Falar, pensar e lembrar

O homem se faz cultural pela comunicação. É por ela que o pensamento modifica-se ao longo da história, quicá por ela modifica-se também o mecanismo daquilo que chamamos pensar. Seria o mecanismo de pensar o mesmo desde todo o sempre da vida humana? O pensar muda apenas de conteúdo ou também de mecanismo?

É pela comunicação ainda que o homem faz outros atos além de o de pensar e, contingente a ela, que também por atos se faz, os atos todos modificam-se, tanto nos conteúdos que carregam quanto nos mecanismos pelos quais são carregados. Por exemplo: as histórias sobre a cesárea nos dizem que, nos primeiros relatos existentes sobre essa cirurgia (documentos babilônicos de mais de 1700 anos antes de Cristo e a Lex Regia, da Roma Antiga, com data de em torno de 700 anos antes de Cristo), ela ocorria na dependência de a mãe morrer ou em estar em vias de morrer. (Parente e outros, 2010). O significado que embasava a decisão para se fazer a cirurgia era “tentar salvar o bebê”. Se compararmos tal significado com o atual, percebe-se que o conteúdo social-simbólico que é contingente ao ato da cesárea modificou-se completamente, mesmo que ainda se façam cesáreas para se salvarem as vidas tanto da mãe quanto do bebê. Os conteúdos trocados entre técnicos de partos, gestantes e familiares e que embasam a decisão de se fazer ou não uma cesariana modificaram-se ao longo dos tempos; com isso certamente modificam-se as decisões. Os mecanismos pelos quais tais conteúdos foram e são carregados também modificaram-se, basta ver que na Roma Antiga a lei régia determinava a decisão sobre o procedimento enquanto, hoje, o que o faz é o profissional amparado por seu Conselho, sem falarmos das características sociais marcadas pela diferenciação tecnológica de um e de outro tempo.

Se o pensar alicerça-se na experiência que temos no mundo, não somente devido aos conteúdos que a memória carrega, mas também em seu próprio funcionar, a plasticidade cultural deve, por hipótese, promover alterações não somente aos conteúdos do pensamento, mas ao próprio ato de pensar. O fazer questões, o questionar o mundo a nossa volta, é uma das atividades fundantes do pensar humano. Desse modo, compreender a forma como isso se vai modificando e como se modifica pode nos fornecer compreensões sobre o pensar.

Mario Eduardo Costa Pereira discute a mudança no pensar (certamente em seu conteúdo, talvez em seu mecanismo) ocorrida no esgotamento da sociedade da Grécia Antiga. Pereira discute o pensar grego, em contraposição ao pensar ocidental moderno, a partir de uma simples questão: quem sou eu? Tal questão orienta o pensar, na conjuntura moderna ocidental, a uma dobra sobre si mesmo, como se criasse avulsamente um outro mecanismo de ser que, por mergulho, pudesse definir o ser em termos de um “quem”. Para Pereira, o homem, a partir de tal questão e com o desenvolvimento do cristianismo, do monoteísmo cristão, da Inquisição e do desenvolvimento da lógica individualista característica à modernidade, passou a mergulhar em possíveis definições de um “quem somos”, em especial o concebendo como uma treva profunda e lamacenta sobre a qual as Igrejas (a católica e a científica) podem jogar luz. Criou-se assim, a concepção de “interioridade do ser” não constante no pensar da Grécia Antiga. Tal questão não operava, no grego, um mergulho numa alma opaca e perigosa como a água turva dos oceanos. Ao grego, a questão levava aos vôos em que quiça pudessem encontrar seus vários deuses e com eles cumprirem seus destinos, abertos ao cosmos, ao mundo. A “interioridade do ser” é, pois, uma descoberta e/ou uma invenção preparada na Idade Média e consolidada na modernidade, em especial quando um grupo de campos do conhecimentos começaram a afirmar que seria possível medi-la. Invenção ou descoberta? Talvez ambos.

