Casamento às Cegas Brasil: A exposição do Complexo Materno e o Mito Afrodite – Eros

Como o relacionamento de Veronica e Will foi atravessado pelo complexo materno e como o mito de Afrodite e seu filho Eros pode elucidar o contexto.

 

Gabriel Primo – @primogabriel – gabriel.primo@rede.ulbra.br

Divulgação Netflix

Will e Veronica no altar.

Casamento as Cegas: Brasil é um reality show da Netflix baseado na versão americana Love is Blind. O programa, que é chamado de experimento pelos apresentadores (Camila Queiros e Kleber Toledo), segue com 16 participantes homens e 16 participantes mulheres com o intuito de encontrar o amor de sua vida, sem prévio contato físico. No primeiro momento os participantes não sabem como é (fisicamente) a pessoa que está conversando, apenas ouvindo as nuances da voz, as histórias, as promessas e suas percepções dentro das cabines por 10 dias seguidos. Após a fase das cabines os casais fazem o pedido de casamento, se encontram numa passarela pela primeira vez e após isso vão para a lua de mel em um lugar paradisíaco por uns dias, até serem levados para a fase do “dia a dia”, colocados em um apartamento para conviverem até a data do casamento. Todo o processo dura 30 dias.

As cabines são chamadas de capsulas e os participantes vão de capsula-em-capsula atras do seu “amor”. O que ao primeiro olhar o programa se remete ao amor líquido descrito por Bauman e repostado exacerbadamente as quintas de #TBT, mas surpreendentemente o reality te prende e te faz sentir a sensação de alguém realmente encontrar o amor nessa forma peculiar. Bem estilo americano de encapsular sentimentos e vender como show, como já sabemos. Mas na segunda temporada um casal chamou bastante atenção devido seu match desde o primeiro encontro, o caminho apaixonado e de companheirismo e o final inusitado. Atenção: partir deste momento teremos spoilers.

Divulgação Netflix

Veronica e Will foram o primeiro casal a se “apaixonar” e a fazer o pedido para seguir para a nova etapa. Numa cena emocionante, onde o Will se ajoelha em frente a tela para pedir a “maravilhosa” – como ele a chama – em casamento. Ambos dizem sim e se preparam para o encontro aonde irão se ver pela primeira vez. No encontro há brilho nos olhos, paixão no primeiro beijo e reforço do sentimento construído nos dias das cabines. Nasce um casal apaixonado! Seguem para a lua de mel em um resort na Amazonia Brasileira, o que reforça ainda mais a química do casal, sendo um dos matchs mais reforçados da temporada pelos próprios participantes. Verônica tem 31 anos de idade é modelo e empresária e Will tem 26 anos de idade trabalha como analista e ambos moram na casa dos pais.

O casal apaixonado é direcionado para a “vida comum” para vivenciarem a vida a dois no dia a dia em um apartamento, onde ambos podem conhecer suas rotinas, jeito de ser, as famílias e suas casas. Em todos os momentos o casal se mostrava cada dia mais apaixonado e conectado. É nessa etapa que o casal é apresentado à mãe de Will, personagem importante nessa narrativa, que já se mostra desconfortável com a situação. Nada menos do que o esperado até então, afinal, um casamento é coisa séria, como reforçam quase todos da família ao se apresentarem, e colocar a vida em um experimento a nível nacional não é comum quanto se relacionar tradicionalmente. Até esse ponto a mãe de Will é apenas uma mãe preocupada com o direcionamento do filho, muito comum nos aspectos positivos do complexo materno, que se trata daquele amor materno que pertence às recordações mais comoventes e inesquecíveis da idade adulta e representa raiz de todo-vir-a-ser e toda transformação segundo JUNG, 1961.

Após muitos episódios que não cabem aqui, eis que chega o grande dia do casamento, noiva de vestido de noiva, emocionada, noivo vestido de noivo também emocionado. E uma cena muito peculiar do Will com os amigos (que são padrinhos) sentados à mesa comemorando a chegada do grande dia, onde Will diz que “está perdidamente apaixonado por essa mulher e nada vai fazê-lo dizer não”, os amigos brindam felizes, e uma amiga de Will pergunta, se ele se casará mesmo se a mãe não aprovar, ele refuta e diz que as escolhas dele são dele e que a decisão do “sim” já está tomada desde sempre.

