Decisão de dentro pra fora

Rebeca M. Nalia – rebeca.mnalia@gmail.com

Rebeca M. Nalia é psicóloga clínica e professora, especialista em Psicologia Analítica. Para contato: no Instagram @psico.beca e pelo e-mail rebeca.mnalia@gmail.com. Para mais textos, acesse no perfil do Medium https://psico-beca.medium.com/.

Quando recebi o convite para contribuir com a temática do mês, “Mulheres contemporâneas rompem com cultura da imposição de serem mães”, fui invadida por sentimentos ambíguos. Não tenho negado convites à escrita, mas me questionei sobre a real contribuição que poderia proporcionar.

Como mulher adulta próxima dos trinta anos, percebo o quanto esse tema ronda meu círculo social, então é dessa posição que reflito e escrevo. Além disso, como psicóloga clínica, tenho acesso a muitos relatos e angústias atravessadas pela maternidade. O mês das mães mexe bastante com a dinâmica social e pessoal. Para além de estratégias comerciais, ocorre grande romantização da função materna. Especialmente após a chegada e o domínio das redes sociais, temos maior acesso à exposição de fotos e declarações nesse período. Como se não fosse suficiente, também ocorrem encontros familiares em que antigas rusgas ficam suprimidas para que o aspecto sagrado prevaleça.

A partir dessa contextualização, parece provocador falar sobre a maternidade não compulsória. Essa é uma oportunidade para debatermos e organizarmos as ideias sobre a construção social desse papel, que também carrega o estigma do profano.   

A década de 1960, entre algumas aspas, foi demarcada como a década da revolução sexual. Entre outros fatores, a comercialização da pílula anticoncepcional proporcionou às mulheres maior segurança contraceptiva. Margem de erro à parte, foi concedido às mulheres maior autonomia sobre seus corpos. Das mulheres casadas que não almejavam ter tantos filhos, às solteiras que gostariam de se entregar a relações e aventuras sexuais, uma nova perspectiva foi instalada.

Mas seria inocência atribuirmos à pílula o título de libertadores. Por exemplo, houve e ainda há, por parte de algumas instituições religiosas, a resistência quanto à contracepção, que iria contra a vontade de Deus. Nos primeiros anos, inclusive, os médicos receitam a pílula com muita resistência, especialmente às moças solteiras. 

Com o passar das décadas, a taxa de natalidade de fato baixou. Nos anos 1960, a média de filhos por mulher era de seis. Nas décadas de 1980 e 2000, 4 e 2,2, respectivamente. Atualmente, a média é de 1,65. (Jornal da USP, 2023). Devido ao avanço da ciência e da medicina, houve maior aprofundamento nos estudos sobre a anatomia feminina, além da invenção, melhoria e popularização de outros métodos, como o preservativo masculino e feminino, DIU, diafragma, entre outros.

Aqui, faz-se necessário salientar que essa revolução toda não alcançou todas as camadas da população de forma homogênea. No Brasil, somente a partir de 1991 foi oficialmente implementada a Estratégia de Saúde da Família (ESF), enquanto política pública para a saúde coletiva. Mesmo que de modo não generalizado, as pessoas em vulnerabilidade social passaram a receber orientações sobre planejamento familiar. (MINISTÉRIO DA SAÚDE).

Conquistada parcialmente a autonomia sobre o biológico, evidenciou-se o desafio referente à autonomia social e pessoal sobre essa escolha. Para exemplificar, em 2021 foi causada grande controvérsia sobre a postura de alguns planos de saúde, que orientavam as mulheres a pedirem autorização de seus maridos para a inserção do DIU. Já na saúde pública, existem várias queixas sobre médicos que só autorizam a inserção do DIU em mulheres casadas e/ou mães. (VOGUE, 2021).

Sendo assim, a chamada para os artigos do presente mês, “Mulheres contemporâneas rompem com cultura da imposição de serem mães”, representa uma meta, e não a realidade abrangente. Ainda hoje, existe grande pressão familiar e social sobre casais terem filhos. Em camadas mais privilegiadas, observamos o opressor checklist da mulher de sucesso: estudar e investir na carreira > ser reconhecida no mercado de trabalho e obter independência financeira > entrar em um relacionamento afetivo > casar-se > ter filhos. E durante todo esse processo, manter-se jovem e atraente.

Focando um pouco mais nesse recorte, e embora ainda tenhamos pela frente muitas décadas de luta pela igualdade salarial e oportunidades na liderança, é notável o quanto as mulheres têm ocupado posições cada vez mais destacadas. As contribuições de mulheres nos meios acadêmicos e nos negócios são cada vez mais relevantes. Esse movimento de ascensão é progressista, mas infelizmente faz parte de uma equação bastante perigosa.