A “interioridade do ser” é sim uma descoberta bem anterior às civilizações antigas. O homem enquanto espécie animal a descobriu. A racionalidade pensa sobre si mesma, pois assim é que se define, é assim que ela funciona. Selecionou-se assim. Para o homem organizar-se socialmente ele teve que diferenciar um tempo que ocorre ao seu arredor e um tempo que é diferente quando sendo homem em arredores. Por isso, todo homem descobre sua interioridade, sua alma, seus fenômenos, não importa o nome que se dá a tal processo sensitivo. Ao mesmo tempo, a “interioridade do ser” é uma invenção, pois os elementos que a fazem se desenvolver no relacionar-se humano são regidos pelas palavras postas em movimentação social e que criam os imaginários, as definições. Dentre tais palavras encontram-se, em especial, os memes.

As palavras postas em movimentação social regulam a percepção de passagem do tempo, elemento definidor da forma como nos comportamos. Quem controla o tempo que se passa nos arredores pode controlar o tempo de quando somos nesses arredores. A Igreja católica por muito tempo controlou e controla a palavra (a primeira palavra inclusive, pois “No princípio era o verbo”); o tempo, tanto que instituiu um calendário mundial; e os arredores, quando praticou do cercamento, tomando os arredores nos quais os homens são: suas terras, suas línguas (no caso dos índios brasileiros, por exemplo) e seus hábitos. Isso repecurte consequências até os dias de hoje. O caminho indicado pelos memes da Igreja apontam para um vale escuro do qual poucas pessoas podem sair, disseminando a ideia de que somos esse vale, pantanosamente sendo-nos.

É difícil precisar o quanto há de mudança no mecanismo de pensar para além da mudança de seus conteúdos. Mas certamente grande reviravolta ocorreu quando o homem não somente quis medir o próprio pensar mas também chegou a afirmar, e o afirma até hoje, que o pode iluminá-lo e-ou medi-lo. Não há farsa maior, na Psicologia, que os testes de inteligência. Medem uma mediocridade da inteligência humana e são menos que medíocres quando postos a funcionar. São mecanismos de poder que repetem os memes da Igreja: você é um vale sobre o qual posso jogar luz, se medi-lo…o comércio mantido pela rede dos saberes acadêmicos encarrega-se de produzir a necessidade de os aplicar.

O resultado da medição, normalmente exposto no Psicodiagnóstico, é, ao mesmo tempo, inútil e pragmático. Inútil, pois esvaziado de sentido, uma vez que a inteligência não pode ser medida, ela pode ser posta a funcionar quando o ser interage com o meio. Os testes apenas indicam a ocorrência ou não de determinado pensamento no determinado tempo da aplicação dos testes. Ao mesmo tempo pragmático, pois reproduz com eficácia a apropriação do saber alheio sob o domínio de um outro que supostamente é mais certo e mais válido para as orientações que da prática psicológica decorrem. Colaboram na manutenção da percepção de que somos vales obscuros que somente mecanismos da classe dos microscópios, da ordem dos paradigmas portanto, criadores de ciência normal, é que podem conhecer para, depois, revelarem. O saber de si tornou-se uma prática prescritiva e não compartilhada.

Contudo, a interioridade de si não representa apenas o vale com seus pântanos. Ela representa também a peculiaridade e a plasticidade característica do pensar humano. Fale sobre sua fala. Pense sobre o seu próprio pensamento. Lembre-se de sua memória. Essas frases evidenciam a peculiaridade e a plasticidade da aparelhagem sensitiva do ser humano. Essa aparelhagem, ao mesmo tempo em que é usada para a orientação do homem no espaço (pois seu funcionamento cria referenciais), pode ser usada para criar pontos de referência “dentro” de si própria. Daí uma outra nossa interioridade, que ilumina-se quando posta em movimento ao invés de necessitar esperar pela luz que se auto-proclama científica e-ou divina.

Quando falamos sobre nossa fala, marcamos características hoje que futuramente sofrerão alterações e, assim, criamos pontos de referências para navegarmos em nossa própria fala da mesma maneira que o podemos para nosso pensar, para nossa memória e para nossa criatividade. Todos criamos os próprios pontos de referência para dentro de nossas linguagens. Quando a Igreja torna única a história sobre o surgimento do homem e única a possibilidade de um Deus ela acerca-se desses referenciais e os toma a si. Quando a Psicologia, aquela revestida de aura de ciência dura, põe-se a explicar o homem a partir de medidas normatizadas, ela também toma a si os referenciais necessários para o desenvolvimento cognitivo e afetivo do homem, ou seja, ela barra o crescimento humano.

Como num oceano, os pontos de referências estabelecem, entre si, relações que orientam as navegações. Aliás é por fazerem tais relações, misturado à capacidade de o homem as reconhecer e-ou as elaborar, é que as estrelas, faróis, pedras, corais e etc são chamados pontos de referência. Contudo, no caso de os pontos de referência, criados ou naturais, não estabelecerem comunicação entre si ou no caso de o homem não estabelecer e-ou compreender tal comunicação, tais pontos deixam de ser pontos referenciais e passam a ser objetos apenas, estrelas distantes, faróis apagados, quiçá lixos à deriva.

O mesmo ocorre para o falar, o pensar e o lembrar. Criamos pontos de referências como, por exemplo, as sílabas BO e LA e depois, relacionando-as, falamos a palavra BOLA. Acreditamos em crenças que, se questionadas, modificam-se ao longo do tempo a tal ponto de reconhecermos mudanças no pensar e, assim, criamos pontos de referências na navegação de nosso existir. E uma das formas mais eficientes de lembrarmos das coisas é criarmos uma imagem mental em que coisas estabelecem relações como a um mapa imaginado para nossa memória navegar quando involuntariamente acessamos, buscamos acessar ou precisamos acessar lembranças.

Portanto, não é de outra maneira que o homem se faz cultural se não pela comunicação entre pontos de referências que cada um de nós deles se apropria. É por ela que o falar, o pensar e o lembrar modificam-se ao longo da história. O falar certamente modificou-se ao longo da história do homem na Terra, diversificando-se (não existe um forma melhor de falar, apenas formas diferentes), acumulando (e não superando) mecanismos diferentes para se consumar. Por exemplo, ela pode se consumar no uso das cordas vocais ou no uso das mãos, sem as cordas vocais. O pensar também, como discute Mário Eduardo Pereira. O lembrar segue na mesma mão tanto na diversidade de conteúdos para se lembrar quanto na amplitude das técnicas de armazenamento.

Por motivos ainda obscuros (mas extensamente debatidos e, de certa maneira, compreendidos nas discussoes acerca do poder) o homem tende a sobrepor suas maneiras de viver às de outros animais e às de outros homens. É por esse fator que tipos de falas, ao invés de serem acumuladas e-ou mantidas em nosso arcabouço cultural, morrem. Pelo mesmo motivo é que tipos de pensar e de lembrar também morrem e dão lugar ao tipo de pensar da vida moderna que resume-se ao crescimento econômico (custe o que custar), ao saber técnico e ao descarte. Como exemplo, pode-se pensar na morte de uns tantos dos cerca de 1000 dialetos indígenas que morreram desde os anos de 1500 até os dias de hoje, como nos aponta o professor Aryon D. Rodrigues (1999). Quantos pensamentos e memórias morreram juntamente com o fim desses tantos dialetos!

Além da morte de falares, pensares e lembrares de culturas ocorrida no tempo da história dos povos, creio que outra morte ocorre, progressivamente, por adoecimento, no dia-a-dia das pessoas, nos tempos de hoje. Refiro-me à morte de falas, pensamentos e lembranças e de falares, pensares e lembrares que ocorrem a todos nós e que é decorrente de como nos formamos educacional e socialmente. Para defender tal ponto de vista preciso recorrer à questão do mapeamento de tais funções (o falar, o pensar e o lembrar) por meio da criação dos referenciais.

A importância dos pontos de referência que criamos para ser o que somos, ou seja, para falar, pensar e lembrar depende da forma como integramos tais pontos. Sem integrá-los, os pontos transformam-se em apenas lixo à deriva no ser… memória esquecida, pensamento confuso, verborragia. A integração de pontos referenciais pressupõe um sistema de integração uma vez que a comunicação necessária para uni-los ultrapassa a simples ligação entre dois elementos. Na integração, muitos elementos partilham de mesmos conjuntos de símbolos, sinais, atos, funcionamentos, referentes e etc. e por isso, ela pressupõe um sistema de integração. O fato de a integração pressupor um sistema não significa que o sistema de integração venha a priori.Significa que quando ela ocorre, ocorre de forma sistêmica.

O falar, o pensar e o lembrar, portanto, por serem sistemas integrados entre si ocorrem de forma sistêmica. A ocorrência sistêmica, nesse caso, pressupõe que o falar, o pensar e o lembrar ocorrem em diferentes lugares, podendo ocorrer em tempos iguais e-ou diferentes, concomitantemente ou separadamente. Nossas células pensam, nossos músculos lembram, nosso estômago fala e assim por diante. A integração sistêmica pressupõe que as partes de um todo funcionam junto e respondendo ao todo, mas não necessariamente estão sujeitas às mesmas regras, comandos, expectativas e funções.  O comando da organização do todo, numa ocorrência sistêmica, é disseminado. Há comandos e não um apenas, mesmo que possa haver um mais vital que outros. Isso quer dizer que as partes atuam no todo, às suas diversas maneiras, mas o todo não é a simples soma de todas as suas partes.

No mapeamento de nossos referenciais, fazemos ligações entre as falas, os pensamentos e as lembranças criados na existência e referentes externos, sobre os quais criamos nossas referências. Como criamos nossas referências? No relacionar-se com a infinitude dos referentes. O pensar e o lembrar ocorrem quando nossos próprios conteúdos, portanto nossos referenciais, tornam-se para nós, individualmente, referentes. Se assim não o for, nossa fala é apenas repetição de memes sociais. Atrofiam-se como a um músculo que não se movimenta. O potencial do ser humano é tão mais elevado que o que conseguimos realizar. Isso ocorre, pois falhamos diariamente naquilo que podemos ensinar e aprender. Nossos sistemas referenciais de nossas existências são dependentes de instituições que, sem julgar a índole tão pouco a intencionalidade de seus trabalhadores, perderam há muito tempo a capacidade de fazer seres humanos ultrapassarem seus próprios limites, apropriarem-se de seus próprios pensamentos e de suas próprias memórias. Daí a disseminada falação sobre tudo e que não diz nada. Daí esse nosso moderno adoecimento para o qual há já uma refinada disponibilidade de drogas.

Sem um sistema referencial que seja ao mesmo tempo compartilhado e apropriado individualmente não podemos superar nossos limites uma vez que para os superar precisamos de pensar, falar e lembrar por nossa própria conta, individualmente, mesmo que compartilhadamente. Em nosso caso, no caso do homem moderno e pós-moderno, o sistema referencial para existir nesse mundo é dependente de instituições despotencializadoras do espírito humano, mas detentoras de um imenso poder para a manutenção de seus status quo: amedicina, em sua vertente pragmática e mercadológica e seus apêndices paramédicos (como a Psicologia das testagens) com o poder sobre o tráfego das drogas; a Igreja, com a privatização da ideia de Deus e de sentido da vida; as instituições do direito que, aliadas às instituições militares e repressoras, mandam e desmandam a seu tempo. O resto de nós segue os escritos e-ou a Escritura, repetindo-os.

Esperamos a ciência dura e a Igreja explicar nossa fala, nosso pensar e nossa memória. Nem de perto percebemos que nós próprios é que falamos, pensamos e lembramos. Podemos falar sobre nossa fala, pensar o nosso pensamento e lembrar de nossas memórias. Temos tudo já, tanto dentro quanto fora de nós. O que então estamos esperando?

Referências:

RODRIGUES, Aryon D. A originalidade das línguas indígenas brasileiras. Conferência realizada na elaboração do Laboratório de Línguas indígenas da Universidade de Brasília em 08 de julho de 1999. Brasília, DF.

PARENTE, Rafael Câmara Medeiros e outros. A história do nascimento (parte 1): cesariana. In:Femina, setembro de 2010, vol 38, número 9.

PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Pânico – contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos, 1997. 253 p.