Eu não estou sozinha: os desabafos após um relacionamento abusivo

Como um relacionamento abusivo pode impactar na recuperação da vítima, que permanece em sofrimento após o fim.

Relato anônimo

Eu tinha dezoito anos quando experienciei um relacionamento que, a princípio, foi a melhor coisa que já havia me acontecido. Ainda existe muito isso, essa confusão sobre o que é o amor, sobre como demonstramos o amor, e com ela vem o perigo: o disfarce entre abuso e carinho. Entrar nessa situação é extremamente fácil, parece o correto a se fazer, porque você está sendo muito bem cuidada e é o homem da sua vida. Por outro lado, sair é a decisão mais difícil que você precisa tomar, ainda que seja a melhor.

Relacionamentos abusivos são caracterizados por comportamentos e dinâmicas prejudiciais, onde uma pessoa exerce poder e controle sobre a outra, geralmente através de abuso emocional, físico, sexual ou financeiro. Esses tipos de relacionamentos são extremamente prejudiciais e podem ter consequências negativas tanto para a vítima quanto para o agressor. Os relacionamentos abusivos podem ocorrer em diferentes contextos, como namoro, casamento, parcerias domésticas ou relacionamentos entre familiares. É importante destacar que tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas de abuso, e os agressores podem ser de qualquer gênero.

Lembro-me de me sentir cega, já que todo mundo parecia enxergar tanta coisa e eu não. Também recordo-me de me afastar aos poucos de todos ao meu redor, porque não aguentava tanta pressão, comentários e confusão em minha mente. Quando você percebe está sozinha. Sem amigos, sem família, ninguém sabe o que está acontecendo. Tudo começou com as redes sociais. Uma vistoria completa no celular, indagações absurdas sobre minhas intenções, acusações, até que tudo o que havia era culpa. Culpa por ter causado um desentendimento, por não entender as necessidades do meu parceiro, por errar tanto, por ter amigos, por tudo.

Ele se tornou controlador, exigindo que eu compartilhasse todos os detalhes da minha vida, controlando minhas interações com amigos e familiares. Eu me sentia presa em suas mãos, e qualquer tentativa de resistir às suas demandas resultava em explosões de raiva e ameaças. 

Então o próximo passo era a punição, o sumiço que se seguia, sem responder mensagens, sem atender ligações, apenas o bom e velho “gelo”. A punição era o suficiente para gerar desespero e aumentar a culpa. Nessa época, não sentia que poderia contar nada a ninguém. Nova e ingênua, acreditava que os relacionamentos eram assim mesmo, que isso era o amor, e que aos poucos íamos nos encaixando e resolvendo as divergências. Passei a controlar todos os meus passos, a omitir informações e até mesmo a mentir sobre assuntos que certamente causariam atritos.

Esse foi um grande erro, porque é muito fácil se sentir culpado sabendo que está fazendo algo errado. Então tudo era minha culpa. Sentia-me incapaz de ser namorada de alguém, de fazer alguém feliz, sentia-me substituível e inferior às outras mulheres, afinal, por que todo mundo conseguia se relacionar amorosamente e eu não? Do meio pro fim, os abusos físicos apareceram. Sutis, mas presentes em cada encontro. Empurrões e tapas “de brincadeira” eram, de repente, sua forma de demonstrar amor. Além disso, haviam os insultos, as provocações, as brincadeiras de mal gosto.

Aos poucos, essas frases entram na cabeça, sabe? A gente realmente acha que não é mais capaz de encontrar outra pessoa. E, ainda, acha que todo mundo tem defeitos, assim como ele tem os dele. Sem mencionar os comentários sobre nossa aparência física, que sempre existem, apenas para nos inferiorizar ainda mais na relação. O fim, de fato, aconteceu. Com dezenove anos me vi livre dessa relação por completo, já que ele nem mesmo morava na cidade. No entanto, não sabia dos prejuízos que esse relacionamento deixaria em mim: nas marcas profundas que me levaram anos para cicatrizar.

Imagem de uma mulher fragmentada.
Fonte: Pixabay

As críticas constantes começaram a minar minha autoestima. Ele me humilhava, me fazia sentir inadequada e repetia constantemente que eu não era boa o suficiente. Eu comecei a duvidar de mim mesma, questionando minha própria identidade e valor como pessoa. A sensação de viver sob constante vigilância me deixava ansiosa e insegura.

Eu me sentia aprisionada em um ciclo vicioso de amor e medo. Apesar de todos os abusos, eu ainda acreditava que havia algo de bom nele, que talvez ele pudesse mudar. Eu mantinha a esperança de que o homem gentil e carinhoso que conheci no início retornasse. Essa esperança me manteve presa por muito tempo.