Com o direito de escolha entre ser mãe ou não, as mulheres que escolhem o caminho da maternidade enfrentam dificuldades dobradas, especialmente quando possuem carreiras de destaque. É inegavelmente positivo o avanço dos estudos sobre desenvolvimento humano, mas o maior conhecimento sobre infância e adolescência, somado ao exponencial crescimento das redes sociais, aumenta a exigência sobre o papel materno. Quando crianças ainda eram consideradas como adultos em miniatura, a educação dos filhos era um tanto quanto mais simples. 

Hoje existem tantas regras, tantos manuais e tanta fiscalização da vida alheia, que se tornou comum ouvirmos das mães o quão exaustivo é exercer esse papel. Temos visto um aumento dos homens que buscam se responsabilizar pelos filhos e dividir a carga da criação deles, mas ainda esbarramos em vários empecilhos, sendo alguns deles legais. Salvo algumas exceções, a licença-paternidade no Brasil possui a duração de apenas cinco dias corridos, contra os cento e vinte dias da licença-maternidade. (INSTITUTO FEDERAL CATARINENTE; GUIA TRABALHISTA).

No tocante às mulheres que buscam conciliar suas carreiras com a maternidade, as cobranças de acumulam aos montes. Um exemplo banalizado, porém recente, envolve a influencer e empresária Virginia Fonseca. Em abril do presente ano, o jornalista Evaristo Costa causou mal-estar nas redes ao criticá-la enquanto mãe. A partir de um vídeo publicado nas redes da empresária, Evaristo teceu um comentário depreciando seu papel materno, recitando a famosa frase “mãe é quem cria”. Desse ponto de vista, a partir de um breve recorte da vida cotidiana da família, o jornalista sentiu-se no direito de afirmar que a babá seria mais mãe que a própria mãe, presumindo uma preferência da criança. 

Virginia Fonseca Costa, uma jovem adulta de apenas vinte e quatro anos, possui atualmente 42,8 milhões de seguidores em seu perfil no Instagram, além de bater grandes números de audiência em outras redes sociais. Através de publicidade e suas próprias empresas, declarou faturar alto mensalmente. É casada com o cantor Zé Felipe e juntos possuem uma vida profissional bastante agitada. O comentário de Evaristo fez referência justamente à inferida ausência materna e ao consequente apego das filhas do casal às babás. 

Existe uma camada dessa discussão que está relacionada ao trabalho doméstico e que ao trabalharem cuidando dos filhos de mulheres de classe média e alta, as babás deixam de cuidar dos seus próprios, que ficam entregues às creches ou ao cuidado de pessoas da família. Porém, é curioso que tenha sido atacado o papel materno de Virginia, e não a paternidade de Zé Felipe, possivelmente tão ausente quanto.

A exposição acima corrobora com meus argumentos sobre a parcial libertação feminina. O caso citado tomou grandes proporções por envolver pessoas famosas, mas diariamente vemos mulheres sendo criticadas por serem ausentes ou não se dedicarem exclusivamente à educação dos filhos. Sendo assim, a mulher tem conquistado o direito de construir uma carreira brilhante, desde que seja uma mãe exemplar e sem defeitos.

Por conta disso, vemos várias mulheres se posicionando sobre a solidão e exaustão que envolvem a maternidade. Há não muito tempo, a atriz, roteirista e podcaster Helen Ramos disse, em um contexto de humor, que gostaria de ter sido pai, e não mãe. O desabafo, embora minimizado pelo contexto descontraído, representa a percepção de muitas mulheres. Ao pai é exigido menos sacrifício e devoção. Tal fala encontrou tanto receptividade e concordância, quanto horror e críticas. Não é permitido à mãe queixar-se da maternidade, entendida como privilégio. 

Se formos abranger a grande parcela de mães solo, essa problemática se torna mais grave. Por falta de rede de apoio, muitas mulheres adoecem na tentativa de conciliar carreira e maternidade. Para aquelas que não possuem renda suficiente para contratar uma babá, resta a expectativa de que o dia tenha uma duração maior que 24h.

Dentro do setting terapêutico, até o presente momento, nunca atendi um homem que se questionasse sobre um conflito entre a profissão e a paternidade. Isso não significa que não existam tais homens, já que estamos presenciando o crescente surgimento daqueles que se dedicam integralmente à função paterna, enquanto as parceiras focam em suas carreiras. Mas enquanto conflito psicológico, acredito que esteja presente predominantemente em mulheres.

É importante pensarmos que até o presente momento nos referimos somente ao conflito entre o papel profissional e de mãe. Quando abordamos a vida amorosa, social e sexual das mães, o discurso torna-se cada vez mais agressivo, deixando bem claro que mães são desprovidas de desejos e prazeres que não sejam os da maternidade.

