marinhos que eram venerados pelo povo antigo. Ao longo da trama o Mergulhador se depara com um Tubarão Branco que o acompanha em sua jornada, primeiramente parecendo um antagonista, pois sua aparência é ameaçadora, mas logo mais se descobre que na verdade ele parece fugir do mesmo, pois reconhecia nele as máquinas que destruíram seu habitat.

 

Fonte: encurtador.com.br/gk235

 

O protagonista também aprende ao longo de sua jornada a desfazer o mal causado pelos antagonistas e a reestruturar biomas marinhos inteiros, deixando a cargo do jogar imaginar a origem dessas habilidades. Seria ele um catalogador de vida marinha arrependido? Um androide que se rebelou? As perguntas são várias e são deixadas em aberto, mantendo um mistério charmoso na história.

O Tubarão branco e o antagonismo entre eles, alegoriza bem a relação da natureza em sua forma mais grandiosa e agressiva – os tubarões brancos estão entre os maiores predadores dos Oceanos – que foge de medo do ser humano, pois ao colocar em outra perspectiva é o jogador que persegue o Tubarão o jogo inteiro.

 

Fonte: encurtador.com.br/bhqQX

 

Na trama do jogo fica claro além de um paralelo com o inconsciente no simbolismo do mergulho a metáfora da jornada do protagonista restabelecendo a vida como um contraponto a destruição ambiental causada pelo ser humano nos oceanos. Chega a ser tocante notar que uma máquina precisa descer às profundezas do inconsciente para se reconectar com suas emoções e desfazer uma destruição catastrófica e milenar, enquanto a humanidade segue sentada em suas poltronas enquanto os oceanos são destruídos; juntamente a os outros biomas. 

Fonte: encurtador.com.br/nyAR8

 

Referências

CHEVALIER, Jean et al.. Dicionário de símbolos. Editora José Olympio; 35ª edição. 2020.

FERNANDES, Ermelinda Ganem; DE SÁ, José Felipe Rodriguez; GANSOHR, Matheus. Aterradora transcendência? Uma análise simbólica do Bafomé de Éliphas Lévi. Horizonte: Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 11, n. 31, p. 1129-1149, 2013.

JUNG, Carl G. Psicologia e alquimia vol. 12. Editora Vozes Limitada, 2018.

Compartilhe este conteúdo:

Erzulie, A Casa dos Sussurros e os Arquétipos Ancestrais Iorubá

Compartilhe este conteúdo:

Publicada pelo selo DC Vertigo, A Casa dos Sussurros (2018) veio pelas mentes de Nalo Hopkinson, Dan Watters retratando um novo grupo de seres místicos e divinos relacionados ao universo de Sandman, do autor Neil Gaiman. Nesse caso, os personagens se relacionam com a ancestralidade Iorubá, onde os protagonistas são algumas das divindades cultuadas pelas vertentes religiosas afrodescendentes na região da Louisiana – mais especificamente para o contexto da história em Nova Orleans.

A história dos habitantes da Casa dos Sussurros começa em uma foz pantanosa em outro mundo, outra dimensão. Ali, no Barco-Casa de nome já citado, vive a divindade Erzulie Frèda Dahomey, que assim como nos ramos africanos, no Voodoo Haitiano é uma Loá do amor, beleza, jóias, dança, luxo e flores. Ali na casa, os seguidores e devotos de Frèda, quando adormecem pensando em sua senhora vão visitá-la em sua festa particular; durante toda a noite os banquetes e a música são intermináveis e cada fiel tem a oportunidade de conversar diretamente com sua senhora e pedir auxílio, favor ou acalento.

 

Fonte: Casa dos Sussurros, Vol. 1, Editora Panini

 

Nos primeiros capítulos é possível observar essa relação da protagonista com seus adoradores; primeiramente recebe a visita do Loá dos crocodilos e personagem folclórico regional, Tio Segunda-Feira, este que vai caminhar ao lado dela durante toda a trama, auxiliando-a, pois além de devoto é fisicamente atraído pela deusa. Também deve lidar com seu sobrinho, chamado Shakpana, que nesse universo é o Loá responsável pelas curas e pelas doenças, deus das pandemias. 

Shakpana perdeu seu diário no mundo dos mortais, neste continham conceitos de várias doenças incuráveis, e isso leva a uma série de eventos que vão ameaçar toda a humanidade. A partir daí a história se desenrola de maneira intrincada; a deusa e sua casa-barco são retiradas de seu domínio devido a acontecimentos decorrentes da história do Sonhar (2018). Uma fratura em seu domínio de poder, sua dimensão particular, a faz ir parar no reino do Sonho dos Perpétuos, onde esta perde contato com seus adoradores e se vê fraca, quase morrendo, pois ela depende dessa energia ligada a seu culto. 

Enquanto isso, no mundo mortal, tanto os servos de Erzulie, quanto seus pares divinos estão à sua busca; Agwe, seu marido, acompanhado de Damballa e Ogum, outros Loás venerados se movem nessa procura. O primeiro volume termina com a apresentação dessas divindades e a consolidação de Shakpana como antagonista. Cada uma dessas divindades representa um aspecto da cultura Iorubá, um domínio divino, um arquétipo de conceitos e ideias. 

