A população indígena no Brasil sempre lutou para preservar cultura, crenças e valores. O uso de plantas das florestas e até mesmo “benzimentos” são conhecimentos ancestrais, que os povos indígenas adotaram para curar doenças e são curiosidades até mesmo para a ciência secular.
A saúde mental em contexto indígena é um desafio para o Sistema de Saúde Pública no Brasil (SUS). Mesmo com uma forte influência espiritual, os povos indígenas apresentam carências de atendimento preventivo e humanizado no tratamento de casos de uso e abuso de substâncias e até mesmo suicídios.
Nos dias 4 a 7 de setembro de 2014, na cidade de Manaus(AM), o IV Congresso Brasileiro de Saúde Mental (ABRASME) – “Navegando pelos rios da Saúde Mental da Amazônia: Diversidades culturais, saberes e fazeres do Brasil” – promoverá debates, para futuras ações concretas, com a intenção de potencializar os estudos e estratégias em saúde mental e a valorização das formas tradicionais de atenção à saúde presentes na diversidade cultural.
Para entender um pouco mais a problemática que vem afetando na saúde em contexto indígena, o (En)Cena, entrevistou o psicólogo, Marcelo Pimentel Abdala Costa, 37, que trabalha com o Programa de Atenção em Saúde Mental no Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro(AM).
Marcelo Abdala e Cacique Raoni, durante a V Conferência Nacional Saúde indígena em Brasília/DF – dezembro 2013 – Foto: Acervo Pessoal
Psicólogo, poeta e autor de produções científicas – destaque para o capítulo de um livro no âmbito da Terapia Comunitária Integrativa – Marcelo Abdala, acumula conhecimento e vivências nas culturas indígenas. O psicólogo lamenta a falta de conhecimento por parte da sociedade sobre as formas de viver indígenas, relata casos de cura por plantas medicinais, ainda, conta detalhes de crenças espirituais e comenta sobre os recentes casos de suicídio em aldeias na Ilha do Bananal (TO).
(En)Cena – O IV Congresso Brasileiro de Saúde Mental (ABRASME) tem como tema “Navegando pelos rios da Saúde Mental da Amazônia: Diversidades culturais, saberes e fazeres do Brasil”. O que o senhor espera de conquistas pelo evento?
Marcelo Abdala – Fico feliz de estar participando mais uma vez da Comissão de Organização do Congresso e, sobretudo, de ser responsável pela discussão indígena.
Um dos eixos temáticos, que tive a oportunidade de escrever, problematiza ‘Saúde Mental no Contexto Indígena’ e, tem como proposta promover um diálogo entre a saúde mental e a saúde indígena, abordando questões conceituais como a utilização do termo ‘saúde mental indígena’ e a reflexão sobre sofrimento psíquico e a Atenção Psicossocial neste contexto. Desejamos refletir, ainda, sobre a atuação da psicologia no contexto indígena, uso de medicamentos psicotrópicos, possibilidade de atender a alteridade indígena nos serviços de referência – CAPS, Pontos de Atenção, Hospitais e Hospitais Psiquiátricos – e problematizar categorias médico-psiquiátricas, tidas como universais, como relativas e culturais. Destaca-se a relação do processo saúde/doença propondo diálogo entre formas diferentes de atenção à saúde (tradicional x científica) e o trabalho dos profissionais de Saúde Indígena a partir do Programa de Atenção à Saúde Mental em diferentes Distritos Sanitários (DSEI´s), do país, instituídos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS).
(En)Cena – Quando e o que motivou o senhor a trabalhar saúde mental com indígenas?
Marcelo Abdala – O contato que tive com os povos indígenas teve início no Estado do Ceará, a partir de 2009, quando tive a oportunidade de trabalhar no Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária (Projeto 4 Varas) e em Movimento de Saúde Mental Comunitária. Considerando a minha história de vida, a partir do trabalho voluntário em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em diferentes Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) até em um Projeto de Formação de Lideranças Indígenas… O que me motivou a trabalhar com o tema da saúde mental em contexto indígena, foram os olhares diferentes sobre o mundo e formas tradicionais de cuidado que não as que estamos acostumados. Para mim, benzimento, ‘pajelança’, uso de plantas, ervas e raízes e todo um conjunto de instrumentos ritualísticos para a atenção e o cuidado constituem, também, formas legítimas de se cuidar da saúde e por isso devem ser integradas, reconhecidas e valorizadas.
(En)Cena – Como é a aceitação e conhecimento por parte dos indígenas com as equipes de saúde mental? Existe alguma dificuldade para aceitar os programas de saúde pública?
Marcelo Abdala – Quando cheguei no Rio Negro (AM), havia desconhecimento do que era o trabalho do profissional de psicologia e das ações referentes ao Programa de Saúde Mental. Todavia, ao contextualizarmos a prática e sua diferença em relação às atividades de outros profissionais, ela tem sido aceita, sobretudo, porque escuta os olhares, respeita as diferentes culturas e reconhece o processo de saúde e doença de cada povo.
