“A “obesidade” é vista como comorbidade para a COVID-19 mesmo quando não há outros indicadores em saúde que demonstrem fragilidades. Nesse sentido, o estigma de ser gorda e estar com Covid-19 representa uma sentença de morte eminente na visão das pessoas ao redor dessas mulheres”.
O Portal (En)Cena entrevista a psicóloga Isaura de Bortoli Rossatto, egressa do Ceulp/Ulbra, residente em Saúde da Família e Comunidade pela Fundação Escola de Saúde Pública (FESP) para compreender o que significa ser mulher no Brasil na pandemia pelo olhar da jovem profissional que estuda e escreve sobre a saúde mental das mulheres gordas.
No curso da sua fala, Isaura também explica os impactos da pandemia no fazer do profissional de psicologia, apontando as adaptações normativas promovidas pelo Conselho Federal de Psicologia que ampliaram as autorizações para atendimento online e realização de avaliação psicológica online e destacando os desafios enfrentados pelas profissionais que ingressam no mercado de trabalho, especialmente durante a pandemia.
(En)Cena – Considerando o seu lugar de fala, mulher, jovem, psicóloga e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID-19?
Isaura Rossatto – Considerando minha recente atuação como psicóloga na atenção primária e antes, como estagiária, percebi alguns acréscimos nas dificuldades que as mulheres enfrentam no dia a dia em razão da pandemia. Não é incomum deparar-se com relatos de mães precisando se desdobrar em mais uma jornada de atividades no auxílio das atividades escolares dos filhos. Mães chefes de família com dificuldades em encontrar emprego, dependendo fortemente do auxílio emergencial proposto pelo governo federal, que tende a decrescer como consequência da prolongada ineficácia das políticas de isolamento social. Ou mesmo, dificuldades nos aspectos relacionais com pares devido à convivência aumentada com o isolamento e home office. Nesse sentido, vejo impactos nos aspectos relacionais, sociais, de trabalho e renda. Algumas dessas dificuldades perpassam a população coletivamente, outras são exclusivas da condição feminina na nossa sociedade.
(En)Cena – Durante o seu tempo de trabalho na revista (En)Cena você produziu trabalhos muito elogiados sobre a perspectiva da “mulher gorda”. Levando em conta há diversas divulgações na mídia e nas redes sociais acerca de indicadores de que apontam a obesidade como fator de risco para complicações da COVID-19, como você entende o sofrimento emocional da mulher gorda durante a pandemia?
Isaura Rossatto – Muitas reflexões acerca desse tema podem ser extraídas. Vou me ater especialmente à minha percepção e aos relatos comuns referentes às experiências das mulheres gordas em saúde. Mesmo antes da pandemia, precisar de suporte médico e de outros profissionais da saúde já era um problema para muitas mulheres gordas. Como consequência da gordofobia, a vivência da culpabilização, a implementação do medo como estratégia de combate à gordura e a violência verbal são parte de muitas experiências de mulheres gordas no acompanhamento com profissionais de saúde. A “obesidade” é vista como comorbidade para a COVID-19 mesmo quando não há outros indicadores em saúde que demonstrem fragilidades. Nesse sentido, o estigma de ser gorda e estar com Covid-19 representa uma sentença de morte eminente na visão das pessoas ao redor dessas mulheres. Ademais, não há garantias de que se uma escolha entre vidas precise ser feita, seja por escassez de vagas ou recursos, uma pessoa magra seja priorizada por ser vista como mais saudável em razão do seu peso (como já ocorre socialmente). O sentimento é essencialmente de pânico, pois se infectar e sofrer com um quadro agravado será percebido como inteira responsabilidade da mulher gorda, como se ela merecesse esse sofrimento por ser gorda.
A humanização do acesso à saúde para pessoas gordas é uma problemática muito complexa que precisa ser abordada com emergência. A gordofobia promove a perda de direitos pela exclusão, e o direito à saúde tem sido um deles, com o afastamento progressivo dessas pessoas da rede de atenção.
(En)Cena – Como psicóloga formada em 2020, qual sua perspectiva diante do mercado de trabalho tão modificado e adaptado pela pandemia com a possibilidade de atendimentos online e com a abertura para a aplicação de alguns testes psicológicos por meio virtual?
Isaura Rossatto – Na minha visão, o mercado de trabalho atual apresenta desafios para os psicólogos principalmente no que tange ao piso salarial, amplamente ignorado. Os salários podem não corresponder ao volume de trabalho, especialmente no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e pelo Sistema Único de Saúde (SUS), bem como os pagamentos vinculados a atendimentos por planos de saúde, que chegam a R$ 30,00 por atendimento.
Na minha percepção, os atendimentos online e a flexibilização do Conselho Federal de Psicologia (CFP) no cadastro para tanto são um avanço. Essa modalidade demanda, sim, por muitas vezes, de mais criatividade e flexibilidade do profissional e especialmente dos clientes/pacientes; porém, não perde na qualidade do processo terapêutico com adultos quando há comprimento de ambas as partes. Se antes, os atendimentos online já eram uma tendência, atualmente são quase uma habilidade fundamental a ser desenvolvida pelos profissionais.
(En)Cena – Na sua opinião, quais os desafios mais importantes da psicóloga (o) que trabalha durante a pandemia? E como as faculdades de psicologia e os conselhos de regulamentação profissional podem colaborar na preparação de profissionais para os novos desafios?
Isaura Rossatto – O próprio desenvolvimento da habilidade para atendimentos online é um desafio, assim como o risco de contaminação para os profissionais trabalhando presencialmente. Para quem deve (ou deveria) desenvolver atividades comunitárias coletivas o desafio é dobrado. Vejo a articulação multiprofissional, as atividades online e a co-contrução intersubjetiva de soluções como as ferramentas para enfrentar esses desafios.
Nesse sentido, as instituições de ensino superior e os conselhos reguladores podem oferecer oficinas sobre como realizar atendimentos online individuais e coletivos, evolução de prontuários e guarda de documentos de maneira ética durante a pandemia.
(En)Cena – Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?
Isaura Rossatto – Muitas respostas poderiam ser dadas, especialmente sobre as condições em que as mulheres encontram-se em nossa sociedade machista, misógina, gordofóbica e desigual. Vou desenvolver minha resposta em como acredito que os psicólogos podem dar suporte e promover saúde para mulheres nas condições das respostas anteriores. Não devemos ignorar as disparidades entre os gêneros que precarizam a saúde das mulheres, por serem mulheres. Seja a exaustão por jornadas triplas de trabalho no emprego e no lar, os salários inferiores aos masculinos e a desumanização das mulheres gordas no acesso a saúde. A sensibilidade é necessária, assim como a indignação e a recusa à docilização dessas demandas sociais como se fossem desvios individuais; além do estudo, imprescindível para instrumentalização do trabalho com demandas tão complexas. O conhecimento acerca do fluxo entre os serviços da rede de saúde, para oferecer assistência para pessoas em situação de vulnerabilidade é outro aspecto fundamental. Com essas medidas, talvez seja possível contribuir para um caminho mais digno para as mulheres durante e no pós-pandemia, quando pudermos vislumbrar isso.