“Come to me”
Sobre a pele
O filme Under the Skin, que de forma muito feliz foi traduzido literalmente para Sob a Pele, é fruto de uma colaboração americana, suíça e inglesa, sendo filmado em 2012 e lançado antecipadamente em 2013 no festival de Telluride (Colorado, EUA) e nos cinemas em 2014, inspirado no conto original homônimo de Michel Faber. Em suma, a estória conta o percurso de uma, implicitamente, visitante de outro planeta, que possui trejeitos e comportamentos muito específicos, com poucas falas, subjetivismo e curiosidade perante a raça humana, e o aspecto mais exótico de sua natureza extraterrena: um quimérico meio de caçar e se “alimentar” de homens durante a película.
O baixo orçamento do longa-metragem não impediu a participação de Scarlett Johansson, que possui um histórico de incursões em produções independentes desde antes do seu sucesso em blockbusters. O processo de gravação se aproveitou das locações em Glasgow na Escócia e arredores, para amplos planos abertos, cenas em ambientes citadinos, solitários e selvagens que enriquecem a obra. De igual modo, muitas das personagens masculinas não são atores profissionais, mas sim, homens que foram envolvidos na trama num exercício proposto pelo diretor Jonathan Glazer, de tenta-los com o poder de sedução da atriz americana, a protagonista sem nome, dando maior realismo à sua proposta de exposição destas situações para o espectador.
Sob a Pele pode facilmente ser colocado no grupo de filmes incompreendidos pelo público em geral. O ritmo paulatino de desenvolvimento lento, a trilha sonora quase inexistente ou minimalista, os cenários sombrios e a economia de falas em prol da potência das representações imagéticas contribuíram para sua recepção fria à época de seu lançamento.
Por estas razões é preciso que se valorize esta obra, pois de uma maneira simples e complexa a mesma traz características singularizantes dentre tantas recopias, gêneros exauridos (comédias românticas, super-herois, animações, ação, e até mesmo as ficções científicas) e a extenuante crise de criatividade e originalidade presente na sétima arte, ou, ao menos como nos fazem crer, erroneamente, as grandes premiações mainstream da indústria cinematográfica, fato este comprovado pela imensa lista de galardões indicados, pendentes e conquistados pelos realizadores do filme em circuitos periféricos. Infelizmente a obra não obteve grande escala de exibição nos cinemas brasileiros, fenômeno comum nos últimos anos, não só por parte de projeções internacionais mas nacionais também, deixando muitas salas apenas para esquecíveis e vis filmagens de questionável qualidade técnica e narrativa.
E, tendo como base estas primeiras prerrogativas da riqueza e amplitude analítica de Sob a Pele, tentar-se-á elaborar uma proposição dialógica, dentre tantas outras possíveis sobre o caleidoscópio de semióforos que o estrutura. Se os filmes podem ser entendidos como sínteses sígnicas do movimento do nosso tempo, sem dúvida nesta obra há aspectos reflexivos permeados por um realismo mágico e a mundaneidade antinômica que vivemos.
As tessituras tegumentares
Sob a pele pertence a um redutível conjunto de filmes flertam que com temas de filosofia, ficção científica – sem um uso excessivo de efeitos especiais –, questões de gênero, várias simbologias de introspecção, a relação entre ética e estética, a não padronização estilística de seu enredo parco em palavras, mas rico em imagens e inumeráveis subtextos. A este seleto grupo ainda pode-se adicionar: K-Pax (2001) e Lunar (2009) que compartilham muitas destas temáticas, com o diferencial do gênero do personagem principal.
E, por esta razão, destaca-se a escolha por uma protagonista feminina, recurso cada vez mais frequente em muitos trabalhos de maior e menor alcance, mas facilmente recaído em clichês, como masculinização ou extrema ingenuidade alinhados a estas personagens, erros estes não cometidos por Glazer e Johansson, apesar de, talvez propositalmente por ambas as partes, ter uma das atrizes mais assediadas por público e crítica cinematográfica atualmente.
O título do filme já expõe muito das intenções imagéticas que o compõem. A pele como objeto sígnico produz muitas possibilidades de interpretação e representação simbólica, pois, em sendo um significante tão profundo, igualmente complexo e dinâmico serão as visões produzidas a partir desta concreção e abstração deste signo. E, a todo o momento, a pele em sua linguagem metafórica é trabalhada e explorada de diferentes maneiras, verdadeiras tessituras sígnicas de tocante profundidade.
Além destas breves elucubrações, há uma infinidade de simbologias de ampla exploração imagética em Sob a Pele, das quais podem ser colocadas em primeiro plano ao menos três delas. Uma abordagem diferenciada da ideia de femme fatale; a relação entre libido, relações sexuais (inseridas de certo modo no ritual de alimentação) e manifestações emocionais; e o estranhamento individual perante uma coletividade que se distancia entre si e não se reconhece como abertura para a alteridade.
O primeiro subtexto simbólico é sobre a mulher fatal, caçadora, mística e sedutora. Alguns elementos contribuem para esta interpretação, a saber: o olhar fixo, por vezes curioso ou enigmático da fêmea fatal quando está à procura de suas “presas”. Algumas propostas de figurino também corroboram para esta mensagem, como no uso do casaco de pele animal, aliado aos lábios vermelhos, como que sedentos por sangue e carne, transferindo a visualidade do perigo que representa.
