Em “Vivarium” o micro e o macrocósmico se encontram na prisão da família e do casamento

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Vivarium é um filme simbolicamente ambicioso por tentar criar uma visão cosmológica integrada: macro e micro se encontram naquele subúrbio que mais parece lembrar a cidade cenográfica de Seaheaven do clássico filme gnóstico Show de Truman.

“Para onde foi todo mundo?”, pergunta-se um jovem casal que foi conhecer a casa perfeita para comprar em um subúrbio de classe média. Mas que se veem de repente presos em um misterioso labirinto em loop de casas idênticas, estranhamente hiper-reais, com suas cercas brancas, grama verde e um céu azul com nuvens perfeitas que lembram os quadros surrealistas de René Magritte. Será que estão presos em uma armadilha hiperdimensional? Uma metáfora da prisão do casamento e da família no qual o micro e o macrocósmico se encontram? Esse é o filme “Vivarium” (2019), um curioso híbrido de ficção científica e terror, co-produção belga-irlandesa-dinamarquesa. Um filme ambicioso que pretende explorar um grande arco simbólico que começa com o Paradoxo de Fermi na Cosmologia (“para onde foi todo mundo?”) até chegar as alusões ao pintor Magritte, ao misticismo do número nove e da cor verde que domina aquele subúrbio – a síntese do sonho da classe média americana. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.

Primeiro físico a controlar a reação nuclear, Enrico Fermi observou que existia uma contradição entre o crescente conhecimento do Universo e a ausência de contato com qualquer forma de vida existente: com bilhões de outras galáxias lá fora, muitas delas bilhões de anos mais velhas que a nossa, pelo menos uma não poderia já ter entrado em contato conosco?

“Onde está todo mundo?”, indagava o físico. Isso ficou conhecido como “Paradoxo de Fermi”. Agora, imagine um filme que construa um arco simbólico que ligue esse paradoxo com a natureza sufocante do casamento em um típico subúrbio de classe média.

Temos então o filme Vivarium (2019), dirigido e escrito por Lorcan Finnegan, um curioso híbrido de ficção científica e terror – um jovem casal está à procura da casa perfeita para iniciar uma vida a dois. Um excêntrico corretor de imóveis leva o casal para conhecer um lançamento suburbano de um conjunto de casas que mais parece uma obra do pintor surrealista belga Renné Magritte. Essa alusão será importante na compreensão do filme.

Inadvertidamente, o casal se encontrará prisioneiro em um misterioso labirinto de ruas e casas idênticas que sempre parecem se fechar em loop – repentinamente o casal se descobre prisioneiro em alguma dimensão fora do tempo e espaço, na mais típica atmosfera da série clássica Além da Imaginação.

O primeiro mistério: são dezenas e dezenas de sobrados, idênticos a se perder no horizonte. Porém, todos vazios e trancados. Aparentemente, só eles ocupam uma casa (a número nove, outra alusão simbólica). Sob um perfeito céu azul ensolarado, salpicado de nuvens ao estilo das obras de Magritte. E nunca chove. Só eles parecem ocupar aquele vasto condomínio de labirintos infinitos. Onde está todo mundo?

Também parece que aquela imensa estrutura foi criada especialmente para eles. Condenados a criar um bebê que surge do nada e viver todos os tropos e clichês da típica vida conjugal de classe média numa atmosfera claustrofóbica e sombria. Contraditoriamente, num cenário perfeito. Hiperrealisticamente perfeito em um subúrbio moderno pré-fabricado em dry wall.

  A casa dos sonhos pode ser uma armadilha. A vida conjugal perfeita pode ser a prisão de uma rotina entediante e opressiva.

Como veremos, Vivarium é um filme simbolicamente ambicioso por tentar criar uma visão cosmológica integrada: macro e micro se encontram naquele subúrbio que mais parece lembrar a cidade cenográfica de Seaheaven do clássico filme gnóstico Show de Truman.

Assim como o Paradoxo de Fermi seria uma das evidências de que o Universo seria uma gigantesca simulação computacional para aprisionar a humanidade, da mesma forma a sociedade e, principalmente, sua célula central (a família e o modelo único de vida conjugal) seria um constructo de realidade para nos manter contidos e operacionais em um sistema.

Quem criou tudo isso? Quem nos observa, atentos em nos manter vivos dentro desse horizonte de eventos que chamamos de realidade? Esse é o mistério que permeia Virarium e aguça a curiosidade do espectador.

Fonte: encurtador.com.br/yGNOZ

O Filme

O tema central de Vivarium é o típico subúrbio de classe média, símbolo do sonho americano de conformismo e alienação por trás de cercas brancas e gramados bem cuidados. Filmes como Blue Velvet, de David Lynch (uma orelha cortada achada no gramado é a ponta de um submundo muito além da normalidade) e Beleza Americana, de Sam Mendes (a descoberta do erotismo libertador para além da mediocridade cotidiana) são exemplos de narrativas de como necessidade s humanas podem ser suprimidas em relacionamentos coagulados.

Vivarium vai mais uma vez revisitar esse tema acompanhando o casal Tom (Jesse Eisenberg) e Gemma (Imogen Poots). Um casal comum: ela trabalha como professora em uma escola infantil – ama seu trabalho e ama crianças. Tom é um jardineiro que dirige para o seu trabalho, carregando suas ferramentas, no VW da mãe, embora planeje comprar um caminhão adequado.

Para eles, a vida e o trabalho ainda são divertidos nessa fase – nada ainda parece que foi oprimido pelo realismo das obrigações.

Até que um dia, depois da aula, Gemma encontra uma garotinha da sua turma muito triste: encontrou na grama um filhote de passarinho morto – parece que foi desalojado de seu ninho por um cuco predador (cuja ação predadora cruel vimos nos créditos iniciais). Esse início parece querer nos mostrar estranhos presságios para o que veremos adiante.

Fonte: encurtador.com.br/bBRTW

Pensando em morarem juntos para iniciar uma nova vida, eles encontram num estande de vendas um estranho agente imobiliário que os convence a visitar um lançamento chamado Yonder.

Chegando lá, vemos que Finnegan cria uma paisagem obviamente digitalizada de casas quadradas e idênticas pintadas de verde, criando uma pura hiper-realidade desorientadora. Visitando uma casa mobiliada, percebem que o corretor desapareceu… Bom, então vamos embora!, decidem.

Só que eles não conseguem mais encontrar a saída daquele labirinto de casas idênticas. Tom roda com o seu VW até a noite cair e a gasolina acabar. Eles apenas andaram em círculos, sempre parando em frente a casa número 9, na qual parecem terem sido condenados a morar para sempre.

Estranhas caixas de papelão surgem diariamente do nada na porta da casa, com alimentos congelados ou acondicionados à vácuo.

Até que um dia, chega mais uma caixa de papelão… dessa vez com um bebê com um bilhete: “Cuidem dele, para depois liberá-lo”.

A partir desse ponto, a dinâmica de Tom e Gemma naquela casa, cuidando do bebê, começa a assumir todas as situações e clichês do casamento: ela, cuidando do “pequeno mutante” (uma criança que cresce mais rapidamente do que o normal, tenta imitar as palavras e comportamentos dos “pais” e dá um grito ensurdecedor quando está com fome e reivindica comida) e Tom cavando obsessivamente um buraco no jardim para tentar encontrar uma saída daquele mundo.

Fonte: encurtador.com.br/cBCE0

Quando o micro e o macrocósmico se encontram – Alerta de spoilers à frente

É a metáfora da vida conjugal e das reponsabilidades da classe média: ela ocupada com o “filho” e ele no seu “trabalho” diário. Cavando, cada vez mais ansioso, estressado, desenvolvendo um comportamento obsessivo-compulsivo, enquanto vai desenvolvendo um problema respiratório “ocupacional”. É a própria condição profissional-existencial de muita gente insatisfeita e infeliz num emprego apenas para dar a segurança familiar da subsistência.

Literalmente cavará a própria sepultura para depois o garoto, agora adulto, falar para a “mãe” à beira da morte: “esse é o papel da mãe… cuidar do filho para o mundo, até liberá-lo”.

É a própria metáfora da “síndrome do ninho vazio” – depois que os filhos crescem e vão embora, simbolicamente os pais morrem.

A narrativa de Vivarium fundamenta-se em três simbolismos para fazer essa convergência gnóstica entre o micro e o macrocósmico: as sucessivas alusões ao surrealista René Magritte, a cor verde e o número 9.

As estranhas nuvens que emolduram a paisagem hiper-real (“elas não têm forma de nada, apenas de nuvens”, diz a certa altura Gemma) são uma óbvia referência à série de pinturas de Magritte chamada “Império das Luzes” (1947-1965). Magritte foi o mestre dos paradoxos visuais – embora o cotidiano possa dar a impressão de normalidade, existem anomalias em toda parte: uma esquisitice terrena que está por trás do dia-a-dia, e que deveria ser revelado pelo surrealismo.

Fonte: encurtador.com.br/GLN37

Esse é o propósito de Finnegan: o estranho lugar que Tom e Gemma ficaram prisioneiros por algum propósito inescrutável de um demiurgo alienígena, apenas revela o absurdo das relações conjugais institucionalizada pela ordem familiar que congelam e suprimem as necessidades humanas.

Ao lado do azul daquele céu surrealista, a cor verde é onipresente: gramados paredes das casas e ambiente. O verde está associado a algo quintessencial, a uma transmutação química que pode resultar tanto na vida quanto no envenenamento: de um lado a fotossíntese, ar e natureza; e do outro, processos tóxicos e veneno. Subúrbios de classe média são ambientes tóxicos e sufocantes.

E o número 9. Desde a música “Revolution 9” dos Beatles, esse número está associado na cultura pop a “loops” (da mesma forma como a música dos Beatles foi construída na engenharia de som), passando pelo filme Número 9 (The Nines, 2007) ou a animação 9 – A Salvação (2009).

Pela simbologia mística, o número 9 representa finais de ciclos – é o número de meses da gestação, por isso carregando o simbolismo do esforço e sinalizando o fim de um processo. Representa a jornada completa: seu início e término. Assim que termina, tem-se um novo início a partir do número 1.

Assim como o loop representado pelo final do filme no qual o garoto que cresceu compulsoriamente criado por Tom e Gemma assume o lugar do velho corretor de imóveis. Para levar mais jovens casais para a armadilha cósmica do subúrbio Yonder.

Aquele lugar que será a sua última casa, assim como o seu casamento, a família e o emprego.

FICHA TÉCNICA:

VIVARIUM

Direção: Lorcan Finnegan

Elenco: Imogen Poots, Jesse Eisenberg, Senan Jennings, Eanna Hardwicke

Ano: 2019

País: Bélgica, Dinamarca, Irlanda

Gênero: Ficção Científica/Mistério

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Coronavírus: circuit breaker político, engenharia social e domínio de espectro total

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Circuit Breaker é um mecanismo de segurança utilizado pela Bolsa de Valores para interromper todas as operações no momento em que as ações negociadas sofrem grandes quedas consideradas atípicas.

Enquanto a grande mídia ocidental sustenta a narrativa de que o epicentro da Pandemia do COVID-19 estave numa feira de rua suja e úmida na China, reportagens da mídia do Japão e Taiwan começam a levantar evidências de que esse novo coronavírus teria sua origem nos EUA. Isso depois do repentino fechamento no ano passado de um laboratório de armas biológicas em Maryland, por ausência de salvaguardas contra vazamentos patógenos. Em seguida ocorreram crises de “fibrose pulmonar” nos EUA, cuja culpa foi colocada nos cigarros eletrônicos. Juntamente com a “coincidência” da realização dos Jogos Mundiais Militares em Wuhan pouco tempo antes da eclosão da crise, provavelmente o “Evento do Cornavírus” entrará para a História como um dos maiores eventos de engenharia social da humanidade. Marcará o início de uma nova era da biopolítica e bioeconomia: “circuit brakers” que extrapolam a simples ferramenta de frear um mercado financeiro em crise – uma nova forma de consenso social ao colocar todo o cotidiano dos indivíduos e cenários políticos em suspensão. Uma gigantesca “psy op” para criar o cenário geopolítico perfeito de “domínio total de espectro”.

