Pulsão, afeto e paixão em “O Príncipe das Marés”

Escrevo instantes depois de (re)assistir ao filme “O Príncipe das Marés”, que, sem dúvida, abriga em si grande riqueza sobre a teoria das pulsões, “pedra angular sobre a qual repousa a psicanálise” (Freud, 1914). Entre dor, silêncios, sarcasmos, angústias dissimuladas, surge um homem morto/vivo desempenhando papéis confusos de irmão, pai, marido. Ele demonstra alguns tipos de resistências, mecanismos de defesa, tendo no chiste a sua principal marca. Vale ressaltar que “para atingir seu objetivo, que é ajudar a suportar desejos recalcados, os chistes requerem a presença de pelo menos três pessoas: o autor da piada, seu destinatário e o espectador” (ROUDINESCO, E. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998). Tom Wingo (Nike Nolte), é um treinador de futebol americano que vai da Carolina do Sul para Nova York ajudar a irmã Savannah, poetisa, frágil suicida em potencial. Lá, tem que se haver com a terapeuta da irmã, Susan Lowenstein (Bárbara Streisand), uma mulher forte que, em contraste com a fragilidade dele e da irmã gêmea, provoca as mais diferentes e intensas emoções, “abrindo a caixa preta”, o inconsciente bem guardado pela resistência. A partir de então, mecanismos de defesa, chistes, resistências e transferências acontecem a cada encontro em eletrizantes manifestações psíquicas entre “paciente” e terapeuta.

Na dinâmica cinematográfica, a “alegria e descontrações próprias do Sul” escondem tormentos inomináveis de um menino que viveu experiências terríveis e foi orientado a guardá-las como quem guarda um cadáver de estimação. Ele narra, então, sua triste saga que tem como pano de fundo as mulheres de sua vida.

As primeiras palavras da narrativa são interessantes: “Filho de uma mulher bonita e um pescador, eu amava o contorno dos barcos”. O deslocamento (de afeto) é visível. Trechos parecem fluir como a própria licença poética: “vivi com uma mulher lindamente torneada (sem essência materna), mas prefiro coisas, ou melhor, o contorno, o superficial, do inanimado que não me cobra, não me afeta, não me questiona”. Impressiona a paixão negativa que o move em relação à mãe. Quer parecer que ele sabe ou deposita nela toda representação de sua dor.

Odiando-a, inibe o retorno daquilo que deseja esquecer (do recalcado), fugindo do desprazer da lembrança. Ela encerra, sepulta, torna-se representante do que deve ser esquecido, deletado, anulado da memória.

Quando com os irmãos experimentava o conforto do útero das águas, sentia-se bem, longe, num mundo estéril, neutro, quase seguro. A água também os asfixiava, obrigando-os a voltar, nas palavras do narrador e protagonista. “Voltávamos para o medo que nos esperava na superfície”. A resistência se instala muito cedo. A fuga como saída é vivência desde a infância.

As palavras mais fortes, ditas e com maior ênfase e paixão raivosa, sempre se referiam à mãe. “Odeio minha mãe”. A transição edípica não se fez plenamente, afetando seu relacionamento com a esposa. Enquanto andavam pela praia e ao ser confrontado com o fato de não demonstrar afeto, houve a segunda fuga (a primeira na cozinha) da tentativa de conversarem sobre o relacionamento desgastado. Mostrando a Ursa Maior (olhando para longe em plena fuga), é alvo de um desabafo exasperado, e diz: “Não é pessoal, não sei o que sinto por coisa nenhuma”… Mais tarde, Tom Wingo diz à analista que evita coisas dolorosas, para depois rir…

Sobre a transição edípica, entende-se a “representação inconsciente pela qual se exprime desejo sexual ou amoroso pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo do sexo oposto, fator importante para a elucidação das relações do ser humano com suas origens e sua genealogia familiar e histórica” (Derrida, J. & Roudinesco, E. (1994). De que amanhã… Diálogo. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2004). Durante o decorrer da trama, apoiada SEMPRE no complexo de Édipo – tanto para a irmã Savannah, quanto para ele, Tom, fatos advindos da transição mal resolvida do édipo vão se desenrolando em suas vidas. Para sobreviverem, adquirem outros mecanismos defensivos que geram confusão na identidade, personalidade e fluxo da vida.

