O Cotidiano da Loucura: um novo elogio a um velho personagem

Enfim, eis que nós, seres humanos, chegamos à absoluta era da razão, onde todas as decisões tomadas estão permeadas de um bom senso e mergulhadas no vasto lago de ponderação, cujo conteúdo foi depositado, gota após gota, por séculos de evolução do pensamento altruísta e beneficente! Bem vindo seja nessa época onde não existem as diferenças de credo, ideologia, cor, raça e onde somos todos humanos e para os humanos!
O parágrafo acima representa o ideal pelo qual estamos esperando e que a cada dia que passa é adiado por 20 anos. Nós vivemos uma era da funcionalidade extrema, desenvolvimento exponencial, jornadas de trabalho cada vez mais intensas, enfim, o verdadeiro “caos terreno”. Esses problemas e situações são bastante modernos, mas quando bem analisados e discutidos, surge uma personagem inesperada, já bem antiga e muitíssimo bem conhecida pelos pensadores e filósofos, sejam eles atuais ou de gerações passadas.
Uma personagem que está por trás das mais delicadas decisões e que age quando todos nós perdemos a razão, que torna a infância algo tão puro e a velhice um descanso tão gratificante, que torna o indivíduo culpado e que é a absolvição das massas. E quem haveria de ser essa personagem tão importante e tão decisiva? Ninguém mais, ninguém menos que ela, a Loucura. A Loucura, como personagem, da mesma forma que foi descrita por Erasmo de Roterdã em 1509, em seu livro “O Elogio da Loucura”.
Com todo seu sarcasmo, cinismo e, pasmem, bom senso, a Loucura nos é apresentada de uma forma personificada, em uma obra quase caricata e recheada de críticas à sociedade e aos “figurões” da época. Erasmo, que era amigo muito próximo de Thomas More, figura importante no Renascimento Humanista da cultura européia, pretendia criticar toda a sociedade de uma forma tão refinada e ácida que causaria revolta á todos os leitores que não tivessem a malícia de ver as entrelinhas de sua obra.
No entanto, a repercussão que a obra teve foi completamente diferente da qual Erasmo esperava. O livro foi elogiado pelo Papa Leão X como uma obra divertida, e foi aclamada pela população, fatos que desagradaram, e muito, Erasmo de Roterdã. Mas e atualmente? Como seria possível trazer idéias e situações de um livro do século XVI para a nossa avançada sociedade da aurora do século XXI? Em que pontos Erasmo teria sido “profético” ao ponto de criticar situações que só viriam a acontecer 500 anos após a publicação de sua obra? Podemos começar com o exemplo mais comum e talvez o mais triste deles. Bem disse Erasmo que aquele indivíduo que é capaz de ignorar toda a podridão dos defeitos e egoísmos do próximo, justificando-os por um senso pífio de “bem maior”, esse sim, pode ser considerado com a maior das certezas um digno devoto da “deusa” Loucura.
Pois bem, em nossa sociedade evoluída e politizada, o que não nos falta, lamentavelmente, são exemplos dos nossos representantes, “Os Políticos”. Aqui citados entre aspas devido ao senso de personificação e semi-divindade que os comuns deram-lhes, que se utilizam de sua posição privilegiada e seu “conhecimento” abundante para chegar aos limites de um comportamento completamente incoerente e esdrúxulo com o qual um dia foi prometido ao povo, aproveitando-se de todas as formas possíveis para garantirem nada menos que a autopromoção.
Até aí nada fora do normal, mas o que se equipara à Loucura de Roterdã está na atitude do povo que elegeu essa pessoa, que passivamente aceita, e de bom grado, tudo que lhe é imposto por essa figura tão louvada. Usando-me da licença poética de “citar o milagre, sem citar o santo”, somos levados a um ponto de Loucura tão exacerbada que escutamos de representantes do povo, os mais maltratados pelas ações mesquinhas do “Político”, o seguinte bordão: “Ele rouba, mas faz”. Em que situação, se não na Loucura explícita e quase pueril, um ser humano em posse de todas as suas faculdades mentais “normais” justificaria milhares de erros e egoísmos com um único ato de “boa vontade”?Saindo do já exaustivamente discutido cenário político, podemos encontrar os atos d’A Loucura em situações um tanto quanto comuns para nós, defensores do alvo e divino dever de Asclépio. Enganam-se os que pensam que a medicina encontra somente na Psiquiatria os indivíduos tocados pela Loucura, pois se considerarmos que Erasmo deixou bem claro em seu escrito que a Loucura vai desde o ato de agir como um bobo até o verdadeiro “Louco de Pedra”. Todos os dias somos apresentados à figura do Médico onipotente, que se equipara a(os) Deus(es) e proclama para si o direito sobre a vida e a morte. Os que entendem um pouco de mitologia greco-romana sabem que Asclépio, deus da Medicina, foi morto por um raio de Zeus quando cometeu o “erro” de trazer um ser inerte de volta à vida. Salvo as devidas proporções, porque deveríamos considerar mentalmente são um homem, tão mortal quanto eu ou você, divino ao ponto de decidir quem morrerá e quem será salvo? Temos, então, bem diante de nossos olhos um excelente exemplo de como a Loucura do século XVI ainda se mostra bastante ativa em pleno século XXI.