 

Fonte: A Casa dos Sussurros, Vol. 1, Editora Panini

Sincretismo e Adaptação

Primeiramente vale contextualizar alguns termos importantes para a espiritualidade em questão. No voodoo e em práticas espirituais derivadas da cultura Iorubá, temos o conceito de Loá. Este seria um termo para designar seres sobrenaturais, divindades e santos adorados pelos praticantes:

Loa, em créole lwa, é o nome dado às divindades cultuadas no vodu. As definições são variadas na literatura, em comum, no entanto, encontramos que trata-se de espíritos, que podem ser ancestrais ou santos. Há um sem número de sinônimos adotados para o termo lwa, tais como sen (santo) ou, no plural, sen yo, zanj (anjo) ou djab (diabo), mistè (mistério) e sprit (espírito). (BAPTISTA, 2012, p.20)

Fonte: encurtador.com.br/vJPS5

 

Compreendendo o que são os Loás, compreender sua classificação também é fundamental. Existem duas vertentes de seres espirituais para o voodoo e derivados, sendo estes os loá Rada, Petro e Ginen. Dois destes são considerados espíritos de origem africana, espíritos ligados à terra ancestral, estes são os rada e ginen; os de denominação petro estão ligados ao novo mundo, seriam, pois divindades surgidas nas colônias, de origem crioula – são considerados agressivos e seus ritos mais nefastos:

De certo modo os chamados loas petro, muito mais violentos e agressivos, são invocados para os trabalhos “mais pesados”, ou para a feitiçaria mesmo, e sua origem é créole, em oposição aos loas rada (de Arada ou Alada cidade do Daomé) que seriam “africanos”. Nesta classificação aparecem também os loas ginen, também africanos devotados aos trabalhos de cura e de contra-feitiçaria. Ao contrário daqueles, cuja natureza permite operar para o bem e para o mal, estes apenas atuam para o bem e se recusam a fazer o mal. (BAPTISTA, 2012, p.277)

Devido ao fenômeno da colonização, a escravidão de povos africanos foi difundida entre as principais nações colonizadoras, o que resultou no deslocamento desses indivíduos por todo o chamado Novo Mundo. Da América do Norte, passando pela América Central (principalmente no Caribe), à América do Sul esse povo foi arrastado contra sua vontade, violados e inseridos em locais diferentes da sua cultura natural e que os maltratavam de maneiras inconcebíveis. Mas a cultura Iorubá lutou com unhas e dentes e sobreviveu em meio as tentativas de assassinato desta.

(…) o Candomblé, a Umbanda, o Xangô e o Batuque no Brasil. Tenho estudado também a Santería ou Ocha e Palo Mayombe, religiões de Cuba e de todo e qualquer lugar nas Américas em que a música cubana ou latino-caribenha estiver. Às vezes, comparadas ao Vodou do Haiti, estas religiões se caracterizam tanto pela prática de oráculo quanto por seus rituais de transe, cura e sacrifício. São religiões com um ritual muito rico e extraordinariamente belo, com música e dança sagradas. (MATORY, 1998, p.263)

Dessa forma, é possível notar que muitas vezes de maneira sincrética, a cultura Iorubá sobreviveu pelo mundo, transformando e adaptando seus símbolos dentro das culturas em que se introduziu; também é notável que seus símbolos se assemelham a diversas outras culturas e isso se mostra na maneira como seus deuses e espíritos são retratados. 

 

Fonte: encurtador.com.br/kGHN0

Os Paralelos Arquetípicos

Se tratando especificamente da obra de Nalo Hopkinson, ela adapta os seguintes Loás: Erzulie, que aparece em sua forma Fredá, que corresponde ao ramo rada para a loá do amor, beleza, jóias, dança, luxo e flores; e seu outro aspecto, do ramo petro aparece posteriormente como sua forma Dantor, que pela autora é dita como a Mãe Protetora, no voodoo também é conhecida como loá das mães solteiras. Erzulie se enquadra no arquétipo feminino, de delicadeza, sedução, na cultura grega ela encontra analogia em Afrodite e dantor, como mãe protetora tem uma analogia ocidental na Virgem Maria, Nossa Senhora de Lourdes, ou mais especificamente na Madona Negra de Czestochowa, padroeira europeia levada ao Haiti por soldados poloneses retratada em pinturas exatamente como Erzulie.

 

Fonte: A Casa dos Sussurros, Vol. 1, Editora Panini

 

Tio Segunda-Feira, retratado como um deus crocodilo e servo de Erzulie, é um mito voodoo que pode ser análogo a Sobek, no Egito, cuja forma é um homem com cabeça de crocodilo que, ao transpirar, alimenta as águas do Nilo com seu suor. No folclore brasileiro temos a figura da Cuca, como ser humanoide reptiliano que costumava devorar crianças desobedientes. 

