“A natureza dupla de Cristo – a ânsia tão humana, tão sobre-humana, do homem alcançar Deus sempre foi um profundo mistério para mim. A principal angústia e fonte das minhas alegrias e tristezas desde a juventude tem sido a interminável e implacável batalha entre o espírito e a carne… e a minha alma é a arena onde estes dois exércitos se encontram e combatem. “
Nikos Kazantzakis, do livro “A última tentação de Cristo”
Em 1988, a estreia do filme “A última tentação de Cristo”, baseado no livro do escritor grego Nikos Kazantzakis, causou uma reação intensa e polêmica em vários lugares do mundo (houve até a depredação de muitos cinemas que ousaram projetar o filme). A versão da história de Jesus trazida à tela por Martin Scorsese foi alvo de críticas acaloradas. O filme foi acusado por vários grupos religiosos de transmitir uma mensagem profana e ofensiva ao retratar não apenas a face de Jesus-Deus, mas, especialmente, de Jesus-homem, logo sujeito a dúvidas e medos.
No início do filme, Scorsese, numa tentativa de acalmar os ânimos das vertentes religiosas mais inflamadas, trouxe a seguinte explicação: “Este filme não se baseia nos Evangelhos, mas sim nesta exploração ficcional do eterno conflito espiritual.” No entanto, quando há um personagem com o nome ‘Jesus’, nascido em Jerusalém, filho de Maria e José e que é apontado como filho de Deus, isso implica, de certa forma, em trazer à tona a imagem arquetípica de Jesus, logo qualquer interpretação da história passará pelos sentidos que esse arquétipo evoca.
O conceito de “archetypus” só se aplica indiretamente às representations collectives, na medida em que designar apenas aqueles conteúdos psíquicos que ainda não foram submetidos a qualquer elaboração consciente. Neste sentido, representam, portanto, um dado anímico imediato. […]. O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta.(JUNG, 2000c, p. 17).
Compreender os efeitos profundos das representações religiosas na psique, segundo alguns elementos presentes teoria de Jung, acarreta em uma reflexão sobre as questões universais e suas instâncias, que vêm à tona nas manifestações dessas imagens arquetípicas. Sobre Jesus, Jung diz:
Cristo é para nós a analogia mais próxima do si-mesmo e de seu significado. Não se trata, aqui, bem entendido, de um valor atribuído artificial ou arbitrariamente, mas de um valor coletivo, efetivo e subsistente por si mesmo, que desenvolve a sua atividade, quer o sujeito tome ou não conhecimento dele. (JUNG. 2000b, p.41).
Isso explica a dificuldade em encarar de forma natural a representação de um Jesus na tela, mas não justifica a ira descontrolada que esse filme gerou na época de sua estreia. Principalmente, se considerarmos que a maior parte das críticas veio de pessoas que julgaram o filme sem sequer tê-lo assistido. Parece que a máxima de que somos “a imagem e semelhança de Deus” é pouco assimilada ou assimilada de uma forma que eu, particularmente, não consigo entender, pois qualquer tentativa de dar à figura de Cristo um aspecto mais humano é julgada de forma veemente mesmo antes de qualquer reflexão.
Achas que é uma benção saber o que Deus quer? Vou te dizer o que Ele quer. Quer destruir-me! Ele não vê o que está dentro de mim? Todos os meus pecados.
O Jesus que vimos no início do filme sabe que tem uma ligação especial com Deus, mas não a entende com clareza. Vislumbra sempre uma sombra em seus sonhos, mas só depois vai compreender que a sombra é a Cruz na qual ele morrerá. Sente-se fraco, cheio de pecados e dúvidas, incapaz de entender porque foi escolhido por Deus. E se pudéssemos acompanhar essa história sem tantas amarras, poderíamos nos compadecer com esse homem que está fragilizado, mas que é capaz de carregar todas as quimeras da humanidade em seus ombros tão humanos?