Circuit Breaker é um mecanismo de segurança utilizado pela Bolsa de Valores para interromper todas as operações no momento em que as ações negociadas sofrem grandes quedas consideradas atípicas – espera-se que a tendência seja a amenização das quedas e o mercado volte ao seu movimento considerado natural. Ou seja, proteger o mercado da sua própria “mão invisível”.

De forma inédita, a Ibovespa acionou esse mecanismo três vezes em uma semana, em dias de formação de uma tempestade perfeita: a crise do petróleo com o impasse entre Rússia e Arábia Saudita no momento em que o surto mundial do novo coronavírus foi qualificado como uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde.

E para completar, a decisão intempestiva de Trump que ajudou a derrubar ainda mais as bolsas pelo mundo: a suspensão por 30 dias viagens da Europa para os EUA, exceção aberta ao Reino Unido. Que, sabemos, não se considera parte da Europa. Além de mais uma vez revelar o modus operandi de Trump: seu gosto por muros, bloqueios, barreiras…

A ironia em tudo isso é que com a promoção do COVID-19 a uma pandemia, o circuit breaker, de ferramenta de intervenção do mercado de capitais, parece que transcendeu do sistema financeiro para se tornar uma ampla medida de ação social – de repente, parece que a sociedade está entrando em um estado de suspensão semelhante a dos mercados financeiros.

Cancelamento de eventos esportivos, suspensão de aulas em escolas e universidades, recomendações para evitar aglomerações com mais de 100 pessoas, no Rio a PM poderá interditar praias para evitar aglomerações, manifestações políticas nas ruas programadas da direita à esquerda foram proibidas, acesso a shoppings poderá ser restrito… a recomendação das autoridades é: FICAR EM CASA!

O Congresso ameaça entrar em recesso parlamentar forçado como medida para evitar a propagação do coronavírus. De repente, aos poucos toda a vida econômica, social e política começa a entrar num estado de suspensão no tempo e espaço.

Fonte: encurtador.com.br/aezI0

Circuit breaker social

Está se esboçando um gigantesco circuit breaker social, como se configura na Itália, o país mais afetado com 1.266 mortos e quase 20.000 infectados: ruas, cafés, comércio, estádios desertos, jogos e eventos suspensos, enquanto 60 milhões de italianos estão em estado de quarentena.

E junto com tudo isso, um show de “desinformação” da mídia corporativa que ajuda com o tempero do medo e do pânico. Principalmente a mídia televisiva que cria uma “desinformação” a partir da contradição entre o que os apresentadores e repórteres informam e o que a “arte” (infográficos, tabelas etc.) mostram nos cromakeys e efeitos de computação gráfica de estúdio. Como abordamos em postagem anterior – clique aqui.

Um pequeno exemplo entre os diários: na edição de sexta feira do telejornal local Bom Dia SP da TV Globo, um infográfico apresentava as universidades de São Paulo que haviam suspendido as aulas em razão de alunos infectados. Estava lá, no pé da tabela, o nome da Universidade Anhembi Morumbi. Para depois o apresentador detalhar que essa universidade apenas havia suspendido as aulas em uma turma noturna de sétimo semestre de Publicidade, determinando medidas de desinfecção da sala. Enquanto a turma seria transferida para outro prédio.

Foi o suficiente para, naquela manhã, grupos de WhatsApp compartilharem a foto do infográfico global e a Universidade amanhecer deserta com salas vazias e professores solitários. Um deles também compartilhou a foto de uma sala de aula vazia na qual jazia uma mochila em uma carteira: “nem chego perto da mochila”, comentou a assustada postagem da foto… depois se perguntam como o WhatsApp foi o responsável estratégico da vitória do atual presidente…

Fonte: encurtador.com.br/FOVW2

A nova era da Engenharia Social

Provavelmente o “Evento do Cornavírus” entrará para a História como um dos maiores eventos de engenharia social da humanidade. Marcará o início de uma nova era no sentido de que a vida após o coronavírus e o antes do coronavírus serão surpreendentemente diferentes.

Por que “engenharia social”? Porque estamos entrando na era da biopolítica e bioeconomia que trazem uma vantagem flagrantes nas formas de controle social – o prefixo “bio” transmite uma imagem “apolítica” e de “neutralidade” para o distinto público, naturalizando a economia política: eventos de suposta natureza biopatológica podem conferir aparente “cientificidade”. E dessa maneira, criar consenso social.

Desde a explosão da chamada “bolha das tulipas” de 1637, sabemos que os mercados convivem com bolhas como formas rápidas de ganhos e destruição de riquezas – momentos de otimismo da economia, um excesso de confiança dos investidores que os leva a apostar num cenário de ganhos ininterruptos.

Desde o ano passado, analistas do cassino financeiro global alertavam para a possibilidade de um novo estouro da bolha financeira, igual ou ainda pior ao crash de 2008 – a explosão da bolha dos créditos imobiliários.

Esses especialistas alertavam para o rápido crescimento da China, o crescimento exponencial do crédito estudantil norte-americano, a dívida pública extremamente elevada na Europa. Em especial da Itália – mais de 130% do PIB do país.

No Brasil, a exuberância dos investimentos nas bolsas (apresentada como a bonança financeira para as “sardinhas”, ou seja, as pessoas físicas diante do cenário de juros baixos nos rendimentos fixos) alimentadas por empresas midiáticas como a XP Investimentos, somado à fuga em massa do capital estrangeiro, criavam o cenário perfeito de um estouro iminente.

Fonte: encurtador.com.br/vFOP4

“Cair, mas com estilo”

E mais! Essa conjuntura da preocupante exuberância de uma bolha financeira contava com um igualmente preocupante cenário geopolítico para os EUA: a guerra comercial com a China. Decididamente os EUA querem arrastar o mundo junto na estratégia geopolítica de quebrar a participação cada vez maior da China da cadeia produtiva global.

 Certamente, um novo crash jamais poderia ser igual ao de 2008: em tons dramáticos, assustadores, e que rendeu um punhado de produções cinematográficas que celebrizaram o evento: Trabalho Interno (2010), Margin Call (2011), 99 Holmes (2014), The Big Short (2015), entre outros.

Então… apertem os cintos, porque vamos “cair, mas com estilo” – como Buzz Lightyear definia o seu voo na animação da Pixar Toy Story.

HOW CONVEEEEENIENT! Exclamaria a impagável Church Lady do humorístico Saturday Night Live. Explode uma pandemia do novo coronavírus na província chinesa de Wuhan no final de 2019 que arrastaria o mundo para uma pandemia, derrubando os mercados financeiros globais, trazendo pesados prejuízos econômicos à China e expandindo o conceito de “circuit braker” de ferramenta financeira para estratégia de engenharia social.

Colocar o mundo da economia real em suspensão, enquanto o cassino global recebe pesados aportes de dinheiro público no manjado script da socialização das perdas: Trump injeta mais de US$ um trilhão e meio em liquidez no sistema financeiro, enquanto Bolsonaro fala em ajuda a companhia aéreas e “pacote de medidas econômicas”. Prepare-se para mais socialização das perdas, enquanto os “tubarões” engolem as “sardinhas no cassino financeiro, concentrando ainda mais riqueza.

Temos epidemias o tempo todo no mundo. Além disso, temos eventos violentos ocorrendo continuamente: desde erupções vulcânicas, tsunamis ou tornados, até agitação social ou guerras. Por que, então, foi esse evento que capturou a atenção das pessoas de maneira tão profunda e poderosa?

Na opinião desse humilde blogueiro, porque estava na hora!

Novo coronavírus não é chinês

A mídia ocidental criou a narrativa oficial de que o surto de COVID-19 surgiu na China, precisamente em animais em um mercado de rua sujo e úmido em Wuhan. Mas jamais o mítico “paciente zero” foi localizado e identificado. Isso porque talvez a origem não esteja na China.

Enquanto isso a mídia oriental (Japão e Taiwan) começou a levantar evidências de que esse novo coronavírus teria sua origem nos EUA. Em fevereiro de 2020, uma reportagem da japonesa Asahi (impressa e TV) afirmou que o coronavírus se originou nos EUA, não na China , e que algumas (ou muitas) das 14.000 mortes americanas atribuídas à influenza poderiam ser resultantes do coronavírus. Sugeriu que o governo dos EUA pode não ter conseguido entender o quão desenfreado o vírus foi em solo americano – clique aqui.

Fonte: encurtador.com.br/qrwCJ

Em 27 de fevereiro um programa de TV de Taiwan apresentou diagramas e fluxogramas sugerindo que o coronavírus se originou nos EUA. O homem no vídeo é um dos principais virologistas e farmacologistas que realizou uma pesquisa longa e detalhada da origem do vírus. Ele passa a primeira parte do vídeo explicando os vários haplótipos (variedades), e explica como eles estão relacionados, como um deve ter chegado antes do outro e como um tipo é derivado do outro. Ele explica que isso é apenas uma ciência elementar e nada tem a ver com questões geopolíticas – clique aqui para acessar o vídeo (em chinês).

A lógica básica é que a localização geográfica com a maior diversidade de linhagens de vírus deve ser a fonte original, porque uma única linhagem não pode surgir do nada. Ele demonstrou que apenas os EUA têm todas as cinco linhagens conhecidas do vírus (enquanto Wuhan e a maior parte da China têm apenas uma, assim como Taiwan e Coréia do Sul, Tailândia e Vietnã, Cingapura e Inglaterra, Bélgica e Alemanha), constituindo a tese de que os haplótipos em outras nações podem ter se originado nos EUA.

O virologista afirmou ainda que recentemente os EUA tiveram mais de 200 casos de “fibrose pulmonar” que resultaram em morte devido à incapacidade dos pacientes de respirar, mas cujas condições e sintomas não puderam ser explicados pela fibrose pulmonar. As autoridades do país foram informadas a considerar seriamente essas mortes. Mas apenas culparam os óbitos aos cigarros eletrônicos. Para depois encerrarem a discussão.

Laboratório de armas biológicas de Fort Detrick (EUA): fechado por falta de segurança – Fonte: encurtador.com.br/lopu6

Ainda declarou que em setembro de 2019, alguns japoneses viajaram para o Havaí e voltaram para casa infectados, pessoas que nunca haviam estado na China. Isso ocorreu dois meses antes das infecções na China e logo após o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) encerrar repentina e totalmente o laboratório de armas biológicas de Fort Detrick, Maryland, alegando que as instalações não possuíam salvaguardas contra vazamentos de patógenos, segundo o jornal New York Times – clique aqui.

Foi imediatamente após esse evento que surgiu a “epidemia do cigarro eletrônico”. Wuhan tornou-se supostamente o epicentro da pandemia do COVID-19 logo depois dos Jogos Militares Mundiais (18 a 27 de outubro de 2019). Alguns membros da equipe dos EUA, infectados pelo incidente em Fort Detrick e após longo período de incubação, teriam manifestado sintomas menores e infectado potencialmente milhares de residentes locais da província chinesa.

Kristian Andersen, biólogo evolucionária do Scripps Research Institute, analisou sequências do COVID-18 para tentar esclarecer sua origem. Ele disse que o cenário é “inteiramente plausível” de pessoas infectadas trazendo o vírus para a Wuhan de algum lugar externo.

Andersen publicou sua análise dos 27 genomas disponíveis do COVID-19 em 25 de janeiro em um site de pesquisa em virologia. Ele sugere que eles tinham um “ancestral comum mais recente” – o que significa uma fonte comum – desde 1 de outubro de 2019.

A grande mídia ocidental inundou suas páginas por meses sobre o vírus COVID-19 originário do mercado de frutos do mar de Wuhan, causado por pessoas que comem morcegos e animais selvagens. Tudo isso foi provado errado.

O vírus não surgiu no mercado de frutos do mar de Wuhan, como agora ficou provado, mas foi trazido para a China a partir de outro país. Parte da prova dessa afirmação é que as variedades genômicas do vírus no Irã e na Itália foram sequenciadas e declaradas não pertencendo à variedade que infectou a China e, por definição, devem ter se originado em outros lugares.

Parece que a única possibilidade de origem está nos EUA, porque somente esse país tem o “tronco de árvore” de todas as variedades. E, portanto, pode ser verdade que a fonte original do vírus COVID-19 foi o laboratório militar de bioguerra dos EUA em Fort Detrick.

