Pondé: dúvida e superficialidade nos vínculos da pós-modernidade

Durante as apresentações do Café Filosófico da CPFL Cultura (Campinas-SP), a obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman é citada com frequência por abordar uma espécie de “padecimento” enfrentado pelos homens e mulheres da pós-modernidade. No Brasil, um dos intelectuais mais profícuos em relação às linhas teóricas de Bauman é o filósofo Luiz Felipe Pondé – professor da PUC-SP e da FAAP –, que destaca, sobretudo, traços contemporâneos marcados por certa “paralisia pelo medo” e o despertar “do sono da modernidade”, além da crença na razão e na vida administrada.

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De acordo com Pondé, uma das melhores formas de compreender o ser humano é que ele é um “animal que não tem solução”. Esta seria, inclusive, uma das intuições fortes do pensamento do Bauman, “de que parecemos estar a anos-luz da ideia de solução”. E é justamente a consciência disto que se configura como parte da capacidade do sujeito de ser inteligente.

Pondé lembra que ao longo da história – pelos vieses das religiões, da filosofia e da educação – o ser humano sempre pensou sobre temas como ‘afinal de contas, por que estamos aqui?’, ‘para onde eu vou?’, ‘será que alguém mandou eu vir para cá e não me informou sobre isso?’, ‘ou será que eu estou aqui simplesmente por acaso?’. Aliado a isso, lembra o intelectual, outra questão povoou a mente dos nossos ancestrais, quando se depararam com a morte e a perda afetiva. Ou seja, as grandes dúvidas existenciais estão na raiz do que é ser humano. Isso faz com que a vida humana, em maior ou menor grau, seja marcada pela angústia e pela expectativa de que parece que tem alguma coisa errada com ela. “A começar pelo fato de que a gente devia viver mais do que vive, ter mais saúde do que tem, dar mais certo nas coisas que a gente faz, adiar o que não é bom, e finalmente encontrar aquela pessoa com quem você pode viver para sempre, eternamente feliz com ela”, pontua.

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Consciência de um fracasso

Luiz Felipe Pondé relata que o conceito de pós-modernidade começa a circular na década de 80 do século passado, nos meios filosóficos, a partir de um intelectual francês chamado Jean-François Lyotard (1924-1988), que a definiu como “a recusa de narrativas longas sobre as coisas”. Neste aspecto, a consciência pós-moderna, termo usado com frequência por Bauman, é antes de tudo a consciência de um fracasso. “Qual é esse fracasso?”, provoca Pondé, para emendar: “Ora, o fracasso da Modernidade. A Modernidade fracassou nas utopias que ela nos ofereceu. Só que a Modernidade não acaba numa terça e a pós-modernidade começa numa quarta, a ideia não é essa. Essa consciência pós-moderna, para o Bauman, é ao mesmo tempo uma espécie de ‘despertar maldito de um sonho colorido’, de um sonho de que estávamos construindo um mundo simétrico à nossa capacidade de organização, à nossa capacidade racional e tudo o mais, e ao mesmo tempo um momento de esperança, pois Bauman vai questionar se realmente foi pertinente a modernidade ter fracassado”. É importante destacar que há um grande problema de ordem social que o polonês usa para descrever o fracasso da Modernidade. Trata-se do Holocausto. Através do livro de sua autoria “Modernidade e Holocausto” (1989), Bauman discute – numa teoria avançada pela filósofa judia Hannah Arendt, notadamente no que se refere à banalização do mal – o fato de que no extermínio promovido pelos nazistas trabalharam pessoas normais. “Não se tratava de monstros que gozavam com o espancamento e morte dos judeus, homossexuais e ciganos. Não era isso. Trata-se de pessoas normais que trabalhavam no extermínio, e depois iam para casa, jantavam, se reuniam com a família e etc. O que Bauman identifica é que a preocupação com a administração da vida, que caracteriza o sujeito moderno, parece distanciá-lo da reflexão moral. Pois há muita preocupação com a ideia de eficácia, e com a tentativa de resolver problemas”, vaticina Pondé. Assim, em Bauman, o Holocausto é uma espécie de laboratório onde a dinâmica e a violência da racionalidade instrumental – como irá falar a Escola de Frankfurt – chegou a seu ápice.