Outro aspecto para o qual a Loucura se mostra soberana é o atual estilo de vida que grande parte da população metropolitana desfruta. A cada dia estamos mais atrasados, mais apressados, mais cansados, mais atarefados e, conseqüentemente, mais loucos. Em prol de ter uma sociedade mais dinâmica e mais lucrativa, temos que abdicar de nossa sanidade mental, e nos submetemos a condições sub-humanas de trabalho. Somos considerados loucos ao tentar alcançar a perfeição social representada por Erasmo como uma colmeia de abelhas, e nos fala que foram necessários milhares de anos de aperfeiçoamento da natureza para que uma colmeia apresentasse uma organização social tão perfeita que todos os componentes dela já nascem sabendo o que fazer e cumprem seu dever incansavelmente até que a morte corte o fio que os prende à vida. Para Erasmo o simples fato de buscarmos o conhecimento e irmos contra toda a sabedoria da natureza é um ato explícito de Loucura.

Uma passagem interessante, a qual cabe uma citação, e que pode ser considerada completamente atual, é como Erasmo de Roterdã encara as três principais fases de um ser humano: a Infância, a Idade Adulta e a Velhice. A Loucura da criança, que brinca incansavelmente, devaneia com situações imaginárias, não mede os riscos das suas ações, está no simples fato de que ela não teve vivência suficiente para aprender com os seus erros e imprudências, ainda não é cobrada pela sociedade a ponto de ter que sustentar uma sobriedade de pensamento constante, ou seja, ela ainda tem a sua liberdade de pensar e agir contra tudo o que a sociedade considera moral ou imoral.

Mas, à medida que crescemos, aprendemos de nossos superiores que determinadas atitudes são mal vistas pelo grupo social onde estamos inseridos, e a partir daí começamos a nos policiar e a olhar todo o comportamento de uma criança como algo que passado, e então abrimos mão dessa Loucura. Quando chegamos à velhice, eis que nos é dada a oportunidade de desfrutar da doçura da loucura novamente, sem que a sociedade nos encare como tal.  Erasmo considera que se o ancião não “enlouquecesse” seria o ser mais importuno dentro de uma sociedade, posto que sua vasta experiência e vivência seria o suficiente para que os mesmos fossem irrefutáveis em qualquer discussão, sagazes em qualquer negócio e corretos em qualquer ação. Dessa forma Erasmo aproxima as crianças dos idosos, e conclui que a boa vivência entre ambos está única e exclusivamente ligada á loucura que ambos desfrutam.

E como um último exemplo de como a Loucura continua contemporânea, temos os exemplos dos monarcas, que movidos por ela, enviam seus exércitos para uma morte quase certa, apenas por caprichos egoístas de uma moral ferida. Ainda em pleno século XXI, temos líderes que forjam situações de conflito apenas com o interesse econômico de manter seus “reinos” felizes e prósperos, mesmo que isso custe milhares de vidas dos inocentes do “reino” atacado. Nesses casos a Loucura se torna algo tão sistematizado que temos uma metodologia aplicada a ela. Generais discutem estratégias e definem ataques, obedecendo a uma hierarquia e com uma sofisticação tão refinada que apenas a própria Loucura em pessoa poderia ter idealizado. Somos confrontados com a discrepância de que um homem, armado, que fere seu próximo, é um louco, mas que centenas dos mesmos, armados, mas motivados por um ideal nacionalista, e pela Loucura do seu líder, e não a sua própria, vêm a ser considerado um herói, e louvado por toda uma nação.

Esses foram alguns exemplos, dos inúmeros citados e devidamente criticados por Erasmo em 1509, e se fôssemos citar todos, com certeza seria uma discussão interminável. Mas o que podemos aprender e, acima de tudo, apreender do texto, é que, independente de como a Loucura se apresenta, sua interpretação nunca será a mesma, pois depende do seu contexto, da sua motivação, das suas conseqüências e, sobretudo, da ótica da pessoa que a observa. Nós, seres humanos, somos completamente diferentes, desde um nível microscópico e genético até um nível macroscópico e cognitivo, e, portanto, é muito improvável que compartilhemos de modo absoluto uma opinião. Cabe a nós pesar e entender que da mesma forma que julgamos a Loucura do próximo, a nossa será igualmente julgada, e com a mesma mão de ferro que a punimos, seremos punidos. Talvez, tão antiga quanto a sociedade, seja a Loucura que permeia a razão e os costumes, e por ser tão discreta, deixamos que ela passe completamente despercebida. Pois bem, então que sejamos Loucos, mas sejamos conscientes!

 

REFERÊNCIAS:

ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Disponível em:http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/elogio.pdf Acessado em: 17/10/2011.