 

Fonte: A Casa dos Sussurros, Vol. 6, Editora Panini

 

Shakpana, é retratado como o loá das doenças e da cura e para os Iorubá – conhecido também como Sopona – seu nome está ligado a varíola, seus adoradores pintavam sua pele com pintas brancas para representar a doença. Em seu simbolismo e na trama de Hopkinson, se comporta como trickster, semelhante a Hermes, ou Loki, ele mantém a trama em movimento, agindo hora com boas intenções, hora dominado por seus aspectos sombrios e trazendo a doença fatal que motiva a jornada de Erzulie. 

 

Fonte: encurtador.com.br/EGLM1

 

Agwe (ou Agué no voodoo haitiano) é o loá que governa o mar juntamente a sua fauna e flora, na trama da HQ, é um dos cônjuges de Erzulie, e seu paralelo cultural pode ser encontrado em Poseidon ou Netuno greco-romanos, Aegir para os nórdicos ou mesmo Susanoo para o Xintoísmo Japonês.

 

Fonte: encurtador.com.br/fsQY7

 

Ogum, loá do ferro, guerra, caminhos, caça, tecnologia e protetor de artesãos e ferreiros. Na HQ um dos cônjuges, pode ser colocado lado a lado com divindades como Angra dos Tupi-Guarani, Hefesto ou Vulcano greco-romano ou mesmo Agni para os hindus.

 

Fonte: encurtador.com.br/dnwAT

 

Esse fenômeno antropológico também reforça as noções de arquétipos e ancestralidade, onde fica evidente que é possível traçar um paralelo arquetípico entre as divindades e seres míticos de culturas atemporalmente. O exemplo resultado da diáspora negra confirma isso nessas práticas religiosas que perduram até hoje e sua simbologia pode ser colocada em paralelo com diversas culturas ao redor do globo.

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, JR de C. Sè tou melanje: uma etnografia sobre o universo social do vodu haitiano. Rio de Janeiro, Brasil: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

DE HEUSCH, Luc. Kongo in Haiti: a new approach to religious syncretism. Man, p. 290-303, 1989.

MATORY, J. Lorand. Yorubá: as rotas e as raízes da nação transatlântica, 1830-1950. Horizontes antropológicos, v. 4, p. 263-292, 1998. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ha/a/gXdf3gXQczbgGVRzWPMjq7f/?lang=pt>

Compartilhe este conteúdo:

Jouney e as analogias a Individuação

Compartilhe este conteúdo:

A Jornada do Viajante

 

Fonte: encurtador.com.br/biqsR

Em um colossal e aparente sem fim mar de areia, uma estrela cadente cruza o céu e cai em meio às dunas. Um personagem misterioso se levanta do terreno arenoso, sua face é oculta por um capuz que cobre sua cabeça, e seu corpo é coberto por um manto quase cerimonial; porém seus olhos brilhantes são visíveis em meio à escuridão. Olhos esses que demonstram confusão e surpresa, mas que logo se voltam para uma montanha enorme, que desponta no horizonte a frente; no topo dessa montanha há um feixe de luz direcionado aos céus, e é para lá que o indivíduo se sente impelido a ir.

Por conveniência nomearei o indivíduo de Viajante, pois a ele nunca é dado um nome. Ele é a representação do jogador, nas dúvidas, incertezas, na aparência misteriosa e como o jogador, tem uma jornada de descobertas à frente, pois a vastidão do deserto é retumbante e assustadora. 

 

Fonte: encurtador.com.br/prCQS

 

Journey é um jogo eletrônico desenvolvido pela Thatgamecompany que foi lançado em 13 de março de 2012 inicialmente para o PlayStation 3, atualmente também disponível para PlayStation 4 e Microsoft Windows. O que mais chama atenção na trama é sua caracterização simbólica e a maneira como expressa esses símbolos, sendo todo o conteúdo exposto ali muito arquetípico e análogo a linguagem da psicologia analítica. 

É assim que começa a trama, onde o jogador deverá atravessar as ruínas de uma civilização enterrada pelo tempo nas areias do tempo, sem nenhuma única palavra escrita ou falada ao jogador, a trama deste mundo deve ser abstraída por meio das imagens, hieróglifos e posteriormente da surpreendente interação com outros jogadores no decorrer da história. 

 

Fonte: encurtador.com.br/fimKP

A Individuação

Na compreensão do ser humano da psicologia originada em C.G. Jung, os símbolos e os arquétipos são parte intrínseca do desenvolvimento e constituição da psique. Diversos processos se dão ao longo da vida nas interações do ser humano com seus pares e estes definem os aspectos de saúde mental e bem estar psíquico dos indivíduos ao longo da vida. Porém, talvez o mais importante desses processos seja a chamada Individuação Pessoal.

