Anima Mundi e a desconstrução da separação sujeito/objeto: reflexões sobre a solidão na era do desencantamento

Por Ângela Mafissoni – angelamaffissoni@gmail.com

 

A mesa redonda virtual “Pensar a Solidão a partir da Anima Mundi”, promovida pelo Instituto do Imaginário e disponível no Youtube, nos convida a refletir sobre a relação do homem com o mundo e a necessidade de pensar em uma psique que considere o pertencimento humano no mundo, pensar a partir de uma perspectiva ampla, considerando a relação com o ambiente em que vivemos. Para isso, antes de mais nada, torna-se essencial um passeio imersivo pela conceituação de Anima Mundi. Esse conceito se refere à ideia de que existe uma alma no mundo, uma energia vital que permeia todas as coisas. Essa concepção se contrapõe à visão materialista que enxerga o mundo como um mero objeto a ser explorado pelo ser humano. A partir desse conceito, a palestra levantou a questão de que não é possível entender a psique humana de forma dissociada do ambiente em que vivemos.

Essa visão se encontra em oposição direta ao pensamento cartesiano-mecanicista, que estabelece uma separação, uma dissociação entre sujeito e objeto, corpo e alma, e que, além de tudo, acabou por promover o processo de desencantamento do mundo, que se deu a partir do monoteísmo patriarcal e da consequente “expulsão dos deuses da Terra”. Essa visão materialista, que acabou por diminuir a importância do homem como parte integrante do todo separa ele da natureza e nega a existência da alma no mundo. Não só nega, como passa a considerar a mera ideia contrária de forma pejorativa (ver a alma na natureza passa a ser considerado primitivo, bárbaro, infantil).

A visão materialista que domina nossa cultura na pós-modernidade tem consequências diretas para a forma como pensamos a psicologia. O sociólogo Émile Durkheim, por exemplo, via o animismo (atribuição de vida e consciência a todos os seres e objetos), como uma forma primitiva e bárbara de entender o mundo. Vale ressaltar que essa visão do mundo (animismo) é comumente encontrada em culturas indígenas e tradicionais, que reconhecem a interconexão entre todos os seres e a importância de respeitar e honrar a natureza. Assim, essa forma tão pejorativa de se tratar a visão Anima Mundi no atual mundo materialista acaba por revelar preconceitos muito antigos e (não) tão velados assim, além de se mostrar prejudicial, especialmente no que se diz respeito à área psicológica.

Imagem: Pixabay

A “psicologia tradicional”, desligada do antropológico, também se mostrou incapaz de dar conta da complexidade da relação do homem com o mundo. Nesse sentido, a palestra ressaltou a importância de adotar uma ótica sistêmica na psicologia, entendendo que não há como fazer qualquer psicologia sem considerar as relações e o contexto em que o ser humano está inserido. A Teoria Geral dos Sistemas (TGS) nos permite entender a interdependência das partes do sistema e como isso é fundamental para o entendimento da psique humana.

Tendo em mente esse pensamento de interdependência e valorização do mundo ao redor, ou seja, passando para uma ótica Anima Mundi, onde não só o ser humano importa, mas todas as outras coisas também, passa a ser preciso questionar o papel da psicologia em relação a um sujeito que destrói as matas, que abusa e bate nas mulheres, que prejudica as crianças e compromete o futuro do mundo. Não seria nosso papel como psicólogos tencionar um pouco esse sujeito a olhar seu papel no mundo? Não seria nosso papel trazer à tona essa reflexão, de quem somos nós como espécie? Como seres? Talvez não necessariamente para mudar os comportamentos, ações e pensamentos desses sujeitos, mas pelo menos em tentativa de tornar (a escolha de manter essas ações) uma escolha consciente.

Nosso papel é sim o de acolher e considerar o sofrimento, mas devemos também sempre pensar e trazer a reflexão do que entendemos por psique, por ser humano e qual o papel disso no planeta em que vivemos. Pensar em que momento da humanidade nosso conceito de ser humano passou a ser tão pobre para que passássemos a pensar em nós mesmos como seres sobrenaturais (acima de tudo e de todas as outras coisas que nos cercam) e também refletir sobre em que momento o “resto” do mundo se tornou um mero pano de fundo, não mais vivo, não mais sagrado, apenas um galpão de suprimentos.

Falta um olhar mais cuidadoso para o campo de relações que ultrapassam o humano, o mundo que nos ultrapassa, do qual somos dependentes. Falta pensar e fazer uma psicologia ecológica, para a vida. Passa a ser necessário pensar em uma abordagem ecocêntrica, decolonial e fenomenológica que considere o mundo como um todo vivo e sagrado e não apenas um pano de fundo sem importância e é sim nosso papel como psicólogos tencionar essas reflexões. Na palestra é mencionada a teoria de Gaia, que postula que a Terra é um organismo vivo e que todos os seres vivos estão conectados, um belo exemplo dessa abordagem animista (que parece carregar em si muito mais o sentido -ou o que deveria ser o sentido- da palavra humano do que o humanismo clássico).

Caminhando um pouco mais, um dos tópicos da temática da palestra emergiu: a solidão, sentimento tão profundo e devastador, que chega a níveis físicos de dor. De acordo com nossos maravilhosos palestrantes, a solidão surge quando há falta de integração e desconexão com o mundo. Isso se dá pelo simples fato de que, sob a ótica Anima Mundi, não estamos sozinhos jamais, em nenhum momento, nem se quiséssemos. Se o mundo todo ao nosso redor está vivo e consciente, como é possível estarmos sozinhos? Simples, nesse sentido tão profundo não seria possível. Nós somos todos parte de uma gigantesca rede e não precisamos estar nela, pois nós somos a rede, somos as conexões, somos o inconsciente coletivo, somos a vida. Assim, a falta de conexão com o mundo e com todos esses aspectos pode causar a crise dos vínculos e das relações, o que pode levar à depressão e à ruptura dos laços afetivos. Essa crise dos vínculos e das relações é causada por uma visão distorcida dos humanos, que fazem de tudo objetos, inclusive os outros humanos.

A solidão seria, de acordo com nossos palestrantes, em grande parte, uma defesa contra o risco das relações, uma defesa contra o medo de se machucar ou de estar exposto. Para combater a solidão é necessário resgatar a retomada do animismo e reconhecer que tudo tem consciência. Também seria necessário levar à mente que não temos como escapar de suas garras sem intimidade. Devemos aprender a valorizar as relações que nutrem e que aquecem a alma, que deixam o coração quentinho, abraçando os amigos e valorizando as coisas mais básicas da vida.

Em resumo, é necessário reconhecer a importância da relação do homem com o mundo e com as coisas que nos rodeiam. Devemos adotar uma abordagem ecocêntrica, decolonial e fenomenológica que considere a vida em sua complexidade e interdependência. A retomada do animismo nos permite entender que tudo tem consciência e que a intimidade é a melhor forma de superar a solidão.