Do encontro com a terapeuta da irmã em diante, toda trama narrada por Tom Wingo se dá a partir da entrevista de investigação sobre a irmã gêmea, produzindo, por consequência, fatos ligados à própria vida, até o desfecho de um relacionamento afetivo com a analista. Há uma transferência quase que imediata entre paciente e analista e, posteriormente uma contratransferência da analista para com o irmão da paciente. Completamente envolvida na história de Savannah, ela intervém sempre no sentido de focar nesse ponto, enquanto Tom tenta escapar para alguma distração. O que se passa nos momentos de relatos sobre ela, pode ser tomado como uma sessão analítica na qual as memórias e entendimentos ressurgem sem maiores distorções, apesar das tentativas de escondê-los.

A vivência com pais instáveis e a violência doméstica constante lhe renderam uma autoestima fraca, em sua compreensão, “um garoto educado do Sul que sempre obedecia, responsável, normal, um banana”. Ao ser interpelado se sabia de um fato desencadeador do desejo de morte da irmã, insere o nome do marido da analista, Herbert Woodruff: “Toca uma rabeca e tanto”, a resistência se manifestando em forma de chistes (aqui como cinismo). A “alegria, performance” encobrindo o caos, o feio e o desagradável. Vários episódios de humor ácido são apresentados, como no do diálogo abaixo:

… “Laila Wingo não merece a confiança de Savannah”

(Analista) – “Sua confiança, quer dizer”

… (Tom) – “Desculpe, contei a história errada, esqueça… lembrarei uma melhor”. (Analista) – “O que o incomoda”?

– (Tom) “O efeito estufa, a chuva ácida, a dívida pública… e minha mulher que está tendo um caso com o cirurgião. Eu me sinto um idiota. Nem sabia o que estava havendo” …

Na sequência de palavras, uma cadeia significante: estufa, ácida, dívida. Uma concatenação de pensamentos, linguagem figurada (significada) respondendo à provocação: “O que o incomoda”? ISSO, um mecanismo de defesa chamado negação. A base desse mecanismo é a tendência a negar fatos dolorosos, por entender que não consegue lidar com os mesmos, o que está ligado ao princípio do prazer. Seguindo as palavras, chega à traição da esposa. O diálogo segue.

(Analista) – “Talvez não tenha prestado atenção”.

(Tom) – “Besteira!” … “Pensemos isso, que a mulher é mais perversa que o homem. Vocês (incluindo a analista, já em franca transferência) sabem dissimular, manter segredo (referindo inconscientemente ou até conscientemente sobre o segredo que a mãe lhe “obriga” a carregar), mentem sorrindo e esperam que o homem seja uma torre sólida (falo), quando ele tem algumas fraquezas, inseguranças, vocês simplesmente o traem, maldição! ”

Intervenção:

– “Então se sente traído por sua mãe? ”

– “Estou falando da minha mulher! ”

– “ODEIO ESSA MERDA FREUDIANA”.

– “Sua função aqui não é ouvir meus problemas, vou embora”…

Uma sessão analítica rica de paixão. Uma criança oferecendo suas fezes à mãe (Analista). A paixão negativa pela mãe projetada nas “mulheres”.

Passo a narrar a riqueza do discurso de elaboração da sessão analítica que ocorre no Táxi.
– “Maldita analista! ” “Quem eu estava iludindo? ” …

“Eu era campeão em guardar segredos, melhor que qualquer mulher (mais uma vez “mulher”) até que aparece Suzana Loweinstein” …

“Um homem que não falava, agora não faz outra coisa além disso” …

Esse resultado demonstra o que diz Rui Aragão em “A Entrevista Clínica Psicanalítica”, ao mencionar o que provoca a relação analista/paciente.

No referencial psicanalítico, a entrevista assume-se essencialmente pelo estabelecimento da relação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo da atividade mental, indo, portanto, muito além da mera e sempre importante partilha de informação”. A construção da relação exprime uma parte da atividade intrapsíquica de ambos, entrevistador e entrevistado, com realidades inconscientes, a natureza conflitual e os processos de mudança e de resistência inerentes (ARAGÃO, 2010).