Corta para a cena da família de Will chegando à mesa, arrumados para o casamento e a mãe pergunta se é isso mesmo que ele quer fazer, afirmando que ele é jovem, tem muitas ciosas para viver, novas pessoas para conhecer além de ter tudo o que ele precisa na casa dela. Segundo JUNG, 1875, os efeitos do complexo materno no filho se diferem entre alguns pontos, mas principalmente atitudes de imaturidade e de dom-juanismo (o conquistador sem profundidade), afinal se aprofundar pra que se tem “tudo” na casa da mãe? De modo inconsciente o filho fica preso à figura da mãe e essa é procurada inconscientemente “em cada mulher”. O que pode trazer efeitos maléficos para esse “futuro-homem”. Will tem 26 anos de idade, já é um homem, mas um dos efeitos do complexo materno negativo no filho é justamente esse “menino” nunca crescer e ficar enraizado no lar materno, o castrando da potencialidade da própria vida.

Como fenômeno patológico esse tipo de mãe tira do filho as possibilidades de vida e a própria vida se resume em trazer conforto, segurança ou “favores” maternais. Como no mito de Afrodite e seu filho Eros o deus da paixão (mais conhecido em algumas histórias com o formato de cupido) cuja sua única função ao ser criado foi vingar Afrodite (deusa da beleza), que estava invejada por uma mortal chamada Psique, considerada tão linda quanto uma deusa. Afrodite enviou Eros para flechar psique (as flechas de Eros tinham o poder de fazer alguém amar ou odiar de imediato), e em consequência se apaixonasse por um monstro, e de nada adiantaria sua beleza, por pura inveja. Porém ao ver Psique, Eros errou a flecha e se apaixonou por ela.

Divulgação Netflix

Voltando para história de Will e Veronica, após a conversa com a mãe que dizia que se ele dissesse “não” na hora do casamento ela estaria lá para receber ele e apoiá-lo.  E que ela não o julgaria, pois ele tem muita vida pela frente. Clima tenso percebido pela produção do programa, e o próprio apresentador, Kleber Toledo, foi conversar com Will e a mãe, dando seu próprio exemplo, de que sua vida só melhorou e andou para frente após seu casamento, que ele então era outro homem! A cena segue para a entrada do noivo com a mãe na cerimônia, os convidados sentados à espera da noiva que chegara radiante com seu vestido branco, sorrindo até ao altar. A cerimonialista em seu discurso pergunta à Verônica se aceita Will em casamento, ela reponde um emocionado “SIM”, e segue a pergunta para Will, que em hesitação reponde “maravilhosa, hoje será um não”.

Todos os convidados amigos próximos de Will se assustam, pois é o oposto que afirmou há alguns minutos atras em roda de conversa na mesa, indo contra toda a trajetória do casal, enquanto Veronica sai apressada pela passarela da marcha nupcial. A cena que se segue é de Will conversando com a mãe, onde ela o acalenta, afirmando que ele fez o que seu coração mandou e ninguém tem nada a ver com a sua vida, que ela sempre estará lá por ele e que há muita vida pela frente. Neste contexto, o complexo materno está diretamente ligado ao eros exacerbado (não o deus citado acima, mas a parte libidinal humana), a mãe devoradora, castra o filho da vida. Fantasiada de proteção ou amor maternal da parte sombria materna, pode inconscientemente levar o filho ao caminho de comodismo, não desenvolvimento (puer aeternus) e uma existência insipida, que ela acredita ser o melhor, mas não necessariamente.

Como visto no mito Afrodite – Eros, o filho a desobedeceu, não acertando a flecha em vingança à Psique, e sim, se apaixonou pela própria, indo contra tudo o que a mãe o criou para fazer. Eros e Psique mais à frente do mito se casam e tem uma filha chamada Hedonê, a deusa do prazer. Há um momento em que os filhos naturalmente, deixam o papel principal de filho e se tornam novos papeis principais, faz parte da jornada individual de todas as pessoas esse processo. O mito nos traz caminhos para respostas diante do complexo materno exposto no texto. Eros além de desobedecer a mãe para seguir sua vida casou-se com Psique e o casal deu à luz a deusa do prazer, Hedonê. Importante notar que do grego, Psiquê significa alma. Podemos então parafrasear que a desobediência de um homem adulto à mãe e o encontro com sua alma (psique) dá frutos para o gozo (Hedonê) da vida completa.

Faz parte da vida adulta desligar-se dos desejos parentais para viver seus próprios desejos. Já ligou para sua mãe hoje?

Referências

 

JUNG, C.G., 1875-1961. Quatro Arquétipos: mãe: renascimento: espírito: trickster; Tradução Gentil Avelino Titton, Petrópolis: Editora Vozes, 2021.

Noites Gregas, ep. 19, [Locução de]: Claudio Moreno. Porto Alegre. noitesgregas.com.br 21/10/2020.