Reunião de Conselho distrital de saúde indígena na aldeia
Foto: Acervo Pessoal
(En)Cena – Devido distância das aldeias indígenas dos centros urbanos, quais são as estratégias das equipes de saúde da família em atendimento a saúde mental indígena?
Marcelo Abdala – O que especifica a Saúde Indígena – e a diferencia de outra estratégia – é exatamente chegar até à pessoa indígena em lugares de muito difícil acesso. As equipes se deslocam de ‘voadeira’, avião, ‘rabeta’ e algumas vezes caminham na mata para acessar outros povos que residem no interior da floresta. Em relação ao que chamo de ‘Saúde Mental em Contexto Indígena’, as diferentes equipes procuram realizar rodas de conversa, com orientação do profissional de psicologia, notificar situações de violência, suicídio e tentativa de suicídio e acompanhar usuários de medicação psicotrópica. Todavia, a estratégia que mais se aproxima das diferentes complexidades é a compreensão de diferentes práticas indígenas e o trabalho conjunto com os cuidadores tradicionais.
(En)Cena – Há uma prática de saúde mental especificamente indígena em sua área de trabalho, ou podemos pensar o conceito de saúde mental para os mesmos parâmetros da população em geral?
Marcelo Abdala – Não podemos pensar em ‘saúde mental em contexto indígena’ tal como pensamos em saúde mental para a população em geral. Os modelos e representações de mundo, de humanidade, pessoa, animal, espírito, como disse, são diferentes para cada povo e, sobretudo para a população em geral, que se baseia, por sua vez, em um modelo biomédico, considerando a sociedade capitalista e tardo moderna. O que consideramos como prática de ‘saúde mental em contexto indígena’, constitui tudo aquilo que , segundo as tradições, crenças e valores indígenas, promovem ‘integração’ e é estruturante para o povo. Por exemplo: Poderíamos considerar como uma prática de saúde mental em contexto indígena um ritual de passagem, uma prática ‘xamânica’, o benzimento da criança que lhe confere um nome e proteção durante à vida, ou mesmo, uma associação de mulheres indígenas que produz artesanatos coletivamente.
(En)Cena – Como são percebidas questões altamente complexas como o sexo e adolescência na sua área de atuação?
Marcelo Abdala – Os jovens indígenas iniciam sua vida sexual “cedo”, de acordo com nossos parâmetros e costumes sociais. Para eles está no momento certo. É preciso entender que os povos indígenas possuem modos de organização social diferentes da sociedade moderna. Sendo assim, a iniciação à vida sexual acontece mais cedo do que acontece, talvez, hoje, com a sociedade envolvente. Todavia, a cultura dá as normas e sentido (referências), a partir dos ritos de passagem, que a personagem mulher deve concretizar. Muito diferente da sociedade tardo moderna que erotiza a infância com a moda e as propagandas. Na cidade, é um problema, porque tem outro sentido. Na aldeia, tem resguardo, reclusão, dieta alimentar e rito de passagem. A questão é simbólica. Adquire sentido. Não tem para os indígenas o mesmo sentido que tem para a sociedade não indígena. Essa é a questão.
(En)Cena – A Ilha do Bananal, no estado do Tocantins – considerada a maior ilha fluvial do mundo – tem características de povoamento indígena, e nos últimos anos foram registrados casos sucessivos de suicídio indígena, causando preocupação em certa parte da sociedade que tomou conhecimento do assunto. Diante disso, o senhor tem conhecimento desses relatos, e como seria o diagnóstico da situação e as primeiras estratégias de ação da saúde pública?
Marcelo Abdala – A questão do suicídio indígena, assim como a ‘alcoolização’ constituem problema grave entre a população indígena na contemporaneidade. E isto tem a ver como a sociedade tardo moderna se (des)estrutura hoje. Isso tem a ver com a RELAÇÃO entre o ‘branco’ e o indígena. No meu ponto de vista, chega a ser um paradoxo, a causa de “preocupação”, se pensarmos como a sociedade não indígena se vê, em relação à violência, ao consumo de álcool, à personagem adolescente, idoso, negro, indígena… Basta refletirmos sobre o que a sociedade pensa sobre as terras indígenas e modos de vida tradicionais. Isso, certamente, influencia o modo de vida de diferentes povos, inclusive o indígena. A sociedade em que vivemos é uma sociedade perversa, capitalista, individualista, canibal. O diferente, para eles – indígenas – não são eles mesmos. Somos nós, estrangeiros… O que o Estado realiza para dar conta de um mal que ele produziu foi criar, provavelmente, um sistema (Lei Arouca) que prevê atenção diferenciada aos povos indígenas. Ações concretas se definem em potencializar a cultura, crenças e valores que a história negou, e reforçar o que é positivo e que produz ‘saúde’, claro, a partir do ponto de vista do outro (indígena).
(En)Cena – Qual a relação entre espiritualidade e saúde mental indígena?