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O filósofo brasileiro argumenta que existem dois lados na reflexão do polonês. “De um lado, há uma visão que gera uma razoável angústia no contato com a obra, e do outro lado há um olhar para o que ele descreve como ‘uma ética para o inverno’. O que significa este último ponto? Que nós estamos atravessando um deserto. Não adianta querer achar que estamos atravessando uma primavera, porque as flores são todas de plástico. Nós estamos atravessando um deserto”, pontua Pondé, com o seu conhecido pessimismo, para em seguida dizer que nós vamos sofrer bastante nesta travessia.

Sobre este tema, uma das metáforas usadas por Bauman – numa referência ao filósofo americano do século 19 chamado Ralph Waldo Emerson – é de que vivemos como se estivéssemos correndo sob uma fina casca de gelo. “Se pararmos, ela racha. E quando ela rachar você se afoga. Então Bauman reforça esta imagem ao dizer que estamos atravessando um inverno e a casca é fina. Se você andar devagar o chão racha e lhe resta a morte. Ou seja, além de ser um inverno e de não se ter nenhuma referência clara diante de você de como resolver as coisas, você não tem tempo. Isto é uma característica fundamental do diagnóstico do momento”, observa Pondé.

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Correria desenfreada

Em referência a Bauman, Pondé lembra ainda que, na contemporaneidade, deve-se correr muito, a uma velocidade cada vez maior. O problema é que na maior parte das vezes as pessoas param e se questionam sobre pra onde estão indo. “Você não está correndo para lugar nenhum. Você está correndo simplesmente porque você tem que correr. E se você parar a casca racha e você se afoga. Aliás, a metáfora da água é bem típica em Bauman. Um de seus livros principais, inclusive, é Modernidade Líquida. Ele parte do pressuposto de que no Capitalismo tudo o que é sólido se desmancha no ar”, pontua Pondé. Neste contexto, Bauman diz que as coisas não têm forma, em referência à clássica crítica marxista ao liberalismo econômico que leva a um afrouxamento dos interditos. “Hoje se você tentar pegar na sua mão o que você entende por sua família, é líquida. Porque a sua relação com seus filhos, com seu marido/mulher é instável, líquida. A qualquer momento ela acaba. Não há nenhuma garantia de que a pessoa que está do lado de você permanecerá com você, inclusive porque ela é alimentada pelo mesmo motor que você é, qual seja, ‘eu mereço ser feliz no que eu faço’. Quando a pessoa que estiver do meu lado não preencher os requisitos da felicidade a qual eu tenho direito, eu troco”, alerta Luiz Felipe Pondé.

Outra característica da contemporaneidade é que, no decorrer da vida, as fórmulas usadas para resolver problemas acabam gerando novos problemas, num constante movimento de troca de lugares. Isso explica a ideia de movimento e a profusão de especialistas. “Chegamos ao ponto de precisarmos de especialistas que nos ajudem a identificar quais são os especialistas que de fato merecem ser especialistas. Isso vai fazer com que Bauman diga que, hoje, o máximo que podemos ter como noção de identidade é o estilo. Você é o que veste, o restaurante que frequenta, você é o tipo de amigos que você tem e o livro que veem você com ele na mão”, explica Pondé, para acrescentar que esta noção de estilo trabalha a diferença entre uma noção mais profunda, pesada, que seria a personalidade, e o conceito de autoimagem, sempre em processo de transformação.


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Superação da Modernidade

Para entender melhor a pós-modernidade, é necessário adentrar na modernidade. Bauman fala que a ‘modernidade sólida’ é caracterizada por uma noção de estado organizado, que seria a instância produtora de justiça no mundo, “que garantiria a qualidade de vida das pessoas e, por fim, um capitalismo civilizado sob controle do estado, naquela antiga perspectiva de que basta aprender uma função que se consegue entrar no mercado”, lembra Pondé. A diferença para a pós-modernidade é que o estado é cada vez menor. Pondé pontua que quanto maior ele (o estado) é, mais ele atrapalha, já que demonstrou ser uma “empresa ineficiente”. Assim, na contemporaneidade o estado vai soltando, abrindo espaço para a iniciativa privada. Por sua vez, a “iniciativa privada está mergulhada numa coisa chamada ‘mercado livre’, que é o exemplo mais líquido entre todos. A noção de mercado vai tomando conta de todas as relações, passando pelo mercado de trabalho, à educação e o amor”, explica Pondé.