Alguns autores modernos vão discorrer, portanto que “Jung afirma que a individuação é o processo que ocorre a partir da aceitação, por parte do ego, das orientações de uma dimensão da personalidade que denomina ‘si-mesmo’, que, por sua vez, traz informações simbólicas acerca do caminho da realização plena da personalidade” (VERGUEIRO, 2008, p.129). O mesmo autor vem a complementar posteriormente acerca da natureza do fenômeno e como a teoria analítica o compreende:

É, também, uma meta transcendental, em parte consciente e em parte inconsciente. Em parte mística e numinosa e em parte racional. Essa experiência não pode ser traduzida e jamais será de todo conhecida. Além disso, essa passa a ser uma das dificuldades encontradas para a compreensão do pensamento de Jung, já que, para ele, o enigma é parte da vida. (VERGUEIRO, 2008, p.129)

 

Fonte: encurtador.com.br/lwyH3

 

Há uma tendência a visualizar a Individuação como uma espécie de jornada durante a vida. O processo exige uma caminhada de autoconhecimento, contato com as partes numinosas/sombrias dentro de cada indivíduo e de reflexões introspectivas que resultam no autoconhecimento. O que os indianos budistas já caracterizavam como Iluminação por volta do século VI e IV a.C, as narrativas heroicas da Grécia antiga também forneciam paralelos interessantes a jornada de individuação; em sua dissertação de mestrado, Leticia Goncalves Said traz paralelo interessante entre a narrativa de Ulisses na Odisseia e o processo de individuação:

Assim, penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa cultura, quanto a relevância da individuação dentro das teorias junguiana e pós-junguiana, justificam a tentativa de compreendê-lo como uma metáfora do processo conforme descrito por Jung. Além disso, na Odisseia, Ulisses passa por diversas situações que podem ilustrar, de maneira muito rica, o processo de individuação que Jung descreve – por meio de seu embate com Posídon, de seu encontro com Circe, com Calipso, com Nausícaa, da ajuda que recebe de Hermes e da proteção que recebe de Atena, de sua descida ao Hades, e de seu retorno para Penélope, por exemplo. (SAID, 2019, p.12)

A partir dessa perspectiva, é possível afirmar que uma ótima analogia para a Individuação é a de uma jornada. Como a Jornada do Herói, as procissões religiosas, as peregrinações e a maneira como o ser humano associa o ato de percorrer longos caminhos com a transcendência e aquisição de conhecimento. Através do sofrimento vem a recompensa do autoconhecimento e o aperfeiçoamento das noções acerca do self; para alguns esse self é uma divindade e seus desígnios, para outros é aquilo que te aproxima mais de si mesmo em essência.

A Individuação e o caminho em Journey

Em Journey, o Viajante deve solucionar enigmas e usar suas habilidades místicas para perseguir seu objetivo final, que é chegar ao topo do grande monte com o imenso feixe de luz. Suas habilidades incluem flutuar pelas areias do deserto com a ajuda de pequenos pedaços de tecido, parecidos com suas roupas, estes que sempre brilham quando o personagem se aproxima deles também integram parte de sua roupa em determinados momentos.

Nas paredes dos templos, as escrituras e imagens denotam que o Viajante pertence a uma raça de seres que vivem em função da luz da montanha, essa luz tem seus indícios nessas paredes e na própria aparência das habilidades do personagem, que pulsam na mesma cor e parecem emanar da mesma fonte – algo mítico, transcendente e interno; talvez uma analogia a alma e ao Inconsciente Coletivo.

 

Fonte: encurtador.com.br/jEQ17

 

À medida que o jogador avança, parece trilhar um caminho de desafios e percalços, que envolve muito aprendizado simbólico, em busca da literal luz no topo da montanha mais alta, onde aparentemente todas as questões vão ser respondidas. Durante o percurso, outros seres misteriosos muito semelhantes a você aparecem para te ajudar e interagir com você, o que chega a ser surpreendente, pois não se espera contato humano dentro de um percurso tão solitário.

Na parte final do caminho, o Viajante e um indivíduo misterioso devem escalar a montanha final. Uma tempestade gelada tenta varrer qualquer intruso da montanha, com ventos fortes e impiedosos. Auxiliando um ao outro, os dois seres devem se manter aquecidos com a luz vital que pulsa dentro de cada um, para que possam prosseguir; e de maneira tocante essa caminhada se encerra com os dois, companheiros de viagem, dando passos curtos, porém firmes até a derradeira luz.

 

Fonte: encurtador.com.br/zIJ27

 

A partir daí é interpretativo. A Iluminação foi alcançada? Ou só o fim de uma jornada para o começo da próxima? Esse mistério é para a vida, como bem disse Vergueiro (2008, p.129) “além disso, essa passa a ser uma das dificuldades encontradas para a compreensão do pensamento de Jung, já que, para ele, o enigma é parte da vida”, talvez nós nunca sejamos capazes, em um curto período de vida, de transcender, de integrar todos os aspectos, mas o aprendizado que adquirimos no caminho percorrido nunca sumirá das partes mais profundas da mente. 

Fonte: encurtador.com.br/vBDJT

Referências:

VERGUEIRO, Paola Vieitas. Jung, entrelinhas: reflexões sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuação em Cartas. Psicologia: teoria e prática, v. 10, n. 1, p. 125-143, 2008.

SAID, Leticia Gonçalves et al. O mito de Ulisses como metáfora do processo de individuação masculino no modelo junguiano. Dissertação de Mestrado. 2019.