Fonte: encurtador.com.br/erBI3

Ponto de inflexão

Essa crise do novo coronavírus representa também um ponto de inflexão. Porque a maneira como as pessoas interagem mudou e se tornou muito diferente do que costumávamos ter há apenas 10 anos. Porque a maneira como as informações são produzidas e transmitidas atingiu um importante ponto de inflexão.

Uma atmosfera de onisciência midiática que cria efeitos mais amplos do que a doença real.  O COVID-19 é uma doença real e grave.

Mas, como eu disse, não é o único problema endêmico, epidêmico ou pandêmico que temos. Temos surtos gripais todos os anos e não se verificam regiões ou países inteiros isolados e monitorados.

Temos escassez de alimentos e água em muitas partes do mundo, levando a muito mortes todos os dias, e não há esforços concentrados e coordenados e um alarme midiático para que esses problemas possam ser resolvidos.

Por que? Porque a quantidade de informações em torno desses eventos não é tão relevante quanto as em torno da onipresença das informações sobre o novo coronavírus.

Explicando melhor, parece não haver ligação direta entre a magnitude ou o perigo potencial de um evento específico e a quantidade de informações sobre esse evento.

Domínio de espectro total

As informações de Japão e Taiwan e esse ponto de inflexão criado pela onipresença midiática na qual a quantidade de informações necessariamente não corresponde à magnitude real de um evento, sugere essa dúvida plausível: estamos diante do início de uma nova era de engenharia social?

Fonte: encurtador.com.br/aCS15

No Brasil, a pandemia do coronavírus chega num momento muito conveniente, lembrando bastante o conceito de “domínio de espectro total” – conceito de estratégia militar que utiliza um vasto leque de técnicas de guerra psicológica e econômica.

Num momento em que econômica e politicamente o País caminhava para um cenário de acirramento de crise (da iminente explosão da bolha financeira à queima de arquivos vivos comprometedores ao clã Bolsonaro como a morte do ex-PM Adriano Nóbrega e o “conveniente” enfarto fulminante do ex-ministro Gustavo Bebbiano), o “circuit braker” econômico, político e social da pandemia COVID-19 é como se colocasse tudo em suspensão diante de uma emergência biológica.

E desse um conveniente tempo para as peças voltarem a se organizar, como se fosse uma parada técnica ou um intervalo num evento esportivo, demonstrando na prática a estratégia de “domínio de espectro total”:

(a) proíbe-se manifestações de rua;

(b) Assim como a greve dos caminhoneiros serviu de álibi para a estagnação econômica durante a Era Temer, da mesma forma a Pandemia Coronavírus será o bode expiatório para a continuidade do desemprego e da crise. Coloca-se a compulsória agenda neoliberal fora de discussão;

(c) Para a esquerda, a crise biopolítica tem lá sua serventia: livra-se de um potencial fracasso em levar as massas para as ruas, já que nos últimos anos ela se desconectou das bases sociais;

(d) Além disso, as águas da crise da Pandemia movem o moinho da oposição do “quanto-pior-melhor”: a esperança de que a paralisia gestora do Governo e o aprofundamento da crise econômico façam Bolsonaro politicamente sangrar ainda mais;

(e) Porém, para a extrema-direita pouco importa as ruas ficarem desertas e as manifestações de rua proibidas: a força da sua guerra simbólica está nas mídias digitais, respirando a atmosfera das informações contraditórias, medo, pânico e ódio.

Por isso, o circuit braker da Pandemia COVID-19 cada vez mais se assemelha a uma psy op cujo resultado é o domínio total de espectro: colocar todo o espectro político em estado de suspensão, no qual cada lado tenta puxar a brasa da crise para a sua sardinha… Enquanto tudo permanece como está.

REFERÊNCIAS

– New York Times;

– Global Research – Centre of Research on Globalization;

– Isto É;

– Aangirfan;

– Dragos Roua. 

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“Coringa”: cultura cosplay e copycat gerou o Palhaço do Crime

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Concorre com 11 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Ator, Fotografia, Figurino, Direção, Edição, Cabelo e Maquiagem, Trilha Sonora Original, Edição de Som, Mixagem de Som e Roteiro Adaptado.

Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos.

Para muitos pesquisadores em Sincromisticismo, desde que o Coringa surgiu em 1940 nas HQs, o personagem transformou-se em uma forma-pensamento autônoma, um arquétipo que paira sobre o tempo. Mas como produto da indústria do entretenimento, ele também reflete o espírito de cada época, do Coringa bufão de Cesar Romero nos anos 1960 psicodélicos à inteligência sinistra do Coringa de Heath Ledger. Em “Coringa” (Joker, 2019) o Príncipe Palhaço do Crime ganha uma atualização, dessa vez um “spin off”: as origens do Coringa numa Gotham City vintage, mas que pode muito bem ser o espelho da nossa época. O Coringa de Joaquim Phoenix (numa interpretação assustadora onde, mais uma vez, um ator pagou o preço psíquico para encarnar o personagem) reflete a atual onda de ódio e ressentimento articulados pela Deep Web, fóruns e chans na Internet e pelo populismo de direita. Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual dominada por um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle.

O Palhaço do Crime; O Príncipe Palhaço do Crime; O Flagelo de Gotham; Arlequim do Ódio; O Bobo do Genocídio; O Ás de Valete. Ou simplesmente “Joker” ou Coringa, supervilão criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane e que apareceu pela primeira vez em Batman #1, de abril de 1940.

De acordo com o plano inicial, o Coringa deveria ter morrido na sua primeira aparição, mas foi providencialmente poupado por uma decisão editorial, permitindo que fosse progredindo até se tornar não apenas um palhaço psicopata. Coringa tornou-se o arquétipo do psicopata: no ranking das mais populares formas-pensamento do século XX, ele é praticamente um deus.

Fonte: página oficial do filme

Numa espécie de “top of mind” das marcas dos personagens das HQs feita durante a produção de Batman do diretor Tim Burton, a pesquisa apontou que a bat insígnia ocupava a segunda colocação, logo após a imagem do sorridente rosto do Coringa – hoje o Coringa ocupa o segundo lugar no Top 100 dos vilões das HQs.

Como poderoso arquétipo ou forma-pensamento com forte energia psíquica capaz de influenciar não só as mentes como as próprias ações, o personagem acumula um histórico de estranhos efeitos nos atores que o encarnam, assim como inúmeros relatos de efeitos copycats – ataques e atiradores figurando como cosplayers assassinos na vida real – veja os links ao final.

Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos.

Fonte: página oficial do filme

Coringa (Joker, 2019), do diretor Todd Phillips (Se Beber, Não Case e Escola de Idiotas), é uma incursão ao mesmo tempo vintage e realista, bem diferente das versões cinematográficas do Coringa: sem aspirações artísticas vanguardistas de Jack Nicholson, ou a inteligência cínica e sombria de Heath Ledger, ou ainda a comprometedora versão de Jared Leto, na qual o Coringa parecia mais um tipo de MC ostentação.

O logotipo retro da Warner Bros. que abre o filme indica que estamos em algum lugar entre as décadas de 1970 e 80. Os planos de câmera e a direção de arte que reconstroem a Gotham City emulam a estética do novo realismo Hollywood daqueles tempos em filmes como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982) – filmes protagonizados por anti-heróis perdedores em sociedades duras e violentas.

Coringa é um estudo triste, lento e caótico das origens do icônico vilão das HQs. Alguém que não é visível, anônimo numa cidade em crise econômica e imersa em sacos de lixo causada por uma greve dos serviços públicos.

Enquanto até aqui todas as histórias com o vilão o figuram como um personagem (caricato sempre em tons fortes sem muitas sutilezas), aqui Todd Phillips, ao lado do roteirista Scott Silver, estão mais interessados na composição mental, moral, emocional e física de um homem simples e esquecido e que se tornou o Coringa

Isso exigiu um tour de force do ator Joaquim Phoenix (e, como sempre, o arquétipo do Coringa cobrou-lhe o preço emocional e psíquico para encarná-lo, clique aqui): a atmosfera é sempre acinzentada e os planos de câmera sempre fechados no ator – tanto seu rosto como seu corpo são minuciosamente observados por nós, assim como sua lenta transformação no palhaço do crime.

O filme até aqui provocou críticas divididas em torno do debate de como Coringa representa temas sombrios atuais (principalmente a desigualdade e intolerância ao lado do crescimento do ressentimento e ódio), além de cadeias de cinema nos EUA proibirem a entrada de cosplayers do personagem – clique aqui.

Nesse ponto é que Coringa se torna ainda mais interessante: ficção e realidade se tocam quando o próprio Coringa figurado no filme é um produto da mídia que, afinal, não resiste a um personagem com uma boa storyline e punchline. Tirando do anonimato um perdedor que repentinamente vira um símbolo político de explosão da revolta e ressentimento, criando um gigantesco efeito copycat – aproximando-se da realidade.

Fonte: página oficial do filme

O Filme

Gotham City. Os moradores estão imersos em montes de sacos de lixo na frente de cada porta, sob um céu sempre de cor chumbo. Os tempos são difíceis: há desemprego, pobreza e falta de perspectiva. E um novo candidato a prefeito: o milionário Thomas Wayne (Brett Cullen), que apenas desperta o ressentimento outrora latente.

Alheio a tudo isso, encontramos Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), um cara aparentemente gentil que gosta de fazer as pessoas sorrirem. Ele é um palhaço profissional com uma relação problemática com seus colegas da agência de clowns e um aspirante a comediante de stand-up.

Ele é uma das vítimas de “tempos malucos”. Ele próprio é um ex-interno de um hospital psiquiátrico vivendo à margem da sociedade tentando ter um emprego regular – sobe escadarias sem fim, passa por corredores mofados em uma vida de cortiços sombrios, caixas de correios vazias e elevadores quebrados.

Ele é espancado, zombado e abusado. Não se envolve com o mundo. A vida cotidiana para ele é difícil, pois as regras e os códigos que estruturam a sociedade permanecem desconhecidas para Arthur. Sua condição é de alienação, em grande parte devido a uma condição mental que causa risadas incontroláveis (geralmente nas piores situações) enquanto os olhos estão cheios de dor e tristeza.

“Só não quero mais me sentir tão mal”, sussurra Arthur para a assistente social que o acompanha: ele quer mais remédios, além dos sete prescritos. Logo mais não terá nenhum, com a política de austeridade da prefeitura que está cortando todos os serviços sociais.

É um sistema que agora não tem mais tempo ou recursos para gente como ele. Isso será simplesmente o início da descida do caminho para encontrar o Coringa dentro de si mesmo.

Fonte: página oficial do filme

Mas tudo muda quando, com muita relutância, aceita um revólver de um companheiro de trabalho para se proteger dos assédios de um palhaço que trabalha nas ruas. Em um metrô barulhento, sujo e pichado de grafites pela primeira vez Arthur revida e atira em três jovens yuppies grosseiros de Wall Street – depois do assédio malsucedido em uma mulher, resolvem descontar sua raiva no pobre palhaço.

Após essa primeira explosão de violência brutal, Arthur adquire autoconfiança. Seus movimentos se tornam elegantes, seu corpo magro e arqueado agora é ágil, gracioso. As mortes no metrô ganham as manchetes na TV, desencadeando um gigantesco efeito copycat: centenas de pessoas saem às ruas com máscaras de palhaço para se levantar contra os ricos.

Não era o tipo de reação que Arthur queria… mas é uma reação e ele aceita. Afinal, faz ele saber que existe e que suas ações significam algo para alguém. Cria-se então um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle – manifestantes nas ruas usam a máscara do palhaço, incitando Arthur a dar continuidade a sua nova persona. Aos poucos, Arthur descobre que o seu talento não é o humor, mas a expressão da raiva multiplicada.

No final, humor e explosão da raiva e violência são a mesma coisa: é tudo uma questão de timing.

Fonte: página oficial do filme

O Coringa do nosso tempo

Arthur sonha em sair do anonimato de humilhações da vida de um zé-ninguém, até descobrir que o talk show de Murray Flanklin (Robert de Niro, numa perfeita alusão aos filmes Rei da Comédia e Taxi Driver) apenas o convidou para mais uma vez ser humilhado – um vídeo de um show de stand up bizarramente sem graça de Arthur foi o motivo da produção convida-lo.

