Selma: é preciso acreditar, agir e seguir em frente!

Com duas indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Canção Original

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.
Martin Luther King

 

“Selma” (2014), dirigido pela cineasta norte-americana Ava DuVernay, teve a difícil missão de retratar, num curto espaço de tempo, o ápice da vida de um dos mais proeminentes atividades de direitos humanos do século passado, o pastor protestante e Prêmio Nobel da Paz Martin Luther King.

O longa mostra toda a movimentação em torno da marcha que ocorreu entre a cidade de Selma, no Alabama, até a capital do Estado, Montgomery, em março de 1965, como forma de protestar contra o tratamento que os negros recebiam na região. A pequena cidade acabaria por se tornar palco de um desfecho político que mudou os rumos das relações sociais nos Estados Unidos, à época ainda fortemente marcada pela segregação racial, onde os afro-americanos – notadamente nos estados do Sul – não podiam exercer todos os seus direitos, como o de votar, por exemplo.

Para além do mito que se tornou Luther King, DuVernay mostra um homem às voltas com questões triviais relativas ao seu relacionamento conjugal, alguém que, com frequência, recorre à fé para tentar superar obstáculos que, à primeira vista, parecem intransponíveis. Ao mesmo tempo, “Selma” mostra um Martin Luther King gigante quando instado a subir num púlpito ou num palco; retrata um personagem histórico que conseguiu mobilizar boa parte da nação em torno de um objetivo comum, que era a igualdade de direitos entre todos os norte-americanos.

 

 

O filme mostra como os negros conseguiram, com calma e perseverança, assegurar direitos que sempre lhe foram injustamente negados. É necessário apontar que este é um tema ainda em aberto, sobretudo com as recentes tensões entre populações negras e policiais brancos, em várias cidades dos EUA. Certamente, sem aqueles primeiros e importantes passos dos anos 60, a nação mais poderosa do mundo não teria protagonizado, no século atual, a eleição e reeleição do primeiro presidente negro do país.

 

Com diálogos profundos, que evocam a esperança, a política e as incoerências de uma sociedade mergulhada em grande efervescência (Lyndon Johnson acabara de vencer as eleições com amplo apoio popular, mas estava acuado diante da possibilidade de conduzir mudanças radicais na “América profunda”), os atores David Oyelowo (Luther King) e Carmen Ejogo (que interpretou Coretta Scott King, esposa do ativista) fazem toda a diferença. Eles encarnaram como ninguém as expressões de sofrimento, expectativas (frustradas e superadas), medos, sonhos e, sobretudo, muita bravura, num enlace que dificilmente deixará o expectador apático.

No mais, “Selma” representa um momento de “amadurecimento” da Modernidade, época marcada por totalitarismos, guerras sangrentas e os primeiros genocídios de que se tem notícia na história, com destaque para o ocorrido ao povo armênio na Primeira Guerra (recentemente reconhecido e lembrado pelo Papa Francisco) e o dos judeus na Segunda Guerra (no holocausto patrocinado pelos nazistas). O próprio Martin Luther King, fruto intelectual da abordagem pragmática nascente, se materializa como o auge de um modo de ver a vida em constante oposição ao conservadorismo insistente.

 

 

Influenciado pelo filósofo Willian du Bois e com uma fé inabalável nas Escrituras Sagradas, Luther King aspirava uma vida mais ampla e mais plena para os negros, depois de séculos de servidão e humilhação. Para isso, “era necessário acreditar na possibilidade do progresso” e rechaçar qualquer caminho que optasse pelo viés da violência. A “trincheira” teria que ser apenas através da oratória, do poder de mobilização social e do enfretamento ideológico, numa abordagem de constante diálogo. Como pregava o pragmatismo, se se perdesse essa crença [de que era possível aspirar uma vida melhor], o resultado era “uma espécie de morte, com uma existência sem desenvolvimento”. É neste sentido que Martin Luther King acreditava na vida, por mais que as intempéries se mostrassem invariavelmente mais sufocantes.