Compartilhe este conteúdo:

Rick Sanchez e o arquétipo do Sábio

Compartilhe este conteúdo:

Sem sombra de dúvidas uma das séries de comédia mais promissoras da atualidade é Rick and Morty (2013). Concebida pelas mentes de Dan Harmon e Justin Roiland, a série trata de um cientista super inteligente de nome Rick Sanchez, que inventou uma tecnologia que o permite viajar entre as dimensões, a qualquer momento que desejar. Ele acaba arrastando seu neto, Morty Smith para as mais surpreendentes aventuras nos confins das dimensões e nos cantos mais surpreendentes de um universo muito rico em personagens e cenários variados.

Até o presente momento o seriado segue com cinco temporadas, a quinta ainda se encontra em processo de lançamento, e a produção trata de diversos temas que transcendem a comédia escrachada que aparenta ser na superfície, como niilismo e algumas vertentes filosóficas, ciência e religião se confrontando, além de aspectos pessoais profundos da psique dos protagonistas. 

 

Rick (à esquerda) e Morty (à direita) Fonte: https://img.ibxk.com.br/2021/03/30/30154331662236.jpg

 

Rick é um homem velho e que deseja viver sem consequências pois sua vida aparenta ser sem sentido e transitória, devido a sua capacidade de estar em qualquer lugar que desejar a qualquer momento; Morty por sua vez se encontra na adolescência e apesar de gostar da maioria das aventuras, passa por momentos de trauma extremos e se vê ao longo da jornada se questionando quanto de sua vida adolescente está perdendo por se dispor a estar sempre na jornada com seu avô.

O primeiro protagonista vive na dualidade entre dois aspectos de sua personalidade: um criador onipotente que pode alcançar qualquer objetivo através da ciência e sua inteligência e conhecimento quase que ilimitados no que diz respeito aos fatos que o seriado expõe ao espectador. Essas duas características de sua personalidade podem ser associadas a dois arquétipos propostos na teoria de Carl Gustav Jung: O Sábio e o Mago.

Fonte: https://img.ibxk.com.br/2021/06/18/18152819417245.jpg?w=704&h=264&mode=crop&scale=both

 

O Arquétipo da Sabedoria e da Inteligência

 

Em Carl Gustav Jung encontramos a definição para o Velho Sábio e sua função na simbologia e na psique humana. Em algumas literaturas também conhecido como Senex (termo latino para Homem Velho), Eremita, ou simplesmente sábio. Este como tantos outros é um dos arquétipos que acompanham a humanidade em seu desenvolvimento histórico e psicossocial, emergindo do Inconsciente Coletivo por meio de simbologia primeva e facilmente reconhecível, afinal, todos conhecem um velho sábio:

A figura do Velho Sábio pode evidenciar-se tanto em sonhos como também através das visões da meditação (ou da “imaginação ativa”) tão plasticamente a ponto de assumir o papel de um guru, como acontece na índia . O Velho Sábio aparece nos sonhos como mago, médico, sacerdote, professor, catedrático, avô ou como qualquer pessoa que possuía autoridade. (JUNG, 2018, p.213)

Representação clássica do Velho Sábio – Fonte: https://www.ednapinson.com.br/wp-content/uploads/2020/07/eremita-tarot.jpg

 

Ou seja, algum ser que representa sabedoria, inteligência e diligência, geralmente associado à imagem de um homem velho, um eremita, que vem auxiliar o herói de alguma jornada a trilhar seu caminho. No caso de Rick Sanchez, nos episódios que retratam seu passado é possível notar como isso já se encaixou melhor com sua persona; em “The Rickshank Rickdemption” (SE 03; EP 01), em um vislumbre de seu passado – mesmo que alegadamente inventado, mas as projeções da mente geralmente não enganam – Rick aprende da pior maneira possível os riscos de sua inteligência isso modifica sua maneira de ver o mundo e alterou essa representação de Sábio contida dentro de sí.

Ainda em Jung nota-se que:

O mago é sinônimo do velho sábio, que remonta diretamente à figura do xamã na sociedade primitiva. Como a anima, ele é um daimon imortal que penetra com a luz do sentido a obscuridade caótica da vida. Ele é o iluminador. o professor e mestre, um psicopompo (guia das almas) de cuja personificação nem NIETZSCHE, o “destruidor das tábuas da Lei”, pôde escapar. (JUNG, 2018, p.46)

Além de fisicamente ser um homem velho pois no seriado fica claro que sua idade ultrapassa os 70 anos, Sanchez é o mago que cria as coisas ao seu redor; é o professor que ensina tudo a seu neto; é o velho experiente com muito a contar sobre o mundo; mas também é o eremita bêbado que traz uma profecia de desgraça e destruição a tudo que o cerca; uma representação bem característica do desequilíbrio e desintegração do arquétipo com a psique.

A Síntese de Rick

 As narrativas dos episódios vão girar em torno dessa trajetória de aprendizagem dos dois sobre si mesmos e das consequências que as aventuras vividas por eles – ou a falta destas – geram na personalidade de cada um. Morty vai progredindo e se tornando cada vez mais perspicaz e parecido com seu avô, Rick por sua vez lida com sua inteligência absurda e a faca de dois gumes que esta se torna para ele. Em certa medida é ela que proporciona sua capacidade de viver tudo o que se dispõe a viver, mas é também ela que o tortura pois como ele mesmo alega algumas vezes, todo esse conhecimento soa irrelevante perante a grandeza do universo. O personagem oscila entre se ver como um deus que sabe e pode tudo e um refém de sua própria mente, que se ancora no alcoolismo e nas drogas para viver em fuga de um passado trágico de decisões e escolhas que o perseguem.