Citando todos esses fatores, além da coletiva preocupação com o meio ambiente, escassez dos recursos e piora na qualidade de vida, fico em dúvida se nossas escolhas possuem tanto livre arbítrio quanto somos levadas a acreditar. É aqui que entra o papel da análise e psicoterapia – infelizmente recursos ainda disponíveis somente para determinadas camadas da população. 

Para a Psicologia Analítica, a tarefa que se coloca diante de cada ser humano é o desenvolvimento da própria personalidade. Também conhecida como Psicologia Junguiana e Psicologia Complexa, foi idealizada por Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço que viveu entre 1875 e 1961. (DA SILVEIRA, 1974). Alguns de seus conceitos mais populares são: arquétipo, inconsciente coletivo, tipos psicológicos, anima e animus, e o que abordaremos no presente texto, processo de individuação.

O processo de individuação é o processo pelo qual uma pessoa desenvolve a própria personalidade a partir da ampliação da consciência, consequência da assimilação de conteúdos do inconsciente. Não se trata de uma meta ou linha de chegada, mas um caminho em que gradualmente torna-se quem realmente é. 

Ser guiado pelo inconsciente implica em indiferenciação. Agimos de forma a sermos sempre invadidos por conteúdos desconhecidos, provocando emoções avassaladoras, além de reproduzirmos opiniões provenientes do meio social e familiar. Tornar-se um indivíduo significa entender-se enquanto sujeito no mundo, ao mesmo tempo em que se apropria da individualidade.

Conhecer a si mesmo em profundidade, ou seja, desenvolver o autoconhecimento, resulta em compreendermos nossas verdadeiras motivações, estabelecer um senso moral coerente conosco e tomar atitudes que estejam de acordo com o sentido de nossa jornada pessoal. Decisões como ter ou não filhos merecem esse tipo de seriedade. 

Optar ou não pela maternidade e a forma como isso será feito exige de nós inteireza. Caso contrário, corremos o sério risco de viver uma vida cujas decisões foram tomadas por outras pessoas, e o consequente arrependimento. Alguns conteúdos emocionais reprimidos podem influenciar nessa escolha, assim como o peso daquilo que esperam de nós. A verdadeira liberdade nos proporciona o direito de escolher e caminhar na direção daquilo que auxilia na construção da nossa personalidade.

Algumas mulheres podem se negar ao convite da maternidade por conta de traumas envolvendo essa temática, assim como outras podem ter filhos buscando consertar erros dos progenitores. Para além da decisão, é importante o desenvolvimento de autoridade interna para bancá-la. 

Embora sejamos seres sociais e relacionais, sujeitas às influências dos contextos em que vivemos, o simples fato de podermos falar sobre isso, de podermos nos questionar sobre isso, já demonstra a enorme conquista da autonomia feminina. O bem mais precioso alcançado pela luta de milhares de mulheres no movimento feminista é o nosso direito de escolha. E a nossa missão é, através da nossa experiência, levar esse direito àquelas que ainda vivem em realidades distantes disso.

Referências

ALVES, José Eustáquio Diniz. O nascimento da pílula anticoncepcional e a revolução sexual e reprodutiva. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 28 de nov. de 2018. Disponível em <https://www.ufjf.br/ladem/2018/11/28/o-nascimento-da-pilula-anticoncepcional-e-a-revolucao-sexual-e-reprodutiva-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/>.

DA SILVEIRA, Nise. Jung, vida e obra. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1974.

ESTRATÉGIA saúde da família. Ministério da Saúde. Disponível em <https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saps/estrategia-saude-da-familia>. Acesso em 15 de mai. de 2023.

EVARISTO Costa alfineta Virginia Fonseca por vídeo da filha e Zé Felipe esbraveja: ‘folgado’. Revista Quem, 05 de abr. de 2023. Disponível em <https://revistaquem.globo.com/noticias/noticia/2023/04/evaristo-costa-alfineta-maternidade-de-virginia-fonseca-e-web-reage-nao-esperava.ghtml>.

IBGE registra queda da taxa de natalidade no Brasil. Jornal da USP, Ribeirão Preto, 23 de mar. de 2023. Disponível em <https://jornal.usp.br/radio-usp/ibge-registra-queda-da-taxa-de-natalidade-no-brasil/>.

LICENÇA paternidade. Instituto Federal Catarinense. Disponível em <https://manualdoservidor.ifc.edu.br/licenca-paternidade/>. Acesso em 15 de mai. de 2023.

LICENÇA maternidade e salário maternidade. Guia trabalhista. Disponível em <https://www.guiatrabalhista.com.br/guia/licenca_maternidade.htm>. Acesso em 15 de mai. de 2023.

MULHERES são orientadas a pedir autorização do marido para inserção do DIU, diz jornal. Vogue, 04 de ago. de 2021. Disponível em <https://vogue.globo.com/atualidades/noticia/2021/08/mulheres-sao-orientadas-pedir-autorizacao-do-marido-para-insercao-do-diu-diz-jornal.html>.