Insatisfação constante

Isso tudo acaba por desaguar numa crescente insatisfação. Pondé lembra que Bauman vai apontar que um dos grandes problemas do homem e da mulher pós-modernos é que quando se está num relacionamento, se é continuamente atormentado pela qualidade dele. “Isto é excesso de consciência, já que você lê livros que diz que você tem que ter qualidade de consciência, você faz terapia para aprender que você tem direito a ter qualidade no amor, e quando você viver o amor – que ele chama de relacionamento –, a consciência do direito de qualidade, a ideia de qualidade na relação se torna uma sobra para você. Por quê? Porque você fica se observando dentro da relação o tempo todo, para ver se está funcionando”, observa Pondé, para alertar que quando se observa se alguma coisa está funcionando, “você começa a ver que nem tudo está funcionando direito. Isto ocorre por uma razão muito óbvia: nada funciona direito”.

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Vale destacar, no entanto, que a ideia da qualidade da relação não é só voltada para a própria relação interna. “O cidadão contemporâneo sabe que quando está dentro de uma relação, existem outras oportunidades no mercado. Não se trata de estar numa relação e de repente acontecerem acidentes de percurso. É a total ausência de um centro”, pontua Pondé. E, nesta dinâmica de querer aperfeiçoar as coisas continuamente, o sujeito esquece que ele próprio não pode ser aperfeiçoado ad infinitum. “E chega uma hora que você começa a dar defeito. E você começa a correr freneticamente para demonstrar constante eficiência, porque o mercado da vida exige isso, eficácia e rapidez em todos os níveis. Mas o metaparadigma que está atrás, definindo este humano contemporâneo, está em alta velocidade e pode mudar a qualquer momento”, critica Pondé.

Mal-estar e relativismo

Quando se começa a perceber as coisas desta forma, diz Pondé, a consciência pós-moderna começa a se instalar no sujeito, antes de tudo como um mal-estar, como defende Bauman. “Ele discute isso muito bem no livro ‘Modernidade e Ambivalência’, onde ele discute o relativismo moral e cultural. A grande pergunta é: até que ponto eu aguento que tudo é relativo? Porque um dos dramas do pós-moderno é que ele não acredita em absolutamente nada. O moderno ainda acreditava na razão, acreditava que o mundo estava caminhando para alguma coisa. Já o pós-moderno quando olha o mundo enxerga apenas o vazio. Você pode andar para qualquer lado, porque nenhum destes lugares é necessariamente melhor do que outros”, sintetiza Pondé.

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Desta forma, o mal-estar do pós-moderno é seguido da angústia de ser livre. “Finalmente eu consegui ser livre porque vivo numa democracia, larguei as tradições, não sou obrigado a seguir muita coisa… a única coisa que eu tenho de obedecer é a lei do mercado. E é justamente esta liberdade que nos atormenta, já que parece que não queríamos ser tão livres assim”, pontua Pondé, para destacar que na passagem da modernidade para a pós-modernidade, Bauman vai identificar que o autoinvestimento humano era focado na noção de segurança, racionalidade e organização. Já na pós-modernidade o autoinvestimento é na liberdade. E o que caracteriza esta dinâmica é ‘você perceber que tudo pode’, não há interditos.

Constante reinvenção

Luiz Felipe Pondé também diz que outra característica pós-moderna “é eu ter que constantemente descobrir e aprender quem eu sou. Mas como você pode aprender quem você é? Por uma razão muito simples: você não é nada! Já que tudo é inventado, tudo é aprendido, tudo é cultura, tudo é moda e estudo… e você vai assimilando isso no decorrer da vida”, aponta Pondé, para dizer que descobrir-se livre é um peso gigantesco, “pois muitos gostaríamos de ter alguém que nos dissesse para onde estamos indo, e principalmente gostaríamos de investir nos afetos, nos amores, confiando neles”.

Desta forma, Pondé conclui ao apontar que, desnorteadas, boa parte das pessoas já percebeu já percebeu que a lei de rapidez e troca que opera em todos os lugares também opera nos níveis elementares da vida, inclusive na parte afetiva. Tempos difíceis pela frente, de acordo com o autor, mas que justamente por isso podem reservar respostas interessantes (muito embora imprevisíveis).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

PONDÉ, Luiz Felipe. Invenção do Contemporâneo: Diagnóstico de Zygmunt Bauman para a Pós-Modernidade – In Café Filosófico. Campinas: CPFL Cultura, 2011. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=qx-tRVyMphk >. Acesso em 26 jun. 2016.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.