E é nesse ponto da vida de Rick que ela esbarra no arquétipo do Sábio. Sua quase onisciência de conceitos científicos o coloca em um pedestal intelectual perante os personagens ao seu redor, porém, ele mesmo faz questão de pôr abaixo qualquer expectativa erguida sobre ele e sobre o mundo à sua volta. Ele é capaz de criar o que quiser com sua inteligência. Mas tudo isso sucumbe a seus conflitos humanos.

 

Fonte: https://img.ibxk.com.br/2021/07/06/06185446319399.jpg

 

Em uma das temporadas mais sombrias, a quarta, Rick vive uma jornada de reencontro com sua Sombra. O fato de ter sido um pai ausente, um péssimo avô em determinadas ocasiões, até mesmo sua arrogância e incapacidade de fazer amizades o levam a experimentar os momentos mais tristes já exibidos no seriado (Se. 04 Ep. 02: The Old Man and the Seat).

Na terceira temporada no episódio Pickle Rick (SE 03, EP 03) ele tem um confronto com uma terapeuta familiar, que em uma cena magistral, demonstra toda a insegurança e soberba de Rick. Ali fica clara a necessidade de ajuste desses aspectos no personagem e a maneira nociva que isso atinge ele e as pessoas ao seu redor. 

 

O resultado das ações de Rick as vezes são desastrosos – Fonte: https://super.abril.com.br/wp-content/uploads/2018/05/rick-morty-vai-ganhar-mais-70-episc3b3dios.png

 

Rick Sanchez parece precisar integrar sua Sombra e também o Sábio que vive em sua psique com seus aspectos positivos e negativos, para que fique em paz consigo mesmo e possa com mais frequência não destruir universos inteiros apenas por conta de seus problemas pessoais e suas capacidades absurdas. Os seus vícios e comportamentos destrutivos, usando sua inteligência para ferir os que o cercam e mais o amam mostram esse desequilíbrio; o Velho não é mais tão sábio quando se encontra entorpecido em suas dores.

Referências

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

Compartilhe este conteúdo:

Sobre o Animus: um apanhado sobre o Masculino Arquetípico

Compartilhe este conteúdo:

Carl Gustav Jung (1875-1961) foi o idealizador da Psicologia Analítica, e com ela propôs uma série de conteúdos revolucionários acerca da psique humana. Estes diziam respeito ao inconsciente pessoal e coletivo, também a inúmeros aspectos acerca da personalidade individual de cada um, permitindo explorar com precisão a individualidade dos sujeitos, mesmo que estes imersos em instâncias psíquicas tão complexas. Dentre tantos conceitos, também postulou a ideia dos arquétipos, como sendo imagens ancestrais enraizadas no inconsciente coletivo às quais nós temos acesso e com os quais entramos em contato ao longo da vida (JUNG, 2018). 

Dentre os diversos arquétipos existem o Animus e a Anima. Esses arquétipos contrassexuais foram denominados assim por Jung com o objetivo de representar respectivamente as partes masculina e feminina dentro de cada indivíduo, sendo assim condutores da consciência feminina e masculina para o mundo interior da psique. De maneira simbólica, cada homem teria contido em si certo aspecto feminino e cada mulher um masculino.

Anima significa o componente feminino numa personalidade de homem, e o animus designa componente masculino numa personalidade de mulher. Ele tirou tais palavras do termo latino animare, que quer dizer animar, avivar, porque sentiu que a anima e animus se assemelhavam a almas ou espíritos animadores, vivificadores, para homens e mulheres (SANFORD, 1987, p.12).

Fonte: encurtador.com.br/zY346

Pensando em questões contemporâneas ligadas à experiências pessoais de quem produziu esse artigo na clínica escola, surgiu então a indagação acerca do tema, pois muitos pacientes que ingressaram na clínica no período de tempo anterior recente, encontravam em suas demandas uma raiz fortemente ligada a questões de animus e anima. Desde a maneira como esses pacientes lidavam pessoalmente com esse aspecto em si mesmos, até em questões fundamentais imagéticas ligadas a como estes concebiam os conceitos nas suas relações familiares basilares. 

A partir daqui as atenções se voltam ao arquétipo masculino e seus conceitos, implicações, mitos e histórias relacionadas a este que ajudaram a difundir no inconsciente coletivo da humanidade ao longo das eras, em uma abordagem mais presentificada em sua correlação com o cotidiano do ser humano moderno e suas implicações para a vida psíquica dos possíveis pacientes clínicos do século XXI.

