O Profeta: nas despedidas, um chamado à vida

A Despedida – 1930 (óleo sobre tela). Por Antonio Gomide

Não é de hoje que a maior parte das pessoas é acusada de, em linhas gerais e guardando as devidas proporções, ter uma espécie de aversão à contemplação, seja por sua “inclinação” à ação (física), seja por deliberadamente negligenciar os aspectos mais gerais (e, talvez, mais angustiantes) da vida. Antes que “se atire a primeira pedra” no neoliberalismo ou pós-capitalismo que se estrutura atualmente, vale lembrar que Aristóteles (300 a.C) já apontava a “vida irrefletida” como uma das condições a serem combatidas em sua época, afinal, para o Estagirita, uma vida sem sentido, sem autoanálise, não valeria a pena ser vivida.

Na visão de mundo dos amantes da sabedoria (os filósofos de todos os tempos), o homem/a mulher deve se tornar um aguçado investigador de si e do mundo, e ter em qualquer coisa ou circunstância um pretexto para esquadrinhar os detalhes que se desdobram no cotidiano. Assim, neste ambiente de hipervalorização do subjetivo, um evento que suscita diferentes (e até antagônicos) sentimentos é a “despedida”, que acaba por se transformar em uma grande “matéria-prima” da diligência dos que não se conformam com o bardo estéril, com a inabilidade em se perceber em profundidade.

Neste contexto, um dos livros de maior impacto e que se configura como um verdadeiro convite à “meditação”, à autoanálise é “O Profeta”, do libanês radicado na América Khalil Gibran (1883-1931). Escrito em 1923 e alçado a uma das obras mais lidas no mundo (ao lado de outros “gigantes” como a Bíblia, o Darmapada e o Alcorão), “O Profeta” elenca um diálogo entre Al Mustafá (que está prestes a embarcar num navio para “sua cidade natal”) e os moradores de Orphalese.

A obra aborda questões como o Amor, a Ilusão, a Dádiva, a Religião, o Prazer e o Trabalho, só para citar alguns temas e, de forma paradoxal, esmiúça a “dualidade” que pode estar presente em momentos cruciais da vida, como as (dolorosas, mas apenas aparentes) separações.

Apesar de ser exortado a ficar em Orphalese e de sentir apreço pelo lugar e seu povo, Al Mustafá sabe que deve retornar ao lar (ao Uno de Plotino, seria?), mas faz da partida uma ode à celebração da vida e um louvor à liberdade. Quando instado a falar, dentre os vários assuntos abordados, é sobre a relação de pais e filhos que sai uma das mais célebres frases. Al Mustafá não hesita em dizer que “Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma”, na direta demonstração/ensinamento de que embora os filhos vivam com os pais, a estes não pertencem, pois “podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, Porque eles têm seus próprios pensamentos. Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; Pois suas almas moram na mansão do amanhã”.

Assim, ao reconhecer o devir como algo inerente à dinâmica da vida e das relações, o autor foge das tradicionais perspectivas com viés utópicos que tendem a procurar, a qualquer custo, engessar as trocas, e retira dos ombros do homem/mulher a insana vontade de a tudo querer controlar, a vontade farisaica de deter a “verdade” que não une mas, ao contrário, separa. Há, no fundo, um elogio de Gibran à impermanência.

Khalil Gibran, dentre tantas “chaves” interpretativas de “O Profeta”, alerta para que o outro, nas relações amorosas, parentais e/ou cotidianas, não sirva apenas para matar o tempo de quem o deseja, para preencher o vazio do espírito sedento de volições. Antes, contudo, seria melhor enlevar-se com a doação, uma vez que “as flores desabrocham para continuar a viver, pois reter é perecer”. E a bondade “que se mira num espelho converte-se em pedra”.

Num dos ápices da obra, no diálogo de Al Mustafá com uma Vidente, há uma verdadeira canção ao Sagrado, numa tentativa de unir o fenômeno à sua causa. Sendo assim, não se pode julgar uma pessoa sem que se transmute o que se entende por “verdade”, afinal “julgar-vos pelas vossas falhas é como censurar as estações pela sua instabilidade”, já que “a primavera, que descansa dentro de vós, sorri na sua letargia e não se sente ofendida”.

Em resumo, em “O Profeta” Khalil Gibran cria uma “sonoridade” com as frases que, além de poéticas, também remetem à metafísica. Aliás, esta certamente era uma de suas intenções, pois o próprio autor pediu ajuda a Deus “para exprimir no livro Tua Verdade envolta em Tua Beleza”. Na obra, há a exposição de uma inesgotável inspiração pelo harmônico (que remetem ao Belo e ao Justo platônicos) e, como bem explicitou o principal tradutor do livro para o Português, o estudioso do mundo árabe Mansour Challita, a serenidade permeia toda a escrita.

De resto, “O Profeta” deixa o tocante ensinamento de que “o amor não conhece sua própria intensidade até a hora da separação”. Mesmo que esta separação seja apenas aparente, ilusória, afinal “toda vez que venho à fonte para beber, encontro a própria água sedenta; E ela me bebe enquanto a bebo”. Pois apesar de o homem está ligado a terra, ele é como um carvalho gigante, cuja “fragrância vos eleva no espaço, e sua durabilidade vos dá a imortalidade”. “O Profeta” é um livro que deveria ser lido várias vezes na vida…

 

Khalil Gibran morreu jovem, aos 48 anos, provavelmente de tuberculose: em vida, imprimiu no dia a dia os ideias que defendia em seus escritos.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.