Soares (2005) abordou o assunto dizendo como o fim de uma relação violenta pode durar anos, já que muitas mulheres permanecem com seus parceiros por ameaças, esperam mudanças de seus comportamentos e possuem vergonha de assumir o fracasso da relação. Por isso, sempre imagino o que teria acontecido se eu não tivesse a oportunidade de sair desse relacionamento, de ter permanecido tão pouco tempo, o que já foi suficiente para deixar marcas em mim.

Com o tempo, a gente fica inseguro para amar novamente. Nunca somos bons o bastante, nosso corpo não é bom, nosso “jeito” não é bom e não somos suficientes para ninguém. Isso é um mal que acontece com muita gente depois de uma experiência assim, eu sei disso, mas é um processo tão individual e que, infelizmente, não tem uma receita de bolo para superar. As marcas permanecem, a desconfiança, a baixa autoestima, o sofrimento, tudo isso permanece com a gente, mesmo depois que ele já foi embora.

A gente se fecha para o mundo, ninguém pode ver nossos defeitos como ele viu tão bem, não podem reparar nas falhas. E é assim que nos esquecemos que pessoas reais possuem problemas reais, que aquelas características não eram defeitos, mas uma forma deturpada de se relacionar com outras pessoas. Que o problema não está em mim, não está em você, mas está nele. Mesmo assim, a insuficiência que sentimos é devastadora, afeta todos os nossos relacionamentos, nosso desenvolvimento enquanto estudante, profissional e pessoa.

Deixar o relacionamento abusivo foi o começo de um longo processo de cura e reconstrução. Levei tempo para reconstruir minha autoestima, aprender a confiar novamente e estabelecer limites saudáveis em meus relacionamentos futuros. Encontrei apoio na terapia, onde pude compartilhar minha história e receber o suporte necessário.

Após esse acontecimento, iniciei uma nova relação com outra pessoa. Lembro-me do choque ao perceber a facilidade de me relacionar com ele, do alívio que senti. Não foi nada fácil. Sentia-me insegura, tive dificuldade de me conectar e, principalmente, de me abrir novamente. Acho que isso é típico de quem sofreu tanto nas mãos de quem tanto estimou.

Ainda me dói lembrar da situação, como se aquela pessoa não fosse eu, porque na lucidez de hoje não consigo me imaginar me submeter àquilo. Porém, é assim que funciona. A gente se cega para a situação, acredita que aquilo é afeto, que esse é um jeito especial de demonstrar carinho e amor, que são apenas defeitos de uma pessoa insegura.

Além de mim, quantas mulheres não passaram por isso? Quantas pessoas caminharam lá fora com nada no peito além de incertezas? Quantas feridas foram cicatrizadas de forma dura e dolorosa? Não só isso, quantas mulheres perceberam o início de algo perigoso, mas se submeteram por se enganarem?

Fonte: Imagem de sweetlouise no Pixabay

O assunto também é abordado por Edwards (2011), ao alegar que entre 31% a 85% dos relacionamentos abusivos continuam por um tempo após o primeiro incidente de abuso. É importante lembrar que a vítima nunca é culpada pelo abuso e que deixar um relacionamento abusivo é um processo complexo e desafiador. É essencial oferecer apoio, compreensão e recursos para as pessoas que estão em relacionamentos abusivos, para que elas possam encontrar a coragem e os recursos necessários para buscar uma vida livre de abuso.

A psicologia desempenha um papel fundamental no entendimento e abordagem dos relacionamentos abusivos. Os relacionamentos abusivos são compreendidos como um padrão de comportamento disfuncional e prejudicial, que envolve desequilíbrio de poder e controle.  É crucial buscar apoio emocional e profissional durante a jornada de reconstrução. Isso pode incluir terapia individual, grupos de apoio ou aconselhamento especializado em violência doméstica. O apoio de amigos, familiares e redes de suporte também é valioso nesse momento.

Após um relacionamento abusivo, é importante dedicar tempo para refletir sobre suas experiências, identificar os padrões abusivos e reconhecer o impacto que tiveram em sua vida. Esse processo de autoconhecimento permite aceitar o que aconteceu e começar a trabalhar na reconstrução.

Lembre-se de que cada pessoa tem seu próprio ritmo de recuperação e reconstrução. Não há um caminho único e definitivo. Permita-se tempo para curar, seja gentil consigo mesmo e celebre os pequenos progressos ao longo do processo. A reconstrução da vida é um processo contínuo, e com o apoio adequado, é possível alcançar uma vida mais saudável, feliz e plena.Se você está passando por uma situação semelhante, saiba que você não está sozinho. Há ajuda disponível e pessoas dispostas a apoiá-lo. Tenha coragem para buscar esse suporte, pois você merece. 

REFERÊNCIAS

  1. EDWARDS, K. Deixando um Relacionamento de Namoro Abusivo: Uma Análise do Modelo de Investimento e da Teoria do Comportamento Planejado. 2011. Tese ou Dissertação (Tese ou Dissertação Eletrônica).
  2. SOARES, M. B. Enfrentando a violência contra a mulher. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. 2005.
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