O ANIMUS – A MASCULINIDADE INTRÍNSECA NA MULHER

Ao se debruçar em suas primeiras definições acerca do arquétipo de Animus, C. G. Jung afirma que “(…) a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus. Se não é simples expor o que se deve entender por anima, é quase insuperável a dificuldade de tentar descrever a psicologia do animus” (JUNG, 2011, p. 98). As descrições de animus no texto original de Jung vão ser extrapolações do conceito de anima, com o autor a todo momento mostrando ao leitor as oposições e conceitos comparativos entre a psique masculina e feminina. Segue outro exemplo: 

O homem atribui a si mesmo, ingenuamente, as reações da sua anima, sem perceber que na realidade não pode identificar-se com um complexo autônomo; o mesmo ocorre na psicologia feminina, só que de um modo muito mais intenso, se é que isto é possível. A identificação com o complexo autônomo é a razão essencial da dificuldade de compreender e descrever o problema, sem falar de sua obscuridade e estranheza (JUNG, 2011, p.98).

Em ambos os casos fica clara a mensagem intrínseca que Jung quer escrita: existe uma instância arquetípica imagética masculina dentro dos seres humanos pertencentes ao sexo feminino. E que essa imagem arquetípica compensaria determinados pontos da personalidade dessas mulheres – em um sentido pendular quase de enantiodromia – em diversos pontos da sua vida social familiar e afetiva ao longo de todo o processo de seu ciclo vital.

A mulher e o Animus – Fonte: encurtador.com.br/avG02

Emma Jung (2006), expandiu as noções de animus, ela começa descrevendo o animus e buscando referências em literatura clássica para identificar o mesmo. Aqui a autora nos aponta que o masculino é caracterizado por 4 aspectos, ou estágios: de força, ato, verbo e sentido, todos estes dependentes da consciência e cada um individualmente associado a um tipo de masculinidade e de imago masculina. Em todo o seu texto ela aponta que as mulheres em seu âmbito são movidas pelo princípio do Eros, algo que pode ser traduzido como ligação sentimental ou a estas se voltarem a relações e afetividades, enquanto o homem seria regido pelo princípio da Logos, associado a razão. Deixando claro no fim que, para consciência da mulher o que seria mais importante se consiste no que tange às relações pessoais e as nuances que costumam escapar das percepções dos homens.

“O animus serve – em seu aspecto positivo – como elo entre o ego feminino e a sua criatividade. Já  em  seu  aspecto  negativo,  o animus pode  se  expressar  por  meio  de preconceitos e ideias destrutivas nos relacionamentos que estão presentes na vida da mulher” (GONÇALVES, 2018, p.13). Se o indivíduo não consegue integrar os aspectos opostos em si de maneira saudável, se tem alguma experiência traumática durante seu desenvolvimento, ou se na tenra infância falta alguma figura de referência, isso pode gerar um Complexo futuro. Assim, podendo incorrer no chamado animus negativo, as implicações disso para a vida pessoal do paciente podem ser tremendas. Marie-Louise Von Franz disserta sobre:

Em geral, o primeiro homem que uma mulher conhece é seu pai, que portanto tem uma influência muito grande sobre a menina. Se a relação com o pai se constela de um modo negativo, a menina reagirá negativamente a ele. (…) se a relação for negativa, mais tarde ela provavelmente terá dificuldade com os homens e não descobrirá seu próprio lado masculino. No extremo, ela ficará completamente incapaz de abordar os homens. (…) Se o caso não for tão extremo, ela será o que se costuma chamar de uma mulher difícil. Discutirá com os homens, tentará sempre desafiá-los, criticá-los e pô-los para baixo. Ela esperará negatividade da parte deles, e essa expectativa naturalmente criará dificuldades para o parceiro (VON FRANZ, 1988, p.163).

Ser masculino atormentando mulher em seus sonhos – Fonte: encurtador.com.br/lwR28

Para construção de uma psique saudável, a mulher deve ter a capacidade de integrar o animus, a parte masculina, à sua consciência. Mas para que isso ocorra, ao longo da vida diversas experiências devem ser vividas de maneira adequada, para que o animus seja positivo e as características masculinas não gerem sofrimento interno a paciente, gerando um bom futuro relacionamento com as imagos do sexo oposto, e logo, relacionamentos sociais funcionais (JUNG, 2011). 

A SIMBOLOGIA EM ANIMUS

No oriente a simbologia de animus e anima pode ser constatada mais evidentemente nos conceitos Taoístas, vindos de onde hoje se localiza a China. Para o Taoísmo e sua cosmologia o conceito de Yin-Yang compõe o universo e todas as suas coisas, sendo forças de oposição que representam respectivamente a passividade, escuridão, o feminino versus a atividade, luz, o masculino (BIZERRIL, 2010). 

Gonçalves (2018) destaca que essas constatações se dão pela observação da natureza pelos camponeses, sendo que o dia (luz, Yang) fica associado a atividade e a noite (escuridão, Yin) a passividade e ao descanso. Sendo a dualidade um conceito intrínseco à visão de ser humano e reconhecendo que dentro de cada ser existe o aspecto oposto, complementar, a similaridade com o conceito de animus e anima fica claro, mais uma vez, na busca pela enantiodromia.

