Ficção e Homossexualidade na Tv Brasileira: de Eduardo e Hugo à Félix

Não é segredo que a telenovela ocupa um espaço importante na produção cultural brasileira. Mesmo entre os mais radicais frankfurtianos e dialéticos é necessário reconhecer o papel que a teledramaturgia, nas últimas décadas exerceu (e ainda exerce), nas representações sobre a sociedade brasileira. Muito se falou e escreveu sobre a telenovela no Brasil. Trabalhos acadêmicos, artigos em revistas e jornais e nas conversas do dia-a-dia, as opiniões e análises sobre esse produto televisivo são algo constante nos espaços eruditos e populares.

Nos últimos anos a telenovela se ocupou em inserir temas que procuram englobar questões sociais e que para os escritores de teledramaturgia seriam pertinentes. Esses temas são inseridos muitas vezes de forma didática, buscando uma conscientização do público receptor sobre essas temáticas propostas. Dependência química, transplante de órgãos, alcoolismo, tráfico de pessoas, desaparecimento de crianças são exemplos de temáticas que os escritores de telenovela inseriram em suas produções teleficcionais. Esse processo é conhecido como merchandising social, termo considerado como controverso, pois se tornou naturalizado no campo televisivo, porém criticado no espaço acadêmico.

Uma das temáticas que conseguiu um alcance relevante foi a da homossexualidade, discutida na telenovela Insensato Coração (2011), escrita por Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Em seu histórico na construção do folhetim televisivo, esses escritores abordaram muitas questões como a corrupção, o comportamento das elites brasileiras e até mesmo questões morais. Essas questões estão presentes em novelas como Vale Tudo (1988), Pátria Minha (1994), Celebridade (2003) e que mostram as propostas realizadas pelos escritores em inserir temáticas para possíveis discussões.

Em Insensato Coração os escritores repetem essa fórmula, utilizando-se do melodrama e o reatualiza para alcançarem seus objetivos. Para ampliar suas intenções, ou mesmo seguir as demandas da indústria cultural, G. Braga e R. Linhares inserem o tema da homossexualidade, aproveitando o agendamento do tema, presente em discussões na sociedade civil e também em instituições religiosas, jurídicas e políticas.

A questão da homossexualidade é um tema polêmico e multidimensionado, pois envolvem relações de poder, práticas culturas e históricas, experiências sociais e interesses institucionais e de grupos. Nos últimos tornou-se uma questão de discussão pública na sociedade brasileira, pois com o fortalecimento da luta pelos direitos das minorias (como categoria sociológica) a “questão gay” se consolidou no debate público. A igualdade de direitos, como o reconhecimento da união homossexual, a adoção de crianças também por casais homossexuais são “bandeiras” – que é muito mais do que isso, pois são direitos e não privilégios – encampadas pelo movimento GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros).

Os escritores de Insensato Coração “aproveitando” o agendamento público da temática homossexual inseriram na narrativa ficcional questões sobre a orientação sexual, especificamente a “questão gay”. Eles procuraram se afastar dos velhos estereótipos que a própria telenovela utilizou durante anos para representar os homossexuais. “Bichas” afetadas, gays violentos, paranoicos e infelizes são exemplos de como durante muito tempo a televisão representou os homossexuais.

Em Insensato Coração os escritores também utilizaram algumas dessas representações ao inserirem personagens afetados e afeminados como Rony (Leonardo Miggiorin) e Xicão (Wendel Bendelack). Porém, inseriram alguns personagens que não adotaram esses estereótipos, procurando adotar estratégias que politizem e didatizem a temática da homossexualidade. Pode-se perceber nessas estratégias duas questões que para os escritores se tornaram pertinentes. A primeira é o uso de personagens que não possuem comportamentos afetados e afeminados, como o Eduardo (Rodrigo Andrade) e o Hugo (Marcos Damigo) que adotaram o comportamento da “normalidade”. A outra questão foi a discussão sobre a homofobia com o objetivo de discutir a criminalização das práticas homofóbicas.