Antes de passar os 40 dias no deserto, numa tentativa de compreender a si mesmo e sua missão, há no Cristo apresentado no filme muita dor e raiva. Esses sentimentos lhe consomem justamente por não conseguir lidar com as mensagens que lhes são enviadas por seu Pai celestial.
Sou um mentiroso. Um hipócrita. Tenho medo de tudo. Não digo a verdade. Não tenho coragem. […] Quero revoltar-me contra vós, contra tudo, contra Deus, mas tenho medo. Queres saber quem são meus pais? Queres saber quem é meu Deus? O medo. Olha para dentro de mim e é tudo o que encontrarás.
No deserto, Jesus tenta entender todas as vozes que povoam a sua mente. Mas, a solidão e a responsabilidade de ser um Messias confundem seus sentidos. Tem visões de Satanás na forma de uma serpente e, às vezes, sente que o próprio Lúcifer está dentro de sua mente.
Lúcifer está dentro de mim. Ele diz-me: “Tu não és o filho do Rei David. Tu não és um homem, és o Filho do homem. E mais, o Filho de Deus. E mais do que isso, Deus.”
Diante de tanta angústia e de toda a complexidade que reside no fato de ser o Messias, conclui esgotado: “Tudo é de Deus. Tudo tem dois significados“.
E, talvez, essa seja uma das mensagens mais profundas do filme. Aproveitando a temática de Noé, já que foi feita uma releitura dessa passagem bíblica no cinema, surge um questionamento: Como escolher que criatura é merecedora de um lugar na Arca se tudo é de Deus?
Judas: Outro dia disseste que se um homem te batesse, davas-lhe a outra face. Não gostei disso. Só um anjo ou um cão faria isso. Lamento, mas não sou nenhum dos dois. Sou um homem livre. Não dou a outra face a ninguém.
Jesus: Ambos queremos o mesmo.
Judas: Queremos? Queres a liberdade de Israel?
Jesus: Não. Quero a liberdade da alma. […] Os alicerces são a alma.
Judas: Os alicerces são o corpo. É por aí que deve começar.
Jesus: Se não mudares o espírito primeiro, o que está lá dentro, só vais substituir os romanos por outra pessoa e não muda nada. Ainda que venças, estarás cheio de veneno. Tens de quebrar a cadeia do mal.
Judas: Como muda então?
Jesus: com amor.
Judas, nesse filme, é uma espécie de ativista político com sede de vingança e com uma vontade extrema de mudança e liberdade. Foi designado para matar Jesus, mas não conseguiu porque, de alguma forma, foi tocado pelas suas palavras. Parece que acreditar naquele homem que pregava o amor, mesmo repleto de dúvidas, era sua sina, então, juntou-se a ele na jornada.
Ao falar de amor e enxergar a presença de Deus em todas as coisas, Jesus inicia o caminho que o levará a crucificação. Encontra seus discípulos, começa a explicar a palavra de Deus através de parábolas e inicia seus milagres. O mais extraordinário é, sem dúvida, a ressurreição de Lázaro.
Lázaro é apresentado como uma figura, no mínimo, perturbadora. Ele esteve morto. Logo, de certa forma, o grande mistério lhe havia sido revelado. Suponhamos que fosse possível voltar dos mortos, qual sentido teria a vida a partir de então?
Assim, quando alguém pergunta a ele sobre “O que é melhor, a morte ou a vida?” e ele responde simplesmente “Fiquei um pouco surpreso. Não era assim tão diferente”, entendemos um pouco o porquê do seu olhar perdido e do seu jeito apático. É como se ele tivesse se tornado “o homem do subsolo” de Dostoiévski, aquele que compreendeu prematuramente que “o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados” (p. 29). Assim, talvez, esse sentimento que o assolava o fazia concluir que: “a ‘vida viva’, por falta de hábito, comprimira-me tanto que era até difícil respirar” (p. 142). Pobre Lázaro! Imagino o quanto de mortos-vivos existem por aí, do nosso lado, diante de nós, em nós.