“Selma” aproxima os conceitos da pragmática com os da filosofia clássica de Aristóteles e sua abordagem sobre a eudaimonia, para quem “a felicidade é um fim ético”, cuja aspiração surge do âmago do ser humano. Sobre este tema e em referência a Aristóteles, a filósofa Marilena Chauí escreveu

A felicidade é a vida plenamente realizada em sua excelência máxima. Por isso não é alcançável imediata nem definitivamente, mas é um exercício cotidiano que a alma realiza durante toda a vida. A felicidade é, pois, a atualização das potências da alma humana de acordo com sua excelência mais completa, a racionalidade. (CHAUÍ, 2002)

É difícil não associar esta visão com o pragmatismo de Du Bois e a militância de Martin Luther King. Eles denunciaram a estreita ligação entre a criminalidade e a falta de incentivo à educação e à renda, bases para o desenvolvimento intelectual e financeiro. Estes eram bens que, decididamente, os negros americanos não usufruíam naqueles agitados anos 60. Desta forma, o movimento pela igualdade se baseou na premissa de que além de questionar “os nossos pensamentos e crenças, [era necessário alçar] as implicações práticas deles”.

 

 

Por fim, Luther King tinha a real dimensão da força política e histórica de sua luta. Mesmo num clima de insegurança, não se furtou a perseguir o maior de seus sonhos. Acabou por cunhar na própria vida duas das frases que melhor o definem: “Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje, mas continue em frente de qualquer jeito”, e “O homem que não está disposto a morrer por uma causa não é digno de viver”.

 

 

Ausência de rabino

“Selma” foi bastante elogiado pelo rigor histórico, pela direção e pela atuação do elenco. Mas sofreu críticas por não mostrar um dos principais apoiadores da causa liderada por Luther King, o rabino, teólogo, ativista social e místico Abraham Heschel. E parte da comunidade judaica americana não gostou desta ausência.

De acordo com a jornalista norte-americana Leida Snow, “os judeus se envolveram fortemente no movimento pelos direitos civis. O rabino Heschel, um dos principais líderes religiosos dos EUA no século 20, foi um dos apoiadores de King e caminhou na marcha ao lado dele, a menos de 1m de distância”. A filha de Heschel, Susannah, teria ficado chocada com a ausência da representação de seu pai no filme: “A foto em que ambos marcham juntos correu o mundo. O presidente Obama me disse: ‘Seu pai é um herói, todos conhecem essa foto’ […] A omissão é trágica e injustificável”, disse ela ao site Allgemeiner.

De acordo com Susannah, “a marcha não foi apenas um protesto político, teve também um caráter profundamente religioso, unindo padres, freiras, pastores, rabinos, negros e brancos de todo o país”.

“Selma”, no entanto, destacou apenas um arcebispo da Igreja Ortodoxa, um ministro da Igreja Batista e um ministro do Unitário-Universalismo. A diretora Ava DuVernay escolheu atores com características físicas semelhantes às dos personagens históricos. Não há em “Selma” ninguém remotamente parecido com Heschel. 50 anos depois, o rabino – e os judeus – não foram “convidados” a participar. No entanto, defende a comunidade judaica americana, “o apoio judaico a King foi muito além da presença de Heschel na Marcha no Alabama. Em 1963, Arnie Aronson, fundador da Leadership Conference on Civil Rights, foi o planejador da Marcha sobre Washington, na qual o rabino Uri Miller recitou a oração de abertura e o rabino Joachim Prinz falou, antes do histórico discurso de King, ‘Eu tenho um sonho’”. (Com informações da Conib).

 

RERERÊNCIAS:

CHAUI, M. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. Vol. 1. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

Filme “Selma” ignora apoio judaico e presença do rabino Heschel. Disponível em <http://www.ogirassol.com.br/viver/filme-selma-ignora-apoio-judaico-e-presenca-do-rabino-heschel-> – Acessado em 11/04/2015.

ASSISTA O TRAILER


FICHA TÉCNICA 

SELMA


Dirigido por Ava DuVernay
Duração: 128 minutos
Classificação:  Não recomendado para menores de 14 anos
Gênero: Drama – História
Países de Origem: Estados Unidos da América, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
Ano produção: 2014

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.