Marcelo Abdala – O conceito que construímos para ‘espiritualidade’ também é outro para os povos indígenas. É por isso que não uso o termo ‘saúde mental indígena’ e sim ‘saúde mental em contexto indígena’. Entretanto, ainda buscamos um termo que se aproxime das diferentes realidades culturais. Quero dizer, que não há essa conotação em nenhuma cosmologia indígena. Todavia, o ‘benzimento’, a ‘pajelança’, o ‘xamanismo’, o uso de substâncias psicoativas utilizadas pelos pajés, os espíritos, por promover saúde e tratar de doenças, tradicionais ou não, constituem, para nós, práticas de ‘saúde mental em contexto indígena’ e que portanto, devem ser valorizadas e reconhecidas, também como práticas de sua espiritualidade. Para os indígenas, os espíritos estão nos animais, nas plantas, na floresta. Para eles, a relação com os espíritos, é que vai determinar a possibilidade de ‘cura’ das doenças. A doença, provavelmente não existe no corpo, é causada por um espírito, por um feitiço, por um ‘estrago’. E a saúde também seguirá por aí.
(En)Cena – Sua vivência com terapia comunitária chegou além da técnica e da prática, o senhor usa dos artifícios da arte para expor a saúde mental e suas complexidades. No seu poema “A Terapia do Cotidiano”, o que o senhor espera transmitir para o leitor?
Marcelo Abdala – Antes de tudo, agradeço a leitura do poema! Preciso dizer que este poema está relacionado, precisamente, à metodologia da Terapia Comunitária enquanto lugar de encontro de pessoas, de humanidades. Falar das coisas da vida junto com os ‘outros’ constitui o que o título do poema nomeia: ‘A Terapia do Cotidiano”. Todavia, se pudéssemos transpor o motivo do poema para o tema da entrevista, poderia dizer que precisamos conviver com a diferença, conhecer os contextos, vivenciar a alteridade, reconhecer pontos de vista diferentes. No contexto indígena, precisamos vivenciar a relação, fazer “(…) o cotidiano com eles”, comer sua comida, tomar sua bebida, nadar no rio e ouvir suas histórias. É isso.
Reunião de responsáveis técnicos do Programa de Saúde Mental dos distritos sanitários especiais indígenas do Brasil – em Brasília – Foto: Acervo Pessoal
(En)Cena – Qual relato de tratamento da saúde mental indígena que o faz tornar inesquecível em toda a sua experiência?
Marcelo Abdala – Bom, considerando o uso de plantas, ou seja, a medicina tradicional como uma prática de saúde mental em contexto indígena, relato aqui a que ouvi esta semana de um enfermeiro. Trazia uma criança de dois meses de vida, quase sem vida. Faltava-lhe o sopro. Seu coração batia cada vez mais devagar. Ao pararem em outra aldeia, rapidamente uma senhora pegou uma folha e tirando a seiva dela, com uma seringa, deu para a criança beber. Espalhou um pouco no peito e no nariz. Em menos de 30 minutos a criança já dava sinais de vida que antes perdia. Em outra ocasião estávamos em uma aldeia realizando um Projeto de Saúde Mental para as populações indígenas. Numa noite, todos se reuniram em volta do fogo, velhos, crianças, mulheres, para relembrar as histórias, tomar o Caapi (conhecido popularmente como Ayahuasca). As mulheres cantavam as ‘lamentações’ em suas línguas, falando do amor de uma indígena por um ‘branco’. Encorajavam, seus filhos, a beberem o Caapi, por se tratar de bebida de conhecimento. O mais velho, benzia o cigarro e contava as histórias sobre a origem da humanidade, do mundo, das doenças, da vida…
(En)Cena – Na sua opinião, qual a perspectiva do futuro da saúde mental indígena?
Marcelo Abdala – Atualmente, o tema da ‘saúde mental em contexto indígena’ tem sido discutido amplamente em Conselhos Regionais de Psicologia, em encontros regionais e agora em um Congresso Brasileiro de Saúde Mental, não por acaso, mas no Norte do País. Espero que a partir daqui, possamos ampliar nossa visão de mundos e agregar outras práticas não convencionais de cuidado e atenção à saúde. Para isso, precisamos compreender, nós todos, que terra, planta, rio e peixe, maloca, fumaça e espírito, também é saúde mental!
“A Terapia do Cotidiano”
Farei meu cotidiano com eles,
Nossa terapia comunitária.
Se não houver cadeiras,
Usaremos tijolos.
Se não houver salas,
Sentaremos à beira do riacho,
Debaixo de uma mangueira…
Trataremos apenas do possível, sem segredos.
Falaremos de coisas simples,
Do nosso dia-a-dia.
A noite mal dormida,
Um amor que partiu,
Um sonho que não se realizou…
Cantaremos juntos, nossas cantigas,
Aquelas que ouvimos desde criança,
Ou aquelas que encantam os nossos corações
E embalam nossa carência afetiva…
Vamos celebrar a vida,
Cantando e batendo palmas…
Pois é assim que se celebra,
Com alegria e felicidade, ritmo e poesia…
Autor: Marcelo Pimentel Abdala Costa