Quando Freud, pai da psicanálise, percebeu que fazia parte daqueles que “perturbaram o sono do mundo” descobriu ali a força de sua teoria. A fim de perpetuar suas ideias sobre a psicanálise, passou a se reunir juntamente com um pequeno grupo de médicos e intelectuais, em sua maioria judeus. Os encontros aconteciam às quartas-feiras de toda semana, dando origem em 1902 à “sociedade das quartas-feiras”. As ideias ali debatidas eram testadas nas clínicas particulares e os resultados eram compartilhados e discutidos por todos.
Psicanálise ou nova ordem Mundial?
Mas ainda não era o suficiente, Freud queria expandir a psicanálise, se tornando o fundador de uma teoria global oficial e universalizada. Mas com seus poucos seguidores e sem prestígio no meio médico/ acadêmico, esse sonho era quase que impossível. Logo então vemos a figura de Jung, uma peça chave dada a visibilidade que Freud precisava, para que se desse a expansão da psicanálise fora do meio judaico.
O jovem Pupilo
Carl Gustav Jung, depois de formado, resolve ir a Zurique trabalhar e morar numa clínica psiquiátrica, a mais renomada da Europa; Burgholzli, onde conheceu Eugen Bleuler, tendo os primeiros contatos com as ideias de Freud. Se identificando então com a teoria do inconsciente, mas desde aquele momento estava resistente às ênfases dadas à sexualidade. Seu interesse aumenta a tal ponto que ele passa a aplicar em seus pacientes algumas técnicas, que passam a validar a formulações psicanalíticas. Sua curiosidade e interesse pelas teorias eram tantas, que o mesmo resolveu entrar em contato com Freud.
A troca de correspondências.
Inicia-se então em 1906 a troca de correspondência entre Jung e Freud. Esse relacionamento através de cartas durou pouco mais de 7 anos, 11 de abril de 1906 (primeira carta) até 27 de outubro de 1913 (última carta). O biógrafo de Carl Gustav Jung, Gerhard Wehr, aponta em seu livro Jung: a biography que: Após o período de amizade com Wilhelm Fliess, nenhuma outra correspondência de Freud, seja com “Bleuler, Binswanger, Pfister, Abraham, Groddeck, Lou Andréas-Salomé, Reik, Reich, Weiss, Putnam, Ferenczi, Federn, ou Rank – se equipara àquela a qual estabeleceu com Jung, em alcance, profundidade humana, e força de expressividade.” (Wehr, 2001, p. 104).
O nosso modo de olhar a documentação a partir da perspectiva das emoções é plausível por entendermos os mesmos como motores das ações humanas inscritas no tempo. Como um rastro deixado na areia da praia, a emoção, tão efêmera, deixa marcas que se cristalizam: “Ela consiste em um momento provisório, originando-se de uma causa precisa onde o sentimento se cristaliza com uma intensidade particular: alegria, cólera, desejo, surpresa ou medo.” (LE BRETON, 2019, p. 140. As cartas trocadas entre Freud e Jung representam a fertilidade das emoções a qual trazem vestígios das suas vidas e obras.
Transferência e contratransferência
A partir das cartas enviadas podemos enxergar o profundo conteúdo afetivo presente no vínculo transferencial estabelecido entre Freud e Jung, nos permitindo ver desde o início da amizade até o seu fim hostil. Jung demonstrava enorme admiração por Freud, e o mesmo o via como um filho “o príncipe herdeiro” a quem iria transmitir ao mundo a psicanálise, permitindo então a Freud um novo mundo, dando à psicanálise o futuro que ela merecia.
“A importância de Jung ia muito além dos sentimentos e das expectativas das consolidações de ideais de Freud. Para John Kerr (1997) “com efeito, seu papel foi tão essencial que, se fôssemos contá-lo em forma de drama, forçosamente Jung seria o protagonista (…) é ele quem faz a história fluir (…) faz as coisas acontecerem.” (p.11).
O confronto edípico
Dois homens com uma admiração mútua, mas pensamentos divergentes. O que Freud destinava a Jung já não era mais o suficiente e para que ambos pudessem sobreviver fazendo história, constituíram-se dois “impérios”. Leituras teóricas e textos íntimos nos mostram com maior clareza a intensidade, do que regeu o relacionamento dos dois, sendo possível imaginar dolorosas cicatrizes que podem ter se formado em ambos, quando se separaram brutalmente.
“Eram ambas as personalidades demasiado diferentes para caminhar lado a lado durante muito tempo. Estavam destinados a defrontar-se com a defrontar-se como fenômenos culturais opostos. (SILVEIRA, 1997, pg. 15).
Um sonho, um segredo, uma desconfiança
Em uma viagem aos EUA, quando Jung analisa um sonho de Freud, percebeu que se tratava do triângulo amoroso entre Freud, sua esposa e sua jovem cunhada, essa que tempo antes, havia confessado para Jung tal afeição amorosa por Freud. Quando seu mestre apresentava aspectos da sua vida íntima, Jung lhe pediu mais detalhes. Porém Freud frente ao silêncio de alguns instantes encerrou a sessão com as seguintes palavras: “Meu querido Jung, eu não posso arriscar perder minha autoridade” (Bair, 2003, p. 164).