Loweinstein consegue, na construção da relação com Tom, esse desfecho se dá de tal forma que a partir desse encontro, Tom busca a mãe para avisá-la que vai falar.  A análise traz o paciente para um “lugar de desconforto” pelo confronto ao tocar no quesito emocional que fará contato com o recalcado. A pergunta: – “O que o incomoda”? funciona como um alfinete que fura um balão e todo ar represado escapa num estouro libertador.

Outra sessão maravilhosamente rica ocorre quando o protagonista descobre que Renata Halpern é o nome falso da irmã gêmea. A mistura de transferências e paixões se constitui um duelo de titãs no qual ninguém é mais forte. Ao contrário, as dores e fragilidades se confundem unindo ainda mais analista e analisando, de uma maneira um tanto hollywoodiana, mas digna de menção. A chave é a aceitação da provocação do analisando pela analista, contratransferindo no setting. Para tentar explicar o porquê de não ter mencionado o fato a ele, é como se segue:

(Analista) – “Savannah fingia ser judia. O pai, segundo ela, um peleteiro que sobreviveu ao holocausto.

Tom – “A que ela está tentando sobreviver”?

(Analista) – “Ela queria ser outra pessoa”.

Tom – FODA-SE VOCE, FREUD E RENATA HALPERN!

(Analista) -“Como quer que eu reaja”?

Tom -“E se fosse com seu filho”?

(Analista) – “Não é a mesma coisa”!

Tom – “Vou mudar o nome dele”!

(Analista) – “Ele não tentou se matar”!

Tom – “É só dar tempo a ele”!

(Analista) – “Seu filho da puta”! (Algo voa e machuca Tom).

Os efeitos do processo analítico têm resultado singular, vivido a partir da transferência, no qual o inconsciente do analisando e analista estão colocados em ato. O inconsciente do analista pode e, às vezes, é acionado devolvendo ao analisando o afetamento de forma violenta, forte, presente, atuante, como é o caso de Loweinstein (contratransferindo).

A essa altura, Samanntah se torna um pano de fundo para a grande revelação: O abuso sofrido pela família, o choro pelo irmão “endeusado” que se torna apenas um irmão que soube exteriorizar os traumas canalizando-os para a ação, se protegendo e tentando proteger os irmãos. Depois desse diálogo eivado de paixões próprias, o analisando, ao perceber a humanidade da analista, se liberta: o choro contido rola solto, livre e libertador. Nesse momento, no ápice da terapia, ambos chegam ao âmago do problema, partindo para o ato propriamente dito. Paciente é conduzido ao choro, à vazão da dor retida por anos.

Os acontecimentos posteriores não dizem respeito ao objetivo deste texto. Fica evidenciado no filme que a entrevista psicanalítica, diferenciada pela inclusão de processos inconscientes, portanto da dinâmica mental, oferece ao analisando e ao analista oportunidades de interação quase impostas, uma vez que ambos reproduzem comportamentos “ditados” por este na práxis psicanalítica. Como bem colocou Freud, “Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, se convence que os mortais não podem ocultar nenhum segredo”.

REFERÊNCIAS:

ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998;

OLIVEIRA, Rui Aragão – A Entrevista Psicanalítica. Revista Portuguesa de Psicanálise 01/2010; Fonte: http://www.researchgate.net/publication/216423730_A_entrevista_clnica_psicanaltica, acessado em 14.05.2014.

FREUD, Ana. O Ego e os Mecanismos de Defesa. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 3ª Edição, 1974.

Derrida, J. & Roudinesco, E. (1994). De que amanhã… Diálogo. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2004.

FICHA TÉCNICA

O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Gênero: Drama
Direção: Barbra Streisand
Roteiro: Jay Presson Allen, Pat Conroy
Elenco: Barbra Streisand, Blythe Danner, Brad Sullivan, George Carlin, Jason Gould, JeroenKrabbé, Kate Nelligan, Melinda Dillon, Nick Nolte
Produção: Andrew S. Karsch, Barbra Streisand, CisCorman
Fotografia: Stephen Goldblatt
Trilha Sonora: James Newton Howard
Ano: 1991