Professora narra sua história e conta sobre os conflitos com intelectuais que não aceitaram a fusão de crenças cristãs e indígenas.
Em visita à Aldeia Xerente Salto localizada no município de Tocantínia – TO, o (En)Cena entrevista a professora Maria Helena Kubasi, graduada em Educação Intercultural pelo Núcleo de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Goiás, e expoente na pesquisa e estudo da história Xerente. Maria Helena realiza pesquisas sobre a ciência indígena e possui várias publicações, entre elas um livro sobre a relação dos Xerente com o Dono da Água, espírito responsável por conceder o uso da água aos indígenas.
Na entrevista a professora narra sua história e conta sobre os conflitos com intelectuais que não aceitaram a fusão de crenças cristãs e indígenas. Maria Helena descreve também as diferenças entre a educação Xerente e a não-indígena, destacando a importância do respeito à cultura.
(En)Cena – Como começou seu interesse pelo estudo de História?
Maria Helena- Quando eu era menina, acho que eu tinha uns 8 anos, meu pai e minha mãe moraram comigo em uma fazenda, lá aprendi a falar português. Nessa fazenda, tem uma senhora que falava pra mim “Estudar é bom. Um dia você vai trabalhar você vai ajudar seu povo”. Era uma não-indígena. Aí eu entrei na escola, ela me colocou pra estudar, e lá fui alfabetizada. Desde criança eu queria ser uma enfermeira, igual ela falava pra mim. Depois eu mudei, e fui escolhida para ser professora, mas eu sempre tinha esse pensamento de um dia estudar e trabalhar com o meu povo. Então eu sabia que Waptokwá Zawre (Deus sol), já tinha me escolhido para eu ser essa pessoa. Já veio dentro de mim. E aí, eu pensei, eu vou fazer História, pra estudar a minha cultura e a cultura de não-indígenas. Aprendi a pesquisar, aprendi a amar meu povo. Porque quando eu tinha 25 anos, eu não queria ser índia, eu queria trabalhar, queria falar bem, queria morar na cidade. Igualmente, eu morei muitos anos na cidade, só que agora eu estou aqui, agora tenho outra visão. Amo minha cultura, e procuro amar muito mesmo. Respeitar, não só amar, e ajudar meu povo.
(En)Cena – Como o povo Xerente se sente quando os não-indígenas vêm para a Aldeia?
Maria Helena- O povo Xerente se sente, quando o povo de fora vem, igualmente o Professor (Rogério Marquezan) que pesquisou aqui, se sente muito alegre. Esperam, quando o Cacique anuncia, como agora a pouco anunciou a vinda de vocês, fica todo mundo ansioso para descobrir quem vai ser, quem vai vir, quem são as pessoas que o Professor vai trazer. Porque o Professor, todo mundo já conhece. Mas é muito bom. A comunidade Xerente recebe bem, e não tem essa diferença, “não, esses que chegaram não é akwen (Xerente)”, não falam assim. Porque vêm com uma pessoa que já conviveu aqui.
(En)Cena – Quando você decidiu pelo estudo, houve conflito entre as crenças Xerente e as crenças não-indígenas?
Maria Helena- Teve momentos de conflito com os professores, pois sou evangélica, sou da Batista, e aí sim, tem uns professores que falaram para nós “por que a gente era aquilo?”, que a gente já tinha nossa religião. A gente tem sim a nossa religião, só que ela bate com a evangélica, e eu falava que tudo é igual. Porque o Waptokwá Zawre, na nossa história Deus subiu, igualmente, para os evangélicos na Bíblia está escrito. Falei para ela. “Ah, mas eu não acredito”, daí eu respondi, “Pois se a senhora não acredita, doutora, eu acredito e estou aqui!”. E tem mais, eu procurei com meu pai e minha mãe, principalmente meu pai fala, para respeitar a cultura do outro, a religião. Então pra mim se a professora fala isso, é ela que está falando, mas eu respeito. Então teve sim, inclusive até o pastor Silvino, o Sinval, todos nós éramos evangélicos e estudávamos lá, e aí vários professores falaram para nós, “Por que é evangélico?”. Mas eu achei bom, porque antes quando era catolicismo fazia muita festa, os Akwen acreditavam muito nos santos, que até hoje tem aqui, tem uma ali. Mas quando a evangelização entrou, voltou igual antigamente. Antigamente não tinha festa, só festa de dentro da cultura, mas festa que não é do não-indígena. Festejar santo não tinha. Então, pra mim foi uma coisa que bateu, aí a gente sempre dizia isso. Quando veio um professor que tem uma tese, me falou daquele jeito, eu falei “poxa”. A gente respeita sim, mas bateu, sempre estará andando lado a lado com a nossa cultura. Eles não proíbem a gente de pintar (o corpo), de dançar, de tirar a blusa, nem nada disso. Inclusive eles ensinam o melhor caminho para nós, igual à antigamente. Quem era bom, chegava no céu, quem não era bom tinha um pássaro para comer, ou ia cair na água e ser comido por um peixão, pois tinha muito pecado. Então eu acredito.
(En)Cena – Como se dá o relacionamento entre os Clãs dentro da Aldeia?
Maria Helena- Isso é muito importante. Você que pintou (apontando para as pinturas que tínhamos acabado de fazer nos braços, com os símbolos de diferentes clãs), tem que respeitar aquele outro clã que é dessa listrinha. Você respeita e ela te respeita, se ela está falando você não fala. Quando ela acaba de falar, você entra, e assim é a cultura. Nas reuniões, um clã levanta, fala, fala, fala, e o outro não interrompe. Aí acaba de falar, o outro vai e fala, e é assim, é por clã. Mas com respeito também. Às vezes tem uns jovens que não respeitam, mas é muito bonito, o pessoal respeita muito. Não é igual quem convive muito na cidade, até numa sala de aula é diferente. Não é igual os não-indígenas, que quando alguém fala é “aaaaaaa”, aí fala os dois. Não é assim, aqui é diferente (risos). Eu ensinei os meus alunos, e eles aprenderam. Aí um dia a coordenadora chegou lá e falou assim “Por que as crianças estão quietinhas?”, aí eu falei, “Agora é do meu jeito, não briguei, eu ensinei eles a ouvir”. E aí a coordenadora ficou tão surpresa. Lá nem tinha mais barulho. Meu maior desejo era voltar pra aldeia e trabalhar aqui. Aí eu pedi a transferência, vim pra cá, e hoje estou aqui, muito feliz.
(En)Cena – Hoje você tem a oportunidade de ensinar as crianças daqui?
Maria Helena- A tarde eu trabalho com crianças de 4° ano, e à noite com a EJA, 8° e 9° ano. Eu ensino as crianças, falo sobre os clãs, aí eles conhecem os parentes. Digamos se você vê aquela ali (com a pintura diferente), você vê que não é seu parente. Se você ver alguém com mesma pintura, você sabe “essa aí é da mesma partida”. Aí você pode ir cumprimentar, “oi, tudo bem?”, mas de outra partida não, pode ir lá também, mas com respeito. As crianças se conhecem pela pintura. Quando eu estudei, chegou lá um rapaz, eu não sabia que era meu parente, mas quando ele se pintou, eu falei “olha, você é meu parente!”, aí nos conhecemos. Eu posso ir lá ao Brejo Comprido, muito longe, não sei quem são, mas se eu ver: meu parente!