O Coringa desse filme definitivamente tem algo a dizer sobre o nosso tempo. O Coringa de Christopher Nolan em O Cavaleiro das Trevas era uma agente do caos que queria provar que no final as pessoas são terríveis e cruéis e escondem tudo isso com hipocrisia. Mas Nolan mostrou que Gotham se recusava à explosão de uns contra os outros.

Mas em Coringa temos o contrário: Arthur é perturbado e violento e todo mundo ao redor dele é cínico e paranoico. Os ricos e as estrelas da mídia são terríveis e as pessoas comuns ainda piores – uma multidão de saqueadores, assassinos que está apenas em busca de um pretexto para entrar na selvageria.

Fonte: página oficial do filme

Cada Coringa refletiu o espírito da sua época: o Coringa de Cesar Romero da década de 1960 era um bufão engraçado e sintonizado com a psicodelia da era hippie. O Coringa de Jack Nicholson aspirava ser um vanguardista que transformava o crime em arte – releitura de Tim Burton associada à estética dark de seus filmes. O coringa de Heath Ledger era cerebral e adulto. Ao contrário de Jared Leto, sintonizado com a cultura jovem contemporânea.

E o Coringa de Joaquim Phoenix reflete a atual onda de ódio e ressentimento bem sucedidamente articulados tanto pelo populismo de direita internacional quanto pela Deep Web, fóruns e chans na Internet: “Incels” (Celibatários Involuntários), “Hominis Sanctus”, PUA (Pick-up Artists), formas violentas de socialização masculina (macho alpha etc.) e uma variedade de pseudociências e conspirações LGBTs e feministas contra os homens.

O príncipe do Crime de Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual – uma máscara ou persona (assim como foi o efeito copycat da máscara do Anonymous nas manifestações de rua) que empodera o ressentimento de uma massa de excluídos da globalização. Só que levados a autodestruição e anomia, bem ao gosto da atual extrema-direita, a “alt-right”.

Se Nolan ainda buscava um fio de resistência humanista em Gothan City contra a pegadinha macabra do Coringa, aqui a dupla Todd Phillips e Scott Silver joga literalmente o Coringa nos braços das massas que reconhecem nele sua própria crueldade e selvageria.

O resultado do filme Coringa é a resposta do porquê o sombrio supervilão bufão é tão fascinante e sedutor quanto Batman: ambos são movidos pelo ódio e ressentimento, porém com os sinais trocados.

FICHA TÉCNICA:

CORINGA

Título original: Joker
Direção: Todd Phillips
Elenco: Joaquim Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy;
Ano: 2019
País: EUA, Canadá
Gênero: Drama/Suspense

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Todos os afetos de um país cronicamente inviável no documentário “Democracia em Vertigem”

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhor Documentário

Com estreia mundial no Festival de Cinema de Sundance desse ano e aclamado pelo New York Times como um dos melhores filmes do ano, esse não é um documentário comum.

Indicado ao Oscar de Melhor Documentário, “Democracia em Vertigem” (2019, disponível na Netflix), dirigido por Petra Costa, não é uma produção comum do gênero. A cronologia dos fatos que levaram o País da ditadura militar aos governos de centro-esquerda de Lula e Dilma é apenas o cenário para outro tema mais profundo: por que a elite de repente se cansou da Democracia e do Estado de Direito e virou o tabuleiro, envenenando corações e mentes com ódio e polarização? A câmera de Petra Costa e sua melancólica narração buscam nas imagens oficiais e de bastidores aquilo que Roland Barthes chamava de “punctum”: detalhes que nos afetam, cortam e ferem.

Pequenos detalhes em imagens (gestos, falas, atitudes, olhares etc.) que, em vários momentos do documentário, parecem expressar secretamente o que estava reservado para o futuro do País. “Democracia em Vertigem” lida principalmente com afetos em um país cronicamente inviável – sob a superfície mutante da política estão personagens que sempre estiveram lá, desde que um golpe militar instituiu a República: a elite financeira, midiática e empresarial. A democracia brasileira foi fundada no esquecimento.

Fonte: https://bit.ly/2NUQPki

O semiólogo Roland Barthes dizia que “o discurso está exausto de tanto produzir sentido”. Por isso, Barthes queria viver o saber com um outro jeito, que ele denominava como “saber com sabor”. Mesmo que esse sabor seja amargo, como no documentário Democracia em Vertigem (2019), dirigido por Petra Costa, sobre como chegamos a atual crise política brasileira, narrando a ascensão e queda dos governos trabalhistas a partir da eleição de Lula em 2003. Com estreia mundial no Festival de Cinema de Sundance desse ano e aclamado pelo New York Times como um dos melhores filmes do ano, esse não é um documentário comum. Seguramente, o documentário de Petra Costa está ao nível do histórico Corações e Mentes (Oscar de melhor documentário de 1975), lançado no momento em que os EUA se ressentiam da ferida aberta da Guerra do Vietnã.

Democracia em Vertigem também é lançado no momento em que a dolorosa ferida da crise brasileira está aberta e exposta para todo o planeta. Porém, vai para além de um documentário político tradicional que busca repostas racionais para explicar processos. O documentário não se limita a fazer uma cronologia dos fatos do breve período de ascensão e queda da democracia brasileira pós-ditadura militar.  Estes parecem ser apenas um pano de fundo para outra coisa que Petra Costa busca. Ela quer expressar o sabor amargo, resultante do impacto do fim da breve experiência democrática brasileira, na sua própria vida familiar. E transformar essa experiência numa pequena amostragem da tragédia nacional.

A diretora não pretende ser uma mera editora de imagens e entrevistas com os personagens de uma tragédia política – Petra que imergir no próprio objeto que pretende filmar. Ser uma observadora participante que, assim como nós, sentiu nas próprias relações familiares e de amizades a polarização psíquica e ideológica que transformou a democracia brasileira num pequeno lapso em um país cronicamente inviável.

Fonte: https://bit.ly/36lwXgr

O “punctum” nas imagens históricas

Não sei se a cineasta já leu o livro de Roland Barthes, “A Câmera Clara”, mas o seu documentário parece seguir o método do olhar crítico e semiológico do francês: Democracia em Vertigem evita ser apenas um documentário com imagens montadas para serem preenchidas com moralismo, sentimentalismo ou ideologia – isso seria nada mais do que aquilo que Barthes chamava de studium: imagens para serem sobrecodificadas e que apenas anestesiam o observador.

Pelo contrário, Petra Costa quer atingir o punctum das imagens dos eventos que reporta:  aquilo que é pungente, que corta, fere, sensibiliza, alfineta. Em síntese, aquilo que é pungente. Mostrar todos os afetos da tragédia brasileira – no duplo sentido de “afeto”: tanto como “sentimento” como aquilo que nos afeta, atinge, a afecção. Para tanto, a cineasta não podia ser apenas uma observadora imparcial que tudo apenas relata, monta e edita. Petra tinha que também cair de cabeça no drama político. Principalmente porque ela e sua família são ao mesmo tempo sujeitos e objetos do que ela pretendia narrar: os pais, militantes de esquerda em um família conservadora de Minas Gerais – filha de Marília de Andrade, herdeira da Construtora Andrade Gutierrez, cujos financiamentos de campanhas políticas foi o pretexto para a derrubada do PT, que conduziria ao impeachment de 2016 que abriria caminho para a chegada da extrema-direita ao Poder.

O Documentário

Democracia em Vertigem abre e encerra a narrativa com o evento emblemático que selou o destino da democracia brasileira:  cercado pela militância e populares no Sindicatos dos Metalúrgicos em São Bernardo/SP que não aceitavam a rendição de Lula e estavam dispostos a resistir até o fim, o líder petista se entregou à imolação pública ao vivo, em rede nacional, para ser levado ao cárcere da Polícia Federal em Curitiba. A questão é: por que tudo acabou ali, daquela maneira, como a fatalidade de algum tipo de destino manifesto brasileiro? Como dois presidentes, Lula que encerrou o mandato com 87% de aprovação e Dilma, que em poucos dias caiu de 57% para 30%, acabaram se tornando alvo de tanto ódio coletivo, fraturando politicamente o País?

Fonte: https://bit.ly/38DWJ1b

Petra Costa começa fazendo uma cronologia de eventos, desde as mortes e torturas na ditadura militar, passando pelas grandes greves do ABC e o surgimento da liderança de Lula até chegar às Diretas Já e a redemocratização. Porém, a cineasta dispara: “a democracia brasileira foi fundada no esquecimento”. No esquecimento de quê? De duas feridas que jamais foram cicatrizadas pela história política brasileira: a escravidão e os crimes praticados pelos militares – até aqui nunca foram punidos. Num país cuja República foi criada a partir de um golpe militar em 1889, jamais a nação teve forças para fazer um acerto de contas consigo mesma.

Por isso, a narrativa em voz over de Petra Costa tem um tom propositalmente triste, melancólico. E não poupa a si mesma: em vários momentos ela destaca que sua família também faz parte desta mesma elite que perpetua a tragédia. A história brasileira cruza com a história de sua própria família. Constantemente os relatos históricos se interpenetram com os depoimentos da sua mãe, vídeos e fotos de família. Por exemplo, de como sua família conservadora se preparava para se mudar para os EUA assustada com as reformas de base propostas por João Goulart. Até sofrer o golpe militar em 1964, fazendo a família permanecer no país e lucrar muito, seja com as obras faraônicas daquele período, seja com a construção das arenas da Copa 2014.

Detalhes que anteviam o futuro

Obras públicas e corrupção sempre foram sinônimas em toda a história brasileira, destaca o documentário. Por isso, a fatalidade nacional manifesta tem que ser buscada no críptico diálogo que o documentário narra: certa vez no Palácio dos Bandeirantes um político vê surpreso um empresário. “Você, por aqui?”, disparou. “Eu sempre estive aqui, vocês políticos é que sempre se mudam”, respondeu o empresário. Os Banqueiros (os credores do Estado), as famílias proprietárias da grande mídia (os defensores do Estado) e as construtoras (responsáveis pelo aço e cimento da infraestrutura do Estado) são aqueles que sempre estiveram ali, bancando a democracia e a república. Mas, como destaca Petra Costa, “às vezes eles se cansam da democracia”. E o tabuleiro tem que ser virado para recolocar as peças nos lugares – os políticos.

Fonte: https://bit.ly/2NUZhjn

As imagens dos bastidores que levaram à derrocada de Dilma e a prisão de Lula são riquíssimas de simbolismos e interpretações: vemos José Eduardo Cardoso, o advogado de Dilma no processo de impeachment, como alguém que parecia apenas querer salvar a própria biografia – tanto a sua defesa no Congresso quanto sua rápida entrevista ao lado de Dilma não passam paixão, envolvimento ou mesmo indignação. Sempre parece distante, apático. Enquanto Dilma tenta manter o olhar altivo diante de verdadeiras hienas sedentas por carniça, no que se transformou o Congresso – a certa altura, vemos em contra luz deputados indo embora após a vitória, no estacionamento do Congresso, gritando, correndo e pulando, como crianças depois de zoar com a campainha do vizinho.

Acompanhamos funcionários do Palácio da Alvorada, nordestinos e negros, limpando o Palácio após o impeachment, com depoimentos em que descrevem o desencanto com a democracia. O mesmo Palácio no qual Temer não conseguiria passar uma semana: sem conseguir dormir, desistiu de morar ali durante o seu curto mandato – os fantasmas da consciência o atormentavam…

A câmera de Petra Costa se detém em duas placas no Palácio da Alvorada, comemorativas das duas grandes restaurações: uma no governo Collor e outra no governo Lula. Em uma diferença de quase duas décadas, estão ali a Andrade Gutierrez e outras mesmas empresas. Sempre estiveram e estão lá no Poder. Embora, para poderem virar o tabuleiro para reorganizar as peças e afastar a esquerda do Poder, tivessem que sacrificar alguns deles na Operação Lava Jato. A voz melancólica de Petra Costa e o paralelo que traça do seu crescimento da infância a vida adulta com a própria trajetória do fracasso da redemocratização são pungentes.