A personagem principal é reforçada em sua representatividade da fêmea de nossa espécie, e mais ainda por seu comportamento para com os homens, observando-os, seduzindo-os, caçando-os, ludibriando-os e deixando-os à morte enquanto caminha de costas para suas vítimas em sua “essência” fatal. E, conforme o filme se desenvolve evidencia-se que mais do que presas, os homens constituem seu suprimento vital, remetendo de maneira mais clara nas “sobras” de pele ao final das capturas – um formato metafórico para uma complexa relação sexual –, pois ela mesma busca, desde o início da obra, a pele a qual representará sua essência identitária para consigo.
O segundo ponto, este talvez o de maior delicadeza e complexidade, está inserido nas perturbadoras cenas de extração do conteúdo do corpo das vítimas. Toda a constituição das cenas que vão da sedução, condução à sua casa até o mergulho fatal na penumbra liquefeita, englobam uma linguagem simbolista do sexo, imerso na ambientação, sons, movimentos e tensão resultantes no descarte da caça. Por isto, se torna interessante a presença de um dos maiores símbolos sexuais da atualidade na interpretação do papel principal de Sob a Pele, pois esta característica potencializa a obra em suas significações. Em ao menos dois momentos a temática do estupro também é presente, podendo atitudes desta natureza, ocorridas em situações precedentes ao enredo da estória contada, reforçarem ainda mais a postura fatal do ser extraterreno, inclusive em sua fisiologia feminina perante nossa espécie.
Já no que se refere ao terceiro subtexto, este se encontra muito mais explícito pelas situações vividas pela protagonista, como, por exemplo, nos momentos de diálogo e em que contracenam juntos a mulher misteriosa e Adam Pearson – que não é ator, foi convidado para uma participação no filme –, com sua neurofibromatose. Ele é o único que é “escolhido” para passar pelo ritual de inserção no líquido negro da alienígena e sobrevive, talvez pelo fato de haver uma simpatia entre ambos, na busca pela aceitação perante a sociedade.
A cena do espelho, em que a caçadora do sexto oposto aparece completamente despida, é singular neste sentido, por transportar, de certa forma, o questionamento por parte da personagem de Johansson em ser vista e utilizada apenas como objetivo sexual pelos homens. O seu olhar diante do próprio corpo, ou ao menos a representação deste, parece estar imbuído de uma curiosidade em torno do seu poderio de sedução, cuja ação em suas investidas demonstra a facilidade com que as presas são envolvidas por suas feições corporais no despertar do desejo em consumi-lo, até o momento, obviamente, em que cegados pela apetência, decaem em seus fatídicos destinos.
E, para além da exemplificação destas ilustrações, há uma aresta interpretativa deixada pelo diretor. Em alguns momentos um motociclista surge no longa, de forma isolada ou em cenas divididas com a protagonista da obra. Não fica claro em nenhum momento a sua real intenção, participação ou importância. Como proposta reflexiva fica a possiblidade deste ser um lacaio ou assecla, provendo e fomentando precisões e necessidades específicas da personagem principal, até porque ao final do filme, é ele quem fecha a imagem, após o ciclo de vida da mulher contracena em algumas passagens.
A pele sob a pele
O final de Sob a Pele é surpreendente e extremamente inquietante. Estas valorações interpretativas precisam ser levantadas pela riqueza escolhida por Glazer em suas tomadas derradeiras. Após os quase 108 minutos de caçada e auto conhecimento da personagem de Johansson, somos finalmente apresentados à pele por debaixo da pele, já que ironicamente esta, a pele, era a única coisa que restava de suas vítimas.
O momento do olhar para sua representação dérmica – numa releitura de Shakespeare (no embate entre Hamlet e o crânio de Yorick) ou então o emblemático Narciso de Caravaggio – beira o surrealismo diegético, já que é neste fitar da pele que não mais é habitada que saltam olhares de surpresa perante o corpo metálico que cobria. Também existe um simbolismo do monstruoso e do sublime – como diria Victor Hugo – nestas breves tomadas, já que há o mostrar-se do monstro (palavras que advém do mesmo radical monstrum latino), no desvelamento da casca para reluzir a última camada, àquela abaixo da qual não estará nada além dela própria, a coisa em si por detrás do fenômeno, neste caso representado pela cobertura cutânea.
E, mais uma vez cabe elucubrar a possiblidade de haver mais subtextos nesta cena, já que o corpo real da mulher lembra em muito os manequins em seus altares comerciais, inertes e postos para contemplação indiferente de outrem, objetificando aquele corpo, como de igual modo, a protagonista era vista pelos homens que caçava: um objeto a ser apreciado e descartado após o seu uso; a cor negra abaixo de sua pele também tem um arco metafórico em sua concepção, por imbricar de maneira direta à inúmeros aspectos de xenofobismo étnico na humanidade; e a tentativa final de violação juntamente com o homicídio cometido, conotam estas simbologias.
Por fim, os elementos metafóricos, narrativos, simbólicos e intertextuais existentes em Sob a Pele fazem com que o filme fuja dos padrões atuais de grandes produções cinematográficas. Percebem-se grandes inspirações em obras de nomes como Stanley Kubrick, Andrei Tarkovski e Krzysztof Kieslowski, cujas propostas também buscavam uma maior introspecção e subjetividade nas imagens e diálogos, assim como Jonathan Glazer, e, inegavelmente, o trabalho de Scarlett Johansson o fizeram. Resta o deleite imersivo desta proposta peculiar e extremamente rica, em suas infindáveis camadas de introspecção.
Trailer:
FICHA TÉCNICA DO FILME