Eduardo e Hugo – Insensato Coração

Para tentar “educar” o público e destacar a importância do relacionamento homossexual dentro de uma possível normalidade, os escritores decidem optar por concentrar no relacionamento de dois jovens bonitos, pertencentes a classe média (Hugo e Eduardo). Um deles é professor universitário no curso de direito e outro é filho de uma comerciante que possui um quiosque na praia do Leblon (cidade do Rio de Janeiro) e que apoia a causa homossexual. G. Braga e R. Linhares assumem o discurso da heteronormatividade, ao procurar dar “voz” a novas representações sobre a homossexualidade.

O casal homossexual protagonista da novela assume as representações da normalidade heterossexual, isto é, os escritores apenas replicam no comportamento dos personagens as práticas da normativa heterossexual. Hugo e Eduardo se aproximam, se apaixonam, surgem algumas turbulências com a família (no caso de Eduardo) e para concretizarem a felicidade resolvem se casar, conciliando com todos: família, amigos e de certa forma com a sociedade.

Mesmo que os escritores queiram abandonar estereótipos que foram e ainda são representados na televisão, eles acabam adotando representações da família tradicional, heterossexual, moderna e burguesa. Outras questões que os escritores inserem é a judicialização constante da homossexualidade e principalmente da homofobia. Utilizando a estratégia do merchandisingsocial, eles utilizam a lei e a punição como forma de reduzir a prática homofóbica. Em alguns momentos torna-se pedante o uso didático para convencer o público que praticar homofobia é crime. O problema é que reduzem apenas a questões jurídicas, não percebendo as outras práticas presentes nesse processo.

Entretanto, em Insensato Coração os escritores procuraram ampliar as “vozes” homossexuais. O relacionamento desse mesmo casal homossexual, a inserção de personagens de classe média, com empregos estáveis, sem trejeitos afetados e/ou afeminados como um jornalista dois advogados e um estudante universitário. O estereótipo do homossexual, porém permanece, quando os escritores inserem a personagem Araci (Cristiana Oliveira) como “lésbica” usando “trejeitos” masculinizados.

Crô – Fina Estampa

Após a exibição de Insensato Coração as telenovelas exibidas no horário das 21 (vinte e uma) horas da Rede Globo com receio de não centralizar a polêmica sobre a homossexualidade resolvem “frear” a discussão. Na novela posterior Fina Estampa (2011-2012) o escritor Aguinaldo Silva insere um personagem homossexual Crô – Crodoaldo Valério (Marcelo Serrado) e que possui os “velhos” estereótipos homossexuais representados nas novelas: afetado, afeminado e com o toque cômico, com intenção apenas de entreter.

Félix – Amor à Vida

No momento atual a telenovela Amor à Vida (2013) de Walcyr Carrasco possui alguns personagens homossexuais. O personagem Félix (Mateus Solano) homossexual ou bissexual é um dos protagonistas da novela. Um outro núcleo homossexual é composto por Eron (Marcelo Antony) e Niko (Thiago Fragoso) que mantém um relacionamento estável e que estão adotando um criança através de um processo de “aluguel de uma barriga”. Questão também que está sendo discutido na sociedade brasileira (e também em muitos outros países) sobre a adoção de crianças por casais homossexuais. Esse casal de personagens de Amor à Vida também possui quase o mesmo perfil do casal de Insensato Coração, classe média, brancos e adotam a normalidade heteronormativa.

Eron e Niko – Amor à Vida

A telenovela cumpre uma função social ao discutir temas pertinentes às demandas da sociedade contemporânea no Brasil? Para muitos ela realiza um desserviço, pois ao discutir temas tidos como sociais e polêmicos, a telenovela os mercantiliza, pois opera dentro do processo da indústria cultural. O próprio termo merchandising social seria uma forma de apresentar esses temas, como a homossexualidade, a partir da lógica de ganhos de audiência e consequentemente aumento de publicidade e lucratividade.