Fonte: https://bit.ly/30MvaA5

Corações e mentes

Mas a principal revelação do documentário (cujo tema está estampado no próprio pôster da produção), foi como a incipiente democracia brasileira foi arruinada pela guerra híbrida dos EUA (cujas origens estão na descoberta da camada do pré-sal, “ao mesmo tempo benção e maldição para o País”), utilizando-se da operação psicológica da polarização de corações e mentes. E como essa polarização impactou a própria família da cineasta – a divisão entre os pais esquerdistas e o restante da família eleitora em Bolsonaro. E a mea-culpa de Lula e do ex-secretário da presidência, Gilberto Carvalho, de não terem feito a Lei dos Meios, a Reforma Política e trocado a militância pela política institucional de coalizão. Quando descobriram isso, já era muito tarde.

Mas essas avaliações sobre os erros políticos do PT é o que menos importam para Petra Costa. São apenas abordados de passagem em poucas cenas. Seu foco está no punctum das imagens históricas, tanto de bastidores como as dos telejornais: como a câmera detalha flagrantes e a voz de Petra salienta detalhes que parece nos alfinetar, afetar de maneira profunda. Como a sequência da primeira posse de Dilma em 2011, de mãos dadas com Lula descendo a rampa do Palácio do Planalto, ladeado por um Temer tenso, mãos crispadas apertando uma na outra. Para depois dar uma volta por trás, para tentar também sair nas fotos que buscavam apenas Lula e Dilma.

Em vários momentos no documentário percebemos que todo o futuro parecia já estar antevisto em detalhes como esses. Essa é a grande virtude de Democracia em Vertigem: os fatos históricos funcionam no documentário apenas como cenários para uma outra questão – como a elite brasileira de repente cansou-se da Democracia e do Estado de Direito e conseguiu virar o tabuleiro envenenando psiquicamente uma nação com o ódio e a divisão de familiares e amigos.

Fonte: https://bit.ly/2RHDtsN

Para terminar com a caixa de Pandora aberta (a eleição de Bolsonaro) e uma pergunta: de onde encontrar forças para começar de novo?

FICHA TÉCNICA:

DEMOCRACIA EM VERTIGEM

Diretor: Petra Costa
Roteiro: Petra Costa e Daniela Capelato
Elenco: Entrevistas com Dilma, Lula, Gilberto Carvalho, José Eduardo Cardoso, Li An (mãe da diretora);
Gênero: Documentário
País: Brasil
Ano: 2019

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“The Man in The High Castle”: a banalidade do Mal e os mundos quânticos

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A série dá uma particular atenção de como a propaganda ideológica sedutora nazista (a propaganda política japonesa é figurada como ainda muito rudimentar, baseada apenas no terror imperial) tornou amoral ou natural toda a barbárie do Terceiro Reich

Mundos paralelos quânticos nos quais encontramos as melhores versões de nós mesmos e a permanência da estrutura que reproduz a banalidade do Mal, não importa o mundo ou o governo que ocupe o Estado. Com esses temas a série da Amazon “The Man in The High Castle” amarra a narrativas das três temporadas anteriores e encerra com o episódio final “Fire from the Gods”. Baseada no livro homônimo no escritor gnóstico sci-fi Philip K. Dick, a série figura um mundo alternativo no qual o Terceiro Reich e o Império Japonês ganharam a Segunda Guerra Mundial e mudaram a face da História. Mas há um fantasma que assusta os vencedores e inspira a Resistência: a descoberta da existência de mundos quânticos paralelos onde a História foi diferente e encontramos nossas próprias versões alternativas que tomaram decisões diferentes. Mas há algo que permanece: nossas almas permanecem prisioneiras na banalidade do Mal.

Neste mês chegou na plataforma de streaming da Amazon a temporada final da série The Man in The High Castle (2015-19), baseada no livro homônimo do gnóstico escritor de ficção científica Philip K. Dick. As temporadas anteriores já foram discutidas aqui no Cinegnoseclique aqui.

Foram 40 horas de duração em episódios distribuídos em quatro temporadas nos quais a equipe de roteiristas liderada pelo criador da série Frank Spotnitz teve que estender a estória para além das 240 páginas originais de K. Dick. Claro que expandir dessa maneira o romance mais bem estruturado da carreira do escritor norte-americano, pode resultar em muitos problemas narrativos: a última temporada corre muito rápida na qual parecia não haver tempo suficiente para amarrar as pontas soltas de forma satisfatória e dar conta do arco de personagens das três temporadas.

Mas não satisfeito, Spotnitz ainda acrescente novos personagens na temporada final: o grupo Rebelião Comunista Negra, uma espécie de Panteras Negras com a liderança carismática da ativista Bell Mallory (Frances Turner). Suas táticas de guerrilha armada, atentados e sabotagens sistemáticas farão o Império Japonês desistir e se retirar dos “Estados do Pacífico” (a Costa Oeste dos EUA), acelerando os eventos que culminarão numa crise política interna do Terceiro Reich.

Mas o saldo final foi positivo: uma estimulante combinação entre ficção científica, espionagem, política e thriller. Por isso, além do imenso arco de plots e personagens, a série levanta para abre um leque de temas que vai da hipótese quântica dos Mundos Paralelos (a chamada “Interpretação de Muitos Mundos – em inglês MWI, feita em 1957 por Hugh Everett – clique aqui) passando pela questão filosófica e moral da banalidade do Mal até a questões de Ciência Política – “uma coisa é derrubar um governo, outra coisa é ser governo”.

Para discutirmos esses temas é necessário fazermos um pequeno resumo das temporadas anteriores: Essencialmente a história se passa em um mundo alternativo onde as potências do Eixo venceram a Segunda Guerra Mundial e dividiram os Estados Unidos em dois: o Grande Reich do Leste nazista e o Estado Pacífico japonês no Oeste

Há uma zona neutra entre os dois ao longo das montanhas rochosas e fornece um refúgio para um crescente movimento de resistência. Portanto, enquanto as ações de controle e repressão do império e da resistência da rebelião se revezam entre as cidades de Nova York, Denver e São Francisco, abrangendo homens e mulheres de ambos os lados do conflito de uma maneira bastante realista, o elemento de ficção científica da história entra em cena – surge uma série cópias de filmes de alguém chamado “O Homem do Castelo Alto”.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

São filmes mostrando que realidades alternativas ou mundos paralelos foram descobertos. Nesses mundos as forças do Eixo foram derrotadas e EUA e URSS foram os vencedores, iniciando a Guerra Fria e a corrida armamentista nuclear tal como conhecemos em nosso mundo. Mas esses filmes mostram a possibilidade de vitória sobre os imperiais nazistas e japoneses, encorajando a rebelião. Mas também sugerem a possibilidade para viajar fisicamente entre mundos.

E é aí que entra a protagonista Juliana Crain (Alexa Davalos). Ela é uma espécie de mulher fora do tempo e do lugar, o ponto crucial da rebelião (e da própria narrativa) e a chave para a guerra entre os mundos. Ela leva três temporadas para dominar a capacidade de viajar entre mundos.

A última temporada

A quarta temporada começa exatamente onde a terceira temporada parou, com Juliana Crain (Alexa Davalos) sendo baleada pelo obergruppenführer John Smith (Rufus Sewell) no momento em que ela foge para o mundo alternativo em que os Aliados venceram a guerra.

Enquanto Juliana passa um ano no mundo alternativo, as mudanças de poder entre o Reich e os Estados japoneses do Pacífico deixam uma abertura para Smith consolidar seu poder. Essas mudanças são em parte graças à atividade eficiente e crescente da Rebelião Comunista Negra, uma facção recém-introduzida dos combatentes da resistência. O Homem no Castelo Alto, Hawthorne Abendsen (Stephen Root), ainda está sob custódia nazista, sendo forçado a negar o trabalho de sua vida na forma de protagonista de uma campanha de propaganda para desmoralizar a Resistência.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

 A última temporada se divide entre dar mais alguns detalhes (muito rápidos e que depende da concentração do espectador) sobre os pontos de contato entre os mundos paralelos: enquanto alguns personagens como Juliana e Togomi (o ministro do comércio do império japonês) possuem a habilidade de se deslocar pelos mundos através de estados alterados de consciência, os nazista precisam de uma pesada parafernália tecnológica – uma espécie de túnel subterrâneo baseado em mecânica quântica.

A ambição nazi será agora conquistar todos os mundos paralelos – espiões são enviados para trazer novas tecnologias e sabotar as potências que venceram os alt-nazistas. É o projeto “Die Nebenwelt”.

Fica evidente o porquê centenas de cobais foram sacrificadas no experimento: nem todos conseguem passar para os outros mundos – a não ser que a sua versão alternativa não exista ou tenha morrido. É o paradoxo do Doppelganger: duas versões alternativas não podem ocupar a mesma dimensão.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

Metafísica, a banalidade do Mal e Política – alerta de Spoilers à frente

Mas há um interessante tema que a temporada acrescenta: aprendemos que as duas versões de John Smith (a nazi e a de um humilde vendedor) têm certas tendências em comum – no caso de Smith a atração pelo Poder. Sua versão alt resistiu a esse appeal, abandonando o Exército. Enquanto John Smith virou “a pior alternativa de si mesmo”, como confessa amargamente no monólogo final do último episódio.

The Man in The High Castle tangencia um tema metafísico abordado originalmente no seminal filme gnóstico Cidade das Sombras (Dark City, 1998) – aliens aprisionam humanos em uma cidade artificial na qual, diariamente, as identidades de todos os habitantes são trocadas enquanto dormem: os aliens querem descobrir no experimento nossas “almas”, isto é, a essência humana permanente por trás das múltiplas identidades que assumimos nas várias existências.

Mais perturbadora, outra questão levantada é a banalidade do Mal, expressão criada por Hannah Arendt (1906-1975), teórica política alemã. Acompanhamos nas quatro temporadas os dois algozes de cada lado dessa Guerra Fria alternativa: do lado japonês, o inspetor Kido, da polícia dos Estados japoneses – a Kempeitai; e do outro o obergruppenführer John Smith. Ambos são pais de família, sinceramente preocupados com suas esposas e filhos.

Fonte: encurtador.com.br/dfNOR

Principalmente na Nova York nazista, vemos o cotidiano da família de Smith: refeições, levar os filhos para a escola… e gerir projetos de Eugenia com o propósito de exterminar raças “inferiores”. São vilões que “administram” o Mal como mais uma atividade cotidiana, ao lado da agenda dos compromissos familiares.

Acompanhamos os führers alemão Himmler e o americano Smith em jantares com suas esposas, discutindo aspectos banais da vida conjugal, ao mesmo tempo em que decidem estratégias de conquista e extermínio. Uma assustadora combinação de amor, delicadeza e barbárie.

A série dá uma particular atenção de como a propaganda ideológica sedutora nazista (a propaganda política japonesa é figurada como ainda muito rudimentar, baseada apenas no terror imperial) tornou amoral ou natural toda a barbárie do Terceiro Reich.

Porém, a novidade da temporada final e que alterou a correlação de forças entre o Eixo e a Resistência é a entrada em cena da Rebelião Comunista Negra, que vive um dilema existencial: combater o império japonês, porém sem querer retornar à pátria da bandeira estrelada norte-americana – uma sociedade que era racista e intolerante, tal como os atuais algozes.

Após a vitória, fazendo recuar o império japonês e bater em retirada do Oeste americano, a máfia Yakuza aparece para colocar na realidade os idealistas líderes negros: “Uma coisa é derrubar o governo, outra coisa é ser o governo”, vaticina o líder da máfia japonesa Yakuza, em San Francisco, Taishi Okamura.

“Vocês vão precisar de nós para restaurar a eletricidade, a água e o oleoduto…”, alerta Taishi. Grande verdade histórica: toda revolução é uma revolução traída! Ocupar o Governo é uma coisa: é a fachada pública ou midiática do Poder. Outra coisa é conquistar a máquina do Estado, controlada pelo lobby de verdadeiras máfias de setores financeiros e infraestrutura.

Algo como tematizado pelo documentário brasileiro Democracia em Vertigem (2019) – não importa qual governo ocupe o poder: o Estado sempre será bancado pelos bancos, famílias proprietárias da mídia e as construtoras de infraestrutura (clique aqui).

E no Estado do Pacífico japonês, a máfia Yakuza, preparada para “negociar” com os novos ocupantes do Estado – a liderança comunista negra.

No final, a série The Man in The High Castle termina fiel ao espírito da obra de Philip K. Dick – podemos até encontrar versões melhores de nós mesmos em outros mundos quânticos, mas a estrutura que reproduz a banalidade do Mal continua incólume: de um lado, a Guerra Fria entre EUA e URSS; e do outro a Guerra Fria entre o Grande Reich e o Império do Japão.

Título: The Man in The High Castle (série)

Criador: Frank Spotnitz

Roteiro: Frank Spotnitz, Wesley Strick, Jihan Crowther

Elenco: Alexa Davalos, Joel de la Fuente, Jason O’Mara, Rufus Sewell

Produção: Amazon Studios

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2019

País: EUA

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“The Room” – A tecnologia toma o lugar do sobrenatural no gótico norte-americano

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O elemento central de The Room é que o horror provém não do sobrenatural, mas de uma máquina cuja tecnologia é desconhecida – lembra até a máquina do físico Nikola Tesla no filme de Christopher Nolan O Grande Truque

O gênero Gótico tem suas origens no Velho Mundo europeu com seus castelos e masmorras de sociedades que desapareceram. Já o gótico norte-americano é um interessante subgênero originado numa sociedade puritana que produziu ficções em torno de culpa, pecado original, abominações humanas decorrentes da miscigenação racial, incesto etc. E ainda mais interessante quando um filme desse subgênero é escrito e dirigido por um olhar europeu. Esse é o filme franco-belga “The Room” (2019): cansado de viver em Nova York, um jovem casal muda-se para um casarão vitoriano no interior de New Hampshire. Lá encontrarão não o sobrenatural, mas o horror produzido por uma misteriosa tecnologia por trás das paredes daquele casarão, capaz de materializar qualquer desejo que for dito. Mas, como em todo conto fantástico há um alerta: “A única coisa mais perigosa do que alguém que não consegue o que quer, é uma pessoa que possa ter tudo o que quiser”. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.

O gótico é um gênero europeu, intimamente relacionado com o movimento do Romantismo nos séculos XVIII-XIX: castelos, masmorras, grandes corredores labirínticos através dos quais transitam pessoas ou personagens sobrenaturais e acontecimentos que transitam entre o fantástico e o estranho, apagando as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Essencialmente, é um gênero que explora o medo do desconhecido.

Portanto, é no mínimo curioso ver uma co-produção franco-belga, The Room (2019), dirigido e escrito pelo francês Christian Volcker fazer uma incursão pela ficção gótica norte-americana sobre um casal que se muda de Nova York para um velho casarão vitoriano no interior do Estado de New Hampshire.

A ficção gótica norte-americana é um subgênero do Gótico. Suas raízes estão em nomes de escritores como Edgar Allan Poe, Washington Irving e Herman Melville, até chegarmos ao século XX com H.P. Lovercraft e Stephen King.

O subgênero norte-americano se distingue do Gótico do Velho Mundo principalmente por ter surgido em uma sociedade puritana – culpa, pecado original, abominações humanas decorrentes da miscigenação racial, incesto, abjeção doméstica. O Fantástico e o medo do desconhecido se confundem com dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado (sadomasoquista), a percepção corpo fragmentado do corpo pela infante pré-formação do ego (daí o porquê do fascínio pelos corpos despedaçados, vísceras e sangue no cinema de terror) etc.

O Mal e o Estranho se confundem com os nossos próprios impulsos aos quais deveremos renunciar na resolução do Édipo e na entrada ao mundo da Cultura. Os filmes de terror dramatizariam a nossa própria luta interna em ter que renunciar a Natureza (prazer, impulso, gratificação imediata) em nome da Cultura (renúncia e sublimação). Mas o diretor Christian Volckman é um europeu com o olhar do Velho Mundo para um filme gótico ambientado na América. Para um europeu, o que funda a América como um país continental distinto da cultura europeia? Essencialmente, a inovação tecnológica.

Numa sociedade puritana como a norte-americana, a tecnologia é a quintessência da pureza porque produto do engenho humano: é moralmente boa. O horror só pode vir da corrupção de algo essencialmente tão bom.

Fonte: encurtador.com.br/juz38

The Room reúne todos esses elementos do gótico norte-americano com o Estranho e o Fantástico que irrompem de um pecado original: a utilização abusiva de uma estranha invenção que nos confronta com outro pecado original – o Édipo e o incesto.

O Filme

Nas primeiras sequências vemos os protagonistas Kate (Olga Kurylenko, Quantum of Solace) e Matt (Kevin Janssens, Revenge) contemplando sua nova propriedade, um velho casarão no campo. O casal acaba de se mudar de Nova York, desejando escapar da agitação da metrópole.

Kate está cansada de trabalhar como tradutora em um grande escritório de advocacia e concorda em se tornar uma dona-de-casa comum. E Matt quer se tornar um grande pintor, e busca no campo a paz necessária para criar obras de arte genuínas.

O casal pretende restaurar o casarão e começa a desmontar e jogar fora os velhos móveis. Até Matt se deparar com uma rachadura no papel de parede, atrás da qual encontra-se uma câmara escondida.

Ele acaba descobrindo que no interior daquelas quatro paredes envoltas pelas sombras há uma força misteriosa e surpreendente capaz de materializar, diante de seus olhos, qualquer coisa que ele peça.

Fonte: encurtador.com.br/crsyT

Momentaneamente, o típico sonho americano de tornar a nova propriedade aconchegante para a formação de uma nova família é deixado de lado. Matt fica curioso com o funcionamento daquele misterioso quarto. Junto com um eletricista descobre no porão um estranho gerador elétrico do qual parte uma complexa fiação que parece passar pelas paredes de todos os cômodos do casarão.

Para aumentar ainda mais o mistério, Matt e Kate descobrem um fato sobre o qual o corretor do imóvel ficou calado: há várias décadas um brutal assassinato de um casal ocorreu naquela casa. E o assassino está preso em um hospital psiquiátrico onde ninguém o visita, exceto repórteres que ocasionalmente pretendem investigar os mistérios daquela história.

Mas toda a racionalidade é suspensa diante da tentação de realizar qualquer desejo. Por alguns dias, o casal se entrega a mais louca alegria, desfrutando de todo bem material materializado – comidas exóticas e caras, bebidas, montanhas de dinheiro, joias, obras de arte originais dos grandes gênios da pintura.

Porém, depois de toda orgia, Kate cai em si e pede a única coisa que realmente anseia: com dificuldades para engravidar, pede um filho. E como num passe de mágica, um bebê se materializa diante dela. Ela vai chama-lo de Shane.

Se há uma coisa que os contos de fada nos ensinam é que para tudo que é realizado magicamente, há um preço caro para pagar. Sempre há um lado sombrio da moeda – muitas vezes o que é obtido está longe de ser alcançado.

Todos os produtos têm uma natureza “efêmera”, isto é, eles só podem existir dentro daquele casarão. Ultrapassado os limites das portas e janelas, o objeto rapidamente envelhece até se reduzir a cinzas.

Fonte: encurtador.com.br/fhiy0

Em resumo, temos todos elementos de um conto gótico norte-americano:  um casarão sinistro que abriga uma tecnologia que contraria as leis da Física, a utilização abusiva dessa estranha máquina para a realização dos desejos do casal e a produção de um “recém-nascido”.

A morte dos proprietários anteriores em circunstâncias pouco claras, assassinados por um jovem cuja identidade está envolvida em mistério, nos prepara para a descoberta de uma verdade da pior maneira possível para Kate e Matt.

The Room é um filme freudiano – Alerta de Spoilers à frente

O elemento central de The Room é que o horror provém não do sobrenatural, mas de uma máquina cuja tecnologia é desconhecida – lembra até a máquina do físico Nikola Tesla no filme de Christopher Nolan O Grande Truque (The Prestige, 2006): uma espécie de teletransporte construído por encomenda para o número de um mágico, mas com alguns efeitos colaterais.

Certamente a máquina do casarão é de natureza quântica mas que, apesar de cientificamente revolucionária, materializa o demasiado humano dentro de nós: o drama edipiano que nos faz cruzar da Natureza para a Civilização.

Fonte: encurtador.com.br/fhiy0

A tensão do filme é o triângulo edipiano do filme formado por Shane, Kate e Matt – Shane (Joshua Wilson) cresce a testemunha aquilo que Freud chamava de “cena primitiva”: os pais no ato sexual. O drama edipiano criado a partir desse ponto criará a outra cena seminal da civilização: o parricídio, o crime primeiro da humanidade.

O mito diz que o patriarca possuía todas as mulheres e os filhos com raiva mataram o pai, surgindo assim o sentimento de culpa. Dessa forma, o incesto passou a ser considerado um tabu em todas as sociedades. O tabu que nos separou da Natureza e nos fez ingressar no reino do simbólico: a Cultura.

Só que enquanto em Freud esse drama é resolvido no campo do psiquismo e do simbólico, em The Room vira o horror real: Shane é uma abominação, um “produto”, como se refere Matt. Ele quer assassinar o “pai” para possuir sexualmente Kate, a “mãe”.

Porém, The Room segue à risca a tese de Freud construída em “Totem e Tabu”: a única forma de poder sair daquele casarão sem se desintegrar e virar cinzas é matando os pais, isto é, dissolvendo literalmente o drama edípico.

Como uma abominação humana (tema caro ao gótico norte-americano), produzida e não nascida, certamente enlouquecerá. Assim como o “produto” anterior que acabou sendo internado num manicômio após o parricídio.

A ironia (e toda narrativa do gênero gótico possui uma ironia fundamental) é como aqui a racionalidade e a ciência não apenas contrariam as leis da Física como transforma aquele casarão num caos, trazendo à tona a cena primeira criadora do primeiro tabu que nos tirou do mundo selvagem e nos colocou na civilização. Mas em The Room, as coisas não terminam tão satisfatórias como em Freud: não há a sublimação dos impulsos que construirá uma ordem civilizatória.

“A única coisa mais perigosa do que alguém que não consegue o que quer, é uma pessoa que possa ter tudo o que quiser”, vaticina Matt à certa altura do filme. O problema em The Room é que o casal e Shane revivem um drama edipiano essencialmente corrompido: tudo foi um constructo tecnológico criado para ser uma espécie de armadilha – quem não se seduziria por um mecanismo capaz de materializar qualquer desejo mais recôndito nosso?

Nesse horror gótico em que o sobrenatural é substituído pela tecnologia, é impossível não lembrar da “Dialética do Esclarecimento” de Adorno e Horkheimer – a longa viagem da civilização do Mito à Razão nos trouxe a Ciência e a Tecnologia que não conseguiu instaurar uma sociedade racional e esclarecida. Ao contrário,  trouxe de volta o Mito e a dominação potencializados por gadgets tecnológicos que realizam na literalidade o pior do psiquismo humano.

Ficha Técnica

Título: The Room

Criador: Christian Volckman

Elenco: Olga Kurylenko, Kevin Janssens, Joshua Wilson

Ano: 2019

País: França, Bélgica

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A adaptação esquizofrênica numa sociedade pós-moderna em “Greener Grass”

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Na sociologia clássica funcionalista “papéis sociais” são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação, scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma

Freud acreditava que a civilização cobrava um preço ao indivíduo: o mal-estar, a neurose. Ele e toda a sociologia clássica temiam a “anomia”, o momento em que o mal-estar explodiria contra a civilização. Mas a sátira do filme “Greener Grass” (2019), da dupla de humor de improvisação stand up, Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe, mostra que no mundo pós-moderno paradoxalmente o mal-estar e alienação se tornam ferramentas de adaptação. Em um típico condomínio suburbano de classe média (algo como o sonho americano dos anos 1950 que caiu no Instagram do século XXI) temos uma visão maluca e surreal do tédio da vida suburbana kitsch e brega, vivendo um estilo de vida esquizoide: sentimentos confusos que tentam conciliar interações sociais competitivas com uma polidez politicamente correta neurótica. O resultado é uma sociedade à beira da depressão e, por isso, mais adaptada pela incapacidade de ousar.

Na sociologia clássica funcionalista “papéis sociais” são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação, scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma, cotidianamente, não importando a subjetividade ou necessidades ou carências psíquicas individuais. Por isso, viveríamos no cotidiano verdadeiros “dramas de adaptação” – a tensão entre o script abstrato das colagens de expectativas que entendemos que os outros têm de nós, e a nossa “espontaneidade”: o conjunto de impulsos e demandas íntimas.

Por exemplo, para o sociólogo norte-americano Talcott Parsons (1902-1979), esse ajuste do indivíduo aos papéis é fonte potencial de disfuncionalidade, o choque entre o que queremos e aquilo que a sociedade espera de nós. É o que Parsons chamava de “dupla contingência”: o drama de adaptação do ego ao papel imposto pelo sistema social de expectativas. Mas estamos no século XXI, e esse viés funcionalista da sociedade tornou-se mais complexo com diferentes matizes. Isto é, esse script abstrato que nos informa o que a sociedade espera de nós parece que se tornou tudo, menos “funcional” – ele pode ter se tornado fonte de profunda disfuncionalidade psíquica: esquizofrenia, psicose, indiferença, amoralidade etc.

Por esse motivo, Greener Grass (2019) é uma sátira maravilhosamente estranha na qual através de uma perfeita farsa suburbana e perversa expõe essa disfuncionalidade – uma visão absurda e surreal do sonho americano, na sua versão século XXI.

Dirigida, escrita, produzida e estrelada pela dupla de cineastas independentes Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe, o filme é uma versão estendida do curta-metragem de 2015 do mesmo nome. Nesse longa elas conseguem expandir a visão maluca do tédio da classe média suburbana (aquela que vive em uma vida asséptica de condomínios fechados) e as dolorosas consequências em se adaptar ao status quo. É como se o velho mundo em tons pastéis do sonho americanos da década de 1950 de repente caísse no Instagram.

Como o título nos informa, o argumento parte daquele velho provérbio de que a grama do vizinho sempre parece mais verde. Toda as interações dos personagens de Greener Grass são competitivas, carregadas de inveja e ansiedade. Porém, o paradoxo é que há uma expectativa latente e generalizada de que todos sejam amigáveis, sorridentes, polidos e simpáticos uns com os outros. Resultando numa estranha polidez que chega às raias da neurose, porque tentam conciliar a agonia da superação com uma cortesia neurótica politicamente correta.

A sociedade de Greener Grass acrescenta um requinte perverso aos dramas de adaptação descritos pela sociologia clássica – há uma espécie de armadilha esquizoide na qual os personagens caem quando tentam conciliar o inconciliável: competição e empatia; ansiedade de superação entrando em choque com uma sociedade que prega a igualdade e atitudes eticamente corretas. Um mundo de fluência, lazer, onde todos se locomovem em carrinhos de golfe entre suas casas que mais parecem cenografias de Show de Truman, o campinho de futebol para torcer histericamente pelos filhos e o boliche do shopping.

O Filme

Greener Grass começa com uma estranha sequência: Lisa (Luebbe) e Jill (DeBoer) sentam-se com um grupo de pais em um dia ensolarado (como todos), assistindo seus filhos jogarem futebol. Ambas as mulheres estão imaculadamente vestidas e maquiadas, com aparelhos nos dentes – todos usam aparelhos nos dentes! Jill segura um bebê recém-nascido e Lisa elogia o bebê: “fofo!”, diz.

Jill imediatamente entrega o bebê para Lisa: “Fique com ele… já tenho um menino”. Ninguém parece achar estranho, nem mesmo o marido Jill (Beck Bennett). Afinal, Lisa queria o bebê e seria egoísta não dar para ela… para sempre. Mais tarde, uma vizinha (Mary Holland) expressa ressentimento (na verdade inveja) por Jill não ter dado o bebê para ela. Jill então passa a ter sentimentos confusos sobre o que fez… No entanto, “sentimentos confusos” não são permitidos no mundo de Greener Grass.

O filho remanescente de Jill (Julian Hilliard) é um menino observador e perceptivo, que ao invés de tocar ao piano numa audição escolar uma música patriota executa uma composição própria de vanguarda atonal – um total freak para os pais, um inadaptável que sofrerá uma transfiguração surreal para poder se adaptar às expectativas do papai: ser um jogador profissional de beisebol.

Há uma cena em Greener Grass que é a síntese do paradoxo esquizoide dessa sociedade: quatro famílias em carrinhos de golfe ficam parados em um cruzamento de quatro vias. Todos gesticulam uns para os outros: “Você pode ir!”, “Não, pode ser você, eu insisto!”… E todos ficam sentados no cruzamento para sempre, com sorrisos congelados em seus rostos, em um estranho impasse de cortesia neurótica.

Síndrome de adaptação

Por isso, em Greener Grass ninguém ousa, produzindo uma estranha síndrome de adaptação – diálogos e ações são atravessados pela competição, inveja e ansiedade por superação. Mas ao mesmo tempo todos devem estar sorridentes, positivos, prá cima, alto astral. Que deve ser representado por uma espécie de polidez que se torna neurótica e paralisante. Ser altruísta pode ser também uma competição, especialmente quando os personagens fazem de forma performativa, para chamar a atenção para merecer aprovação dos outros.

Portanto, nesse mundo nivelador de Greener Grass, destacar-se é aterrorizante. Hipocritamente escondem-se num altruísmo neurótico criando uma surpreendente forma de adaptação jamais imaginada pelo funcionalismo de Talcott Parsons: uma adaptação através da disfuncionalidade psíquica. Mas esse mal-estar cobra um preço: um psicopata assassino ronda a vizinhança – alguém que resolveu ao seu jeito essa contradição entre competição/polidez: decidiu matar seus concorrentes sem piedade. A figura do assassino serial que irrompe no meio de um mundo colorido e alegre apenas confirma a espécie de redoma de vidro   sufocante que asfixia todos – por contraste, o assassino apenas reforça o estilo de vida asséptico e hipócrita.

Mesmo quando Jill se deteriora física e psiquicamente, comprova que não há saídas daquele mundo que parece tudo é apenas intercambiável – casas, filhos casais etc. Lisa pega uma bola de futebol, coloca debaixo do vestido e diz que está grávida, para todos participarem do seu “chá de bebê”; casais sem querer trocam seus parceiros e sem perceberem beijam o parceiro do outro; as casas parecem casas de boneca com decoração intercambiável, como se todos estivessem brincando de casinha.

Em suma, a narrativa de Greener Grass é um ótimo estudo de caso de como o mal-estar produzido pela socialização e adaptação pós-moderna (baseada em sentimentos contraditórios que anulam uns aos outros) produz uma estranha disfuncionalidade, não mais explosiva ou anômica. Mas agora, uma disfuncionalidade que anestesia, bloqueia a ousadia sob sintomas de cortesia neurótica, sorrisos nervosos e comportamentos estereotipados.

FICHA TÉCNICA:

Direção: Jocelyn DeBoer, Dawn Luebbe
Elenco: Jocelyn DeBoer, Dawn Luebbe, Beck Benett, Neil Casey, Mary Holland;
Ano: 2019
País: EUA
Gênero: Comédia

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A Luta de classes no Capitalismo Cognitivo no filme “Parasita”

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Concorre com 6 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original, Melhor Filme Internacional, Melhor Montagem, Melhor Direção de Arte. 

O pano de fundo de Parasita é o empobrecimento e o acirramento da desigualdade na Coréia do Sul atual – após o desmoronamento de um contrato social confuciano de décadas. 

O diretor sul-coreano Joon-ho Bong é um especialista no tema luta de classes. Seus filmes como O “Expresso do Amanhã” e “Okja” são variações sobre um tema cada vez mais aprofundado pelo diretor. Até chegar a “Parasita” (Gisaengchung, 2019), Palma de Ouro em Cannes, sua reflexão mais profunda tomando como cenário o chamado “Capitalismo Cognitivo”: “não-pessoas” com seus celulares e cercados de tutoriais e aplicativos, prontos para subempregos terceirizados – forma avançada de capitalismo na qual os patrões tornam-se invisíveis e a luta de classes oculta em camadas de apps. Desempregados e “uberizados”, a família Kin-taek passa a se interessar pela família Park. Ricos, terceirizam na sua residência todos as necessidades cotidianas. É a chance dos Kin-taek arrumarem um emprego mais estável. Mas uma perturbadora revelação trará consequências catastróficas para todos os envolvidos.

Lá no distante ano de 1982, a filósofa Marilena Chauí dizia em uma matéria na revista Isto É: “não tenho empregada porque não quero levar a luta de classes para dentro de minha casa”. Eram épocas da ascensão do PT após as grandes greves dos metalúrgicos na região do ABC/SP e Lula firmava-se como líder político. O grande tema era a luta de classes decorrente do eixo Capital versus Trabalho e as formas capitalistas de expansão da exploração (a “mais-valia”) e suas expressões políticas, como a própria ditadura militar do período.

Porém, o capitalismo sofisticou-se política e tecnologicamente e o eixo Capital-Trabalho não ficou mais tão exposto. Por assim dizer, a luta de classes se “capilarizou” com o crescimento da “uberização” e os trabalhos mediados por plataformas tecnológicas atrás das quais os patrões tornam-se invisíveis.

Capilarizada, a luta de classes deixa de ser exclusiva do eixo clássico do Capitalismo para se espalhar pela sociedade através terceirização de qualquer atividade: o Capital criou uma elite da alta administração e finanças (CEOs, diretores, altos executivos etc.) com polpudas remunerações e bônus. Da criação dos próprios filhos à prosaica compra num supermercado, tudo se torna objeto de terceirização para essa nova elite: alguém será pago para fazer serviços que, outrora, a própria família dava conta. Daí, o temor da filósofa da USP: trazer a luta de classes para um novo eixo – a própria vida doméstica. Principalmente na atualidade, na qual a uberização e terceirizações generalizadas alargam ainda mais o fosso da desigualdade social.

Esse é o tema do filme sul-coreano Parasita (Gisaengchung, 2019) do diretor Joon-ho Bong. Um especialista em filmes sobre conflitos de classes, incluindo Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013) e Okja (2017). Mas Parasita é o filme mais ousado em sua análise sobre as desigualdades estruturais do capitalismo moderno (Capitalismo Cognitivo) – de como alta tecnologia, a flexibilização das relações trabalhistas e a radicalização da meritocracia empurram o ressentimento social a situações tragicômicas.

O pano de fundo de Parasita é o empobrecimento e o acirramento da desigualdade na Coréia do Sul atual – após o desmoronamento de um contrato social confuciano de décadas (empregos vitalícios e um equilibrado sistema de aposentadorias) provocados pela imposição do pensamento único de um neoliberalismo triunfante, hoje o país convive com 30% das famílias abaixo dos níveis de pobreza.

Tragédias sociais como a transformação de homens e mulheres em “não-pessoas”, cidadão abandonados por falta de lugar na vida social, e a condição extrema de pobreza na qual famílias não conseguem nem recuperar o corpo de um familiar falecido para um velório digno, são cenas comuns na Coréia do Sul.

O Filme

Uma dessas “não-pessoas” é o jovem Kim Ki-taek (Kang-ho Song) e sua família de desempregados que vivem à beira da pobreza. Ganham algum dinheiro em um serviço terceirizado de dobrar caixas de pizza (aprendem a dobrar mais velozmente em tutoriais no YouTube) para uma empresa de entregas por aplicativo, roubam o sinal de wi-fi de um café das proximidades e vivem em uma espécie de porão no fundo de um beco frequentado por bêbados que ali urinam e vomitam.

Infestados de ratos e baratas, aproveitam a fumigação da saúde pública nas ruas para abrir as janelas ao nível da calçada e deixar que a fumaça entre, quase sufocando todos. Mas, exterminando temporariamente as pragas. Mas a sorte da família muda quando um amigo universitário de Kim Ki-woo se oferece para recomendá-lo como um professor de inglês particular para substituí-lo: ele terá que viajar para os EUA – a influência dos EUA é onipresente nas linhas de diálogo de Parasita.

Ele dará aulas particulares para a jovem So-dam Park (Ki-jung Kim), filha da afluente família Park – o pai, Dong-ik Park (Sun-kyun Lee)  – CEO de uma grande empresa de tecnologia. Sua família vive numa espaçosa casa planejada por um famoso arquiteto, o Oscar Niemeyer coreano. Kim muda seu nome para Kevin e com a ajuda da irmã falsifica seus diplomas e certificados com um Photoshop em uma Lan House do bairro.