Pilatos: Uma coisa é querer mudar a forma como as pessoas vivem, mas tu queres mudar a maneira como elas pensam e sentem.
Jesus: Apenas digo que a mudança vai acontecer com amor, não com a morte.
A vida de Jesus, mesmo negada em sua totalidade por alguns, ou tendo vários aspectos de sua trajetória refutados por estudiosos, possui uma mensagem atemporal profunda no que concerne aos dilemas e angústias que permeiam a natureza humana. Como temia Pilatos, o que aquele homem jovem e simples estava conseguindo fazer através de seu testemunho poderia modificar de forma contundente a ideia que todos, naquela época, tinha de Deus e da sua relação com a humanidade. Seria muito mais fácil, para Pilatos, se Jesus agisse como Judas, ou seja, fosse imediatista e buscasse modificar apenas a superfície. A permanência de Cristo na memória coletiva mostra-nos que, em vários aspectos, a vida de Jesus provocou uma mudança significativa, que ultrapassou não apenas um espaço geográfico, mas, especialmente, a variável tempo. E isso, mesmo para os mais céticos, é um fato muito significativo.
A parte final do filme é a mais controversa. Nela, Jesus é tirado da cruz por uma criança que diz ser um anjo enviado por Deus para livrá-lo da morte. Assim, não havia mais necessidade do seu sacrifício pela humanidade, pois o mundo não precisava mais de um salvador, nem de um Deus que se fez homem.
Jesus já tinha visto o Satanás em diferentes formas quando esteve no deserto, mas acreditou no anjo-criança porque queria (ou precisava) acreditar. E foi conduzido a ter uma nova experiência de vida. Nessa nova vida, tentou viver com Maria Madalena, ter filhos e envelhecer.
Mas, ao final, toda essa vida que Satanás ofereceu a Jesus transformou-se em um perturbador “e se…”. Ao vislumbrar como seria sua trajetória e a história do seu povo longe dos desígnios de Deus, Jesus finalmente ofereceu ao Pai o seu espírito e, em paz, entendeu que tudo estava consumado.
Em “A Última Tentação de Cristo”, vimos um Jesus humano, complexo, repleto de angústias, mas com um profundo sentimento de compaixão pela humanidade. Ele é, ao mesmo tempo, o Deus que traz vida a um corpo morto, e o homem inteligente e sensível que mostra a um bando de homens sedentos por justiça que é melhor olhar para seus próprios pecados antes de atirar a primeira pedra.
O que nos remete a uma grande reflexão nesse filme é a constatação de que, por vezes, esquecemos que somos humanos, logo ousamos pensar que podemos nos enquadrar em apenas uma categoria: o bem ou o mal. Ou, ainda, que somos superiores por sermos a imagem e semelhança de Deus e, assim, talvez esqueçamos de que Ele está em tudo, logo é parte de tudo. Como diz Jesus a Judas: “Sim. Tudo faz parte de Deus. Quando vejo uma formiga, quando olho para o seu olho brilhante, sabes o que vejo? Vejo a face de Deus”. E é reconfortante a resposta que Ele dá a Judas ao ser questionado sobre a morte e o medo de morrer: “Por que sentiria medo de morrer? A morte não é uma porta que se fecha, pelo contrário, é uma porta que se abre”.
REFERÊNCIAS:
DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Schnaiderman, Boris (trad.). São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 152.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. In: Obras completas de C. G. Jung em português. Petrópolis: Vozes, 2000c. vol. IX/1.
JUNG, C. G. Aion – estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. In: Obras completas de C. G. Jung em português. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2000b. col. IX/2.
FICHA TÉCNICA:
A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Paul Schrader
Elenco Principal: Willem Dafoe, Harvey Keitel, Barbara Hershey, David Bowie
Ano: 1988