Contudo, reduzir o papel que a ficção televisiva possui em mero produto mercadológico é negar décadas de interação com a sociedade brasileira. Nessa interação, as matrizes hegemônicas que predominam principalmente as dos escritores estão concatenadas com o eixo Rio-São Paulo. Outras realidades ou lógicas culturais brasileiras são pouco representadas e quando são estão carregas de estereótipos. Porém, não podemos reduzir o escopo da análise num economicismo que muitas vezes é estéril e pedante.

Para entender como a telenovela consegue operar nos códigos da cultura brasileira e de certo modo manter uma relação de décadas devemos perceber como ela consegue se reinventar, reinventando principalmente sua principal matriz narrativa: o melodrama. É na reinvenção do melodrama que abre a possibilidade dos escritores inserirem temas do cotidiano, perspectivas políticas e interesses ligados às da emissora. A discussão de questões da sociedade brasileira pela ficção televisiva é uma herança que está além do melodrama, recebendo também influências da literatura e do teatro, pelo menos na especificidade da teledramaturgia no Brasil.

Ao proporem a discussão sobre homossexualidade em Insensato Coração, G. Braga e R. Linhares procuram se conectar com as demandas da sociedade brasileira. Mas, não se pode esquecer que essa conexão não é mecânica, pois os escritores são condicionados por representações sociais, bem como o público que assiste e comenta a telenovela. Podemos perceber na quantidade de postagens que os internautas fizeram durante o período de exibição da novela, nas mídias sociais.

As mídias sociais talvez seja hoje o principal termômetro em que os escritores e as emissoras utilizam para avaliar a produção televisiva. A polêmica sobre a homossexualidade fez os escritores de novela, após Insensato Coração, possivelmente por pressão da maior emissora (Rede Globo) atenuar as discussões. Em Amor à Vida Wlacyr Carrasco utiliza estratégias para abordar o tema da homossexualidade. O escritor procurou estereotipar o personagem gay Félix para contrabalancear a discussão sobre o tema da adoção de um filho em que o casal homossexual Eron e Niko está realizando.

O escritor procura realizar uma polêmica mais “soft” e também para agradar o público estereotipa um personagem gay com ações de vilão, realizando coisas supostamente desagradáveis e condenáveis. O escritor apresenta o personagem Félix com problemas de caráter, insinuando uma relação entre comportamento e orientação sexual. Essa intenção talvez procure agradar pessoas que se opuseram a defesa da “causa gay” por Insensato Coração e que defendem a tão questionada “cura gay”. Como o sentido escapa da ação, talvez não seja a intenção do escritor, porém o significado interpretado poderia ser esse.

As postagens nas mídias sociais mostrou um caleidoscópio de representações sociais presentes nos posts dos internautas. Um elemento pertinente na análise desses posts é a insistência dos internautas em escrever sobre como a homossexualidade foi abordada em Insensato Coração. Mesmo que muitas aceitem e até defendem o direitos dos homossexuais de ter direitos e respeitem a suas orientações sexuais é necessário mais do que isso.

Citando um fala da filósofa Marilena Chauí é necessário uma revolução antropológica para que a revolução sexual realmente se estabeleça. Os escritores de Insensato Coração tiveram o mérito de problematizar uma temática complexa num produto cultural de alcance nacional e que possui tensões e interesses diversos. Na telenovela Amor à Vida, o tema da homossexualidade retoma como uma das questões centrais da narrativa. Muitos sentidos atravessam a temática, comportamento, moralidade e direitos civis. A família é uma instituição que atravessa a narrativa, principalmente o modelo nuclear e tradicional. Porém, para que essa mudança antropológica ocorra e que a liberdade sexual seja respeitada e vivida é necessário mais do que 185 capítulos de ficção.

Doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília (2013). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (2004). Professor da Universidade Federal do Tocantins.