Ao chegar na residência da família e ser aprovado pela ingênua mãe chamada Yeon-kyo Park (Yeon-Jeong Jo), Kevin percebe que todo o cotidiano dos Parks é terceirizado: motorista, governanta, a terapia do pequeno filho hiperativo com tendências artísticas, compras no supermercado etc. Vislumbra, então, a possibilidade de empregar toda a sua família naquela casa – desde que ponha em ação um plano para forçar a demissão de todos e substituí-los pela desempregada família Kim.

O pai torna-se motorista, a mãe governante e a irmã a tutora de arte e terapeuta da pequena pestinha hiperativa, após a demissão forçada dos antigos serviçais terceirizados.

A capilaridade da luta de classes

Tudo vai bem e os Park também parecem felizes e satisfeitos com os novos prestadores de serviços. Porém, a trama acaba ficando fora de controle com uma surpreendente revelação, gerando consequências inesperadas e catastróficas para todos os envolvidos. Os críticos têm considerado Parasita inovador e inclassificável – começa como uma comédia de costumes para evoluir para a sátira, o suspense, o drama do conflito de classes sociais, até atingir o ápice do horror. As variações do tema da luta de classes nos filmes anteriores do diretor, chega ao estado da arte de reflexão, ironia e humor negro em Parasita.

Após ganhar a Palma de Ouro em Cannes, o filme já é um sucesso de bilheteria na Coréia do Sul. Apesar de toda hipérbole e exagero (principalmente na sequência final), Parasita parece expressar de forma realista a tragédia social e econômica do país, fazendo os coreanos rirem de si mesmos – principalmente a periferia que se agarra aos trabalhos uberizados para viverem das sobras das classes altas.

A virtude de Parasita é a de fazer uma sátira do atual estágio do chamado “Capitalismo Cognitivo”: miseráveis munidos de celulares e cercados de tutoriais e aplicativos, prontos para serem uberizados e viverem dos restos pagos pelas classes superiores. O conflito Capital versus Trabalho ainda existe, mas está escamoteado pela tecnologia que torna os patrões invisíveis e relações trabalhistas flexíveis.

Resultado: a luta de classes se capilariza em pequenos dramas cotidianos. Sem qualquer consciência de classe, fragmentados e isolados, as não-pessoas apenas acumulam decepção e ressentimento tornando-se presas fáceis ou do atual populismo de extrema-direita ou da explosão da violência incontida. Como Joon-ho Bong nos mostra no apoteótico final.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

PARASITA

Título original: Parasite
Diretor: Bong Joon-ho 
Elenco: Cho Yeo-jeong, Park So-dam, Choi Woo-shik, Song Kang-ho;
Gênero: Suspense, humor.
País: Coreia do Sul
Ano: 2019

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“Altered Carbon” e um sombrio futuro próximo

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Uma elite de abastados têm agora a eternidade para perpetuarem a fortuna e o poder, se afastando da realidade mundana através de “capas” cada vez mais aprimoradas, morando em palácios acima das nuvens, no topo de arranha-céus.

O sonho tecnognóstico por séculos, desde a Teurgia e Alquimia, foi transcender a matéria – abandonar os nossos corpos como condição para a verdadeira evolução espiritual. Mas como Santo Irineu de Lyon alertou no século II, “O que não é assumido não pode ser redimido”. E o sonho milenar pode se transformar em pesadelo com uma tecnologia que promete a imortalidade: a consciência digitalizada em “pilhas cervicais” que podem, a qualquer momento, serem transferidas para qualquer corpo (ou “capa”). Mas isso acabou provocando uma sociedade tremendamente desigual e violenta. Essa é a série Netflix “Altered Carbon” (2018-), um cyberpunk-noir que suscita profundas reflexões teológicas: se pudermos ser ressuscitados após a morte em uma nova “capa”, a alma persistirá entre os códigos que transcreveram nossa consciência e memórias? Ou nos transformaremos em “capas” ocas manipuladas por uma elite amoral? Uma elite que alcançou a verdadeira imortalidade – fazer backups da própria consciência via satélite.

No clássico Blade Runner (1982) de Ridley Scott, a grande questão que se colocava ao final para os espectadores era: o policial Deckard (Harrison Ford), especialista em eliminar androides fugitivos, era sem saber também um replicante? Como distinguir um replicante de um ser humano nas gerações cada vez mais avançadas de androides? Estava colocado o sonho tecnognóstico cujas origens milenares estão na Teurgia, Alquimia e Cabala: imitar Deus criando Vida. Tentar retornar a Deus imitando o próprio ato da Criação.

Mas na série Netflix Altered Carbon (2018 -) descobrimos como o milenar sonho tecnognóstico pode se transformar em pesadelo: aproximamo-nos de Deus quando descobrimos o segredo da imortalidade – nossas consciências podem ser digitalizadas e “baixadas” em “pilhas cervicais” ou simplesmente “cartuchos” armazenados nas vértebras das pessoas. Há qualquer momento, com a eventual morte do corpo, o cartucho pode ser transferido para uma nova “capa” ou corpo, para viver uma nova “encarnação”.

O cartucho mantém memórias das muito frequentes múltiplas vidas anteriores em diferentes “re-capamentos”. Porém, outra incerteza, ainda mais sinistra, surge: os cartuchos digitalizaram memória e consciência. Mas será que a alma persiste entre os bytes desses discos rígidos? Todos os personagens de Altered Carbon ainda permanecem “humanos”, com uma alma e consciência? Ou se tornaram invólucros animados unicamente por sombras do passado, memórias transcritas digitalmente? Zumbis bio-químico-digitais?

Essa é a dúvida que perpassa toda a primeira temporada de Altered Carbon: a realização tecnognóstica da alma finalmente transcender a matéria poderia ter resultado numa bizarra paródia – tudo o que conseguimos foi a imortalidade dos códigos que transcrevem nossas consciências em um disco rígido. E não mais a alma.

Uma elite brutal

Nesse cenário em que qualquer um pode se tornar imortal (a não ser que seja destruído o próprio cartucho invólucro da consciência), conhecemos através da série uma sociedade futura brutalmente desigual que se alastra em megacidades de luz néon, carros voadores, arranha-céus que alcançam as nuvens, sob uma constante chuva ácida que cai sobre becos e ruas estreitas. Relembrando o cenário distópico de Blade Runner.

Uma elite de abastados têm agora a eternidade para perpetuarem a fortuna e o poder, se afastando da realidade mundana através de “capas” cada vez mais aprimoradas, morando em palácios acima das nuvens, no topo de arranha-céus. Viveram centenas de anos, tempo suficiente para acumularem riqueza, conhecimento e sensação de estar sempre acima da Lei.

Por milênios o Gnosticismo aspirou a transcendência sobre o corpo, dentro da dualidade radical espírito/matéria: o corpo nada mais era do que uma prisão para a evolução espiritual, em um mundo cuja Criação resultou numa forma de prisão cósmica para a humanidade. Teurgia, Alquimia, Cabala e demais conhecimentos herméticos foram as tecnologias iniciáticas de cada época mobilizadas para a libertação espiritual.

A revolução tecnognóstica figurada em Altered Carbon é a realização dos sonhos alquímicos e cabalísticos – e os simbolismo do ouroboros (a serpente que morde a própria cauda) e Caduceus (a serpente subindo o corpo de uma mulher como a descrição esotérica da evolução espiritual) estão presentes desde a abertura dos créditos dos episódios para representar isso.

Porém, de uma forma pervertida, como estratégia de perpetuação de uma elite que detém o poder e dinheiro para dominar a tecnologia. A questão é que o tecnognosticismo esqueceu a afirmação de Santo Irineu de Lyon (séc. II) segundo a qual “aquilo que não foi assumido, não foi redimido”. O corpo perdeu a totalidade do seu valor sagrado (foi reduzido a “capa”) enquanto os demiurgos mantêm a ordem material que, em última instância, permanece sendo a prisão espiritual.

A Série

Com o cancelamento da série Sense 8 das irmãs Wachowski, do fracasso de bilheteria de Blade Runner 2049 e o resultado nada entusiasmante de Mudo do diretor Duncan Jones, a Netflix fez uma aposta arriscada em insistir mais uma vez com o universo cyberpunk-noir de Altered Carbon.

Como a maioria das séries atuais, a narrativa já começa em plena ação deixando o espectador sem saber as motivações dos personagens. O que nos obriga a buscar aqui e ali, em cada flash back ou flashs de memórias do protagonista, pistas para reconstruir os eventos anteriores ao enredo atual.

A estória acompanha Takeshi Kovacs (Joel Kinnaman), um ex-membro de uma facção de elite de rebeldes (os “emissários”) que foi morto em um confronto contra soldados do “Protetorado” (governo totalitário comandado pela elite imortal). Seu cartucho foi extraído da cervical e mantido “no gelo” (como denominam o estado de prisão sem corpo) por 250 anos até ser dado a ele um novo corpo para ser “re-encapado”.

Takeshi descobre que sua nova “capa” foi uma liberdade condicional concedida pelo oligarca imortal Laurens Bancroft – James Purefoy. Ele foi recentemente assassinado antes de o backup feito a cada 10 minutos (sua consciência e memórias são transmitidos por satélite para bancos de dados para garantir a imortalidade, mesmo com a destruição da sua pilha cervical) ser feito. O que o impossibilitou de gravar em sua memória quem cometeu o atentado com a reinicialização subsequente em um novo corpo.

Sem a memória da própria morte, Bancroft acredita que as habilidades lendárias de um antigo rebelde “emissário” ajudará a descobrir quem foi o assassino. Aqui temos o início de todos os elementos dos clássicos filmes noir de investigação policial: um investigador estoico, uma detetive policial que nutre uma relação de suspeita com o investigador (Kristin Ortega – Martha Higareda), mulher fatal (esposa de Bancroft, Miriam – Kristin Leheman) e inúmeros vilões que aparecerão para tentar tirá-lo do caminho. Na medida em que a narrativa se expande, passamos a conhecer as regras e uma série de peculiaridades do universo de Altered Carbon.

Desprezo ao corpo

Em um mundo definido pela “imortalidade da alma” (e nisso que acreditam) o corpo foi rebaixado de identidade central a mera ferramenta. Pelo fato de os corpos poderem ser facilmente substituídos, prostituição, violência e agressões (principalmente contra as mulheres) se torna uma normativa. Enquanto consciências podem ser torturadas por dias e até anos em simulações de realidade virtual – o grande problema para alguém é despertar dentro do seu limbo sem corpo, no interior de um dos “cartuchos”. Mas essa imortalidade só é mesmo garantida para a elite de poderosos como Bancroft.

Os pobres podem geralmente trabalhar recebendo como cheque de pagamento um novo corpo (ou “capa”). Porém, esses novos invólucros são de baixa qualidade, provenientes de mercados negros. Mas apenas a oligarquia tem o privilégio dos backups via satélite que garantem a imortalidade sem o risco da perda da pilha cervical.

Mas há grupos de oposição como os chamados “Neo-cristãos” que se recusam a receber novas “capas”: acreditam que após a morte a alma abandonou o corpo e que os novos re-capamentos são sacrilégios aos olhos de Deus.

Os perigos do tecnognosticismo

O que não é assumido, não pode ser redimido”, com isso Santo Irineu quis dizer que Jesus não veio para esse mundo com uma pilha cervical, foi crucificado e o conteúdo do “cartucho” retornou ao seu Pai. Ele levou também as cicatrizes do sofrimento corporal.

As consequências do fato do tecnognosticismo não considerar a advertência de Santo Irineu estão representados em toda a primeira temporada de Altered Carbon. A finitude, temporalidade e senso de fragilidade não são meros limitadores da evolução espiritual.

Como observa Michael Heim, sem essas espécies de âncoras corporais para o Eu temos o crescimento da amoralidade a partir do momento que os limites físicos com o Outro desaparecem. O corpo é a base cinestésica de toda ética e moralidade – leia HEIM, Michael. The Metaphysics of Virtual Reality.

O resultado é o mundo de abusos, violência e desigualdade sem limites. O tecnognosticismo, a gnose sem ascese como uma espécie de atalho para o Satori. Em um mundo que não foi redimido, de nada adianta a evolução espiritual. Principalmente quando ela é pensada como simples negação da matéria.

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