A alternância yin-yang nomeia uma pulsação básica do cosmo – expansão/recolhimento, ascensão/declínio, dia/noite, movimento/serenidade – descrita no Daodejing. Posteriormente, foi elaborada uma descrição mais detalhada dessas alternâncias cíclicas na dinastia Han, por meio da combinação da cosmologia yin-yang, descrita por Laozi, ao sistema de correspondências entre as coordenadas do tempo, do espaço, da experiência sensível, e os aspectos do corpo humano, e as cinco energias ou modalidades do qi que forma o mundo, conforme descritas no Huangdi Neijing Suwen, o primeiro clássico da medicina tradicional chinesa, atribuído ao mítico Imperador Amarelo, Huangdi. (BIZERRIL, 2010, p.296)

Símbolo Yin-Yang – Fonte: encurtador.com.br/bcoAG

Já no Xintoísmo japonês podemos encontrar a dualidade representada em seu mito de cosmogonia. Silva (2016) expõe o registro mais antigo xintoísta japonês, que é conhecido como Kojiki – em tradução pode ser lido como ‘Registro dos Assuntos Antigos’ – e nele constam as principais narrativas mitológicas nipônicas, incluindo a história das divindades criadoras, os irmãos Izanami e Izanagi. Eles seriam os responsáveis pela vida e pela criação do próprio Japão.

Na última geração, surgiram as entidades o “Macho que convida” e a “Fêmea que convida”, respectivamente Izanagi-no-Mikoto e Izanami-no-Mikoto. À estas duas entidades foi concebida a tarefa de “criar, consolidar e dar vida (…)” à terra que ainda estava cercada pelo oceano primordial, ainda sem forma. (SILVA, 2016, p.32)

Em diversas histórias são essas duas figuras divinas que se confluem para gerar os seres vivos. Comparativamente a outras culturas o equivalente dos pólos opostos sexuais se tratarem de seres  primordiais de criação e que movem o universo de seu estado de inércia existencial não é incomum, na xintoísta não diferente, vemos a narrativa primordial da tentativa do nipônico tentando compreender essa simbologia. Vide esse autor que coloca Izanagi e Izanami em um paralelo com o cristianismo:

Há uma lenda que ainda é contada em uma região de Okinawa: há muito tempo, as pessoas da terra não sabiam como fazer filhos. Algumas dessas pessoas viram dois botos acasalando no mar. Elas imitaram a atividade dos botos e aprenderam a fazer filhos. É a história de Adão e Eva de Okinawa, uma história com muito mais apelo do que a que temos no Kojiki, a antiga narrativa dos mitos japoneses. Lá, lemos que Izanami e Izanagi estavam circundando um pilar. Eles observam um ao outro como se estivessem observando uma máquina. Um deles diz: “Aqui há uma protuberância, aí há uma depressão; vamos encaixar um no outro e ver o que acontece”. Eles acabam tendo filhos (…) (DE ABREU, 2017, p. 207)

Izanami a esquerda e Izanagi a direita tocando a lança no mar e criando o Japão – Fonte: encurtador.com.br/jJV15

 Conclui-se então que, em se tratando especificamente da cultura oriental – pois esta foi usada de base filosófica e direcional por Jung na elaboração de sua maneira de enxergar o mundo – o masculino estar presente no feminino é um conceito que vem sendo passado no inconsciente coletivo a milênios. Os povos orientais tinham uma compreensão da psique simbolicamente falando, muito evoluída e isso se reflete em todas as suas práticas culturais, lendas e espiritualidade. Um não pode existir sem o outro e para o equilíbrio, a enantiodromia, a equivalência de yin-yang, deve existir luz na escuridão, e um pouco de masculino dentro do feminino.

REFERÊNCIAS

BIZERRIL, José. O caminho do retorno: envelhecer à maneira taoista. Horizontes Antropológicos, v. 16, n. 34, p. 287-313, 2010. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ha/a/YHHJ8YBsxTJxbhqLxhzWpZk/?lang=pt>

CHAGAS, Maria Inês Orsoni; CAMPOS, Terezinha Calil Padis. O complexo paterno na psique feminina e a sua influência nos relacionamentos heterossexuais numa perspectiva da Psicologia Analítica. 2000. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCBS/Cursos/Psicologia/boletins/1/artigos8.pdf>

DE ABREU, Lúcia Collischonn. Tawada Yôko Não Existe. Translatio, n. 14, p. 203-217, 2017. Disponível em:<https://www.seer.ufrgs.br/translatio/article/view/76739/45635>

GONÇALVES, Grazieli Aparecida; DE OLIVEIRA LOPES, Adriana Goreti. O matrimônio sagrado yin-yang. Self-Revista do Instituto Junguiano de São Paulo, v. 3, 2018. Disponível em:<https://self.ijusp.org.br/self/article/view/31> 

JUNG, Emma.  Animus e Anima. São Paulo: Cultrix. 2006

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Editora Vozes Limitada, 2011.

MENIN, Fernanda; LOUREIRO, Lilian; MORAES, Noely Montes. A maldição de Eva: a face feminina da violência contra a mulher. Psicologia Revista, v. 16, n. 1/2, p. 51-71, 2007. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/18057/13417>

SANFORD, John A. et al. Os parceiros invisíveis: O Masculino e Feminino em cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.

SILVA, Guilherme et al. Xintoísmo e produção de presença-a espiritualidade no mangá Mushishi. 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/179738>

VON FRANZ, Marie Louise. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix. 1988.

Compartilhe este conteúdo: