Marcel Proust: refundando o tempo

Como o escritor buscou fundar sua obra a partir de sua relação com o tempo.

 

Matheus de Castro – matheusmdecastro@gmail.com

 

O tempo, enquanto instrumento de criação, parece ser um tema universalmente abordado entre todos aqueles que se dispõem à tarefa de escrever. Afinal, todos somos, invariavelmente, atravessados por ele. Faz parte de nossa característica fundamental enquanto seres perecíveis, e está intimamente ligado à ideia da morte. Nossas histórias, nesse sentido, estão sempre estruturadas a partir da perspectiva dessa temática universal, ainda que o tempo não se caracterize como personagem principal das narrativas em que está inserido, ou que se inserem em seu bojo.

Proust, no entanto, parece subverter essa lógica, quando seus personagens emergem como pano de fundo para dar relevo àquele que figura como o grande protagonista de toda a sua obra – O tempo.

Seria lícito supor que nenhum outro escritor tenha se debruçado com tamanho afinco para tratar desse tema, e sua obra “Em busca do tempo perdido”, dividida em sete volumes, levou grande parte de sua vida para ser produzida. A memória constitui a força motriz que conduz o autor por entre os meandros da história que se desvela, e que mistura fantasia e realidade em um ritmo poético. Muitas questões são abordadas enquanto o tempo desempenha seu papel de maneira inexorável – dentre eles o amor, o ciúme, luto, e a homossexualidade.

Proust é considerado um dos primeiros autores clássicos a trazer o tema da homossexualidade, ainda no início do século XX, para sua obra. A forma como trata de maneira aprofundada os afetos que enlaçam e separam seus personagens demonstra uma capacidade de compreensão singular – até mesmo em relação a outros autores clássicos.

Mesmo tendo sido contemporâneo de Freud, acredita-se que ambos desconheciam a obra do outro, ainda que seja possível relacionar muito do estilo de Proust ao que depois viria se denominar como teoria psicanalítica. O autor também era um explorador inveterado dos recônditos da mente humana, e muito da complexidade de seus personagens provêm de sua consciência da incapacidade da razão em tentar apreender tudo que envolve a experiência humana.

As lembranças surgem, nesse sentido, não como retrato fiel daquilo que ocorreu, mas substância maleável, onde os afetos e a fantasia agem como forças da própria natureza do ser, moldando sua experiência e imprimindo no relevo daquilo que se lembra a sua própria subjetividade. É reconhecido o caráter autobiográfico de sua obra, não obstante seja impossível delimitar a fronteira entre realidade e ficção. Na verdade, essa parece uma provocação constante em sua escrita. Afinal, o que seria realidade diante daquilo que se lembra? Talvez o tempo e nada mais.

A experiência de contato com sua obra é transformadora, ainda que se mostre um desafio – dada a sua extensão e complexidade. Proust nos oferece, ao tentar capturar o tempo em sua essência, uma extraordinária viagem pela mente de um dos maiores escritores da literatura mundial. Em sua sanha por vencê-lo, o autor apresenta o tempo como um adversário inigualável, capaz de submeter até mesmo os seres mais elevados. O tempo não faz concessões, e por isso mesmo não demonstra escrúpulos ao lançar luz sobre as irregularidades humanas. Ao homem, sob tal perspectiva, não resta senão a alternativa de empregar alguma dignidade em sua batalha – o que pode se entender como o ideal estético perseguido pelo escritor nos mais variados âmbitos da produção artística.

Fonte: Imagem do Freepik

O tempo como uma estação que nos leva para outro lugar de nós mesmos.

“Porque não se pode mudar, ou seja, tornar-se outra pessoa, e continuar a obedecer aos sentimentos da pessoa que não se é mais.”, escreve o autor em determinada passagem de seu primeiro volume, “No caminho de Swann.” O tempo, como personagem principal, nos conduz a lugares alheios a nós mesmos, onde temos a oportunidade de refundar a nossa história, e consequentemente o nosso ser. Proust parece ter compreendido isso ao se propor a grandiosa tarefa de sair em busca do tempo perdido. Seu encontro com ele é, para nós, um grande legado. A celebração de alguém que, se não foi capaz de vencer o tempo, nos deixa um belo retrato de sua batalha.

 

Ficha Técnica:

Em busca do tempo perdido

  • Editora: ‎ Nova Fronteira; 3ª edição (16 junho 2017)
  • Idioma: ‎ Português
  • Capa dura: ‎ 2472 páginas
  • ISBN-10: ‎ 8520926509
  • ISBN-13: ‎ 978-8520926505
  • Dimensões: ‎ 24.6 x 16.6 x 13.8 cm