“Nesse momento, entretanto, ele a perdera!” – escreveu Jung em sua autobiografia – “Esta frase ficou gravada em minha memória. Prefigurava já, para mim, o fim iminente de nossas relações. Ele punha sua autoridade pessoal acima da verdade” (Jung, 1961/2006, p. 193).
O que tem por trás de um sonho?
Logo depois percebemos, em uma das experiências onírica de Jung, que o sonho também se tornaria uma forte divergência entre ambos já que, para Jung, “apresentara” algo novo para ele e não “ocultava” algo dele, como queria Freud e sua insistência no desejo de morte. As experiências oníricas deixaram o suíço agradavelmente espantado e propenso a pensar diferentemente da teoria psicanalítica.
Enfim a libido
Quando Jung acabou de escrever Metamorfoses e símbolos da libido, ali já estava ciente que sua amizade com Freud se romperia. Já que nesse livro expôs questões que se afastaram da teoria de Freud, a principal delas foi o papel da sexualidade no desenvolvimento da personalidade e da etiologia da neurose. Ao publicar o livro assinou então o fim da amizade.
No dia 5 de agosto, Jung apresentou à sociedade Psico-médica um ensaio intitulado “simplesmente psicanálise” no qual aplicava o nome de “Psicologia analítica” a “nova ciência psicológica”. Deixando claro as suas divergências com a teoria freudiana da neurose, propondo então que a teoria psicanalítica fosse libertada do ponto de vista puramente sexual.
O fim de um reinado
Na quarta reunião psicanalítica particular composta por 87 membros e convidados presentes, Freud leu uma comunicação a respeito “a disposição da neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da neurose, o que seria um estudo preliminar de Jung para sua importante obra; Tipos psicológicos (1921).O Congresso desenvolveu-se numa atmosfera que Jones descreveu como “desagradável”, e Freud como “cansativa e não edificante”.
Quando Jung se candidatou a reeleição para a Presidência da sociedade Psicanalítica Internacional, 22 dos 52 participantes abstiveram seus votos, para que a sua eleição não fosse unânime. Um tempo depois, em meio a rumores e divergências ideológicas, Jung resolve renunciar o cargo, em uma de suas últimas cartas a Freud.
Duas faces do desejo
Com divergências de pensamentos, Jung se dedica a criação de uma novo saber, a psicologia analítica o que fez com que Ironicamente, anos mais tarde surgisse comentários com um amigo: “Eu nunca me dera conta de como é uma grande piada o fato de que a única análise que Freud fez foi uma junguiana” (Donn, 1988, p. 9).
Jung dizia que o método de interpretação de Freud era analítico, enquanto o seu método próprio era sintético. A diferença de ambos é que o primeiro analisa as partes do conteúdo psíquico de forma a dividi-lo, encontrando na análise de cada parte uma interpretação, enquanto o outro faz uma síntese de todo o conteúdo, prospectando o paciente para o futuro.
O fim dessa relação muito se deu, porque ambas as teorias, são advindas de suas próprias experiências. Seja a energia psíquica ou o desejo que move as coisas, os dois contribuíram de forma significativa para a história da psicologia, fazendo com que hoje possamos enxergar por diversos ângulos, traçando nossos caminhos, construindo pensamentos e fazendo escolhas.
O legado eternizado
Como outras ramificações que bebem da mesma fonte (psicanálise), mas se desdobram em seus próprios frutos, o príncipe herdeiro resolveu deixar o reinado e cravar seu próprio olhar sobre a Psicologia, enquanto o pai da psicanálise deu a base para diversos “filhos” crescerem seguindo seus próprios caminhos. O que levamos de lição e aprendizado dessa história são as fortes emoções e o vasto conteúdo, marcado por devoção, aprendizado, personalidades e resistências.
Como já dizia Carl Jung no final, o que importa é sermos uma alma humana tocando outra alma humana, ao reforçar de Freud que a felicidade é um problema individual, cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.
REFERÊNCIAS
GUIRE, William Mc (org.). FREUD/JUNG: correspondência completa. Rio de Janeiro: Imago, 1999. 658 p. Disponível em: file:///C:/Users/Diana/Downloads/McGuire%20-%20FREUD%20&%20JUNG%20-%20Correspond%C3%AAncia%20Completa.pdf. Acesso em: 18 nov. 2021.
MORTIZ, Rafael Ernest. Um estudo sobre: o relacionamento e a ruptura de freud e carl gustav jung. 207. 267 f. TCC (Graduação) – Curso de Psicologia, Pontifícia Universidade Catolica, São Paulo, 2007. Cap. 27. Disponível em: file:///C:/Users/Diana/Downloads/Rafael%20Ernest%20Moritz.pdf. Acesso em: 15 nov. 2021.