Desde o início do semestre que tenho a intenção de escrever um relato de experiência, mas não conseguia definir exatamente o que escrever sobre essa minha intensa e interessante (“a meu ver”) trajetória de vida. Até que decidi compartilhar um pouco aqui sobre o processo de mudança (bem brusca diga-se de passagem) que foi morar fora do país por praticamente seis anos.
A vontade de me aventurar mundão afora me acompanha desde bem nova. Sempre me percebi com esse espírito mais aventureiro, destemido, e enquanto eu cursava o curso de Turismo na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, me ocorreu um insight de trancar a faculdade e fazer a tal aventura tão sonhada. Meus planos eram para ficar um ano em algum país de língua inglesa e voltar e continuar a minha vida normalmente.
Só de escrever esses dois capítulos a emoção gerada em mim não é de se passar despercebida. Foi um momento muito intenso da minha vida, de um medo sem tamanho. Mas a vontade e a curiosidade eram maiores. E com as surpresas que a vida foi organizando pra mim, com a forma como as coisas foram se encaixando, eu fui parar em um dos países mais lindos do mundo… a Nova Zelândia. Naquela época ninguém nunca nem tinha ouvido falar se era de comer ou se era de passar no cabelo como diz minha estimada Professora Thaís Monteiro.
E lá fui eu, cheia de expectativa, sentimentos mistos de euforia, preocupação, medo. Tinha o mínimo do básico de inglês na bagagem, só aquele tantinho pra não passar fome como dizem as pessoas. No meio de tudo isso sem mesmo me dar conta, estava acontecendo um processo de luto em mim, um sentimento enorme de perda, de conexões, da família, de tudo o que representava segurança, sem falar na questão da nossa língua materna, cultura e status social. Meu único amparo (e foi um enorme porto seguro pra mim), era meu namorado, que hoje é meu esposo, que decidiu fazer essa “loucura” comigo.
Acho importante entendermos aqui o conceito de luto mais abrangente, e como uma pessoa que sai do seu país para morar em outro passa por um processo que abala muito a sua estrutura psicológica e emocional. Luto é geralmente empregado para descrever a dor associada à morte de um ente querido, mas, na verdade, o luto ocorre cada vez que há uma perda de qualquer natureza.
Trago uma citação de Mark Twain que representa bastante esse conceito mais amplo: “Nada que nos aflija pode ser chamado de pequeno: pelas leis eternas da proporção, a perda de uma boneca por uma criança e a perda de uma coroa por um rei são eventos do mesmo tamanho.”
O luto inclui inúmeras perdas, você pode sofrer por perda de bens (casa, móveis, roupas), perda de seu emprego, perda de sua identidade, de um relacionamento, perda de sua rotina, perda de um animal de estimação, perda de seus hobbies. A lista pode parecer infinita …
O psiquiatra catalão Joseba Achoteguy foi o primeiro a descrever melhor esta perda e o chamou de Luto Migratório (ou Síndrome de Ulisses, alusão ao mítico herói grego da Guerra de Troia).
Ele aponta sobre o sofrimento da pessoa que sai do seu país de origem e sofre do chamado “choque cultural”, experimenta uma enorme nostalgia e saudades do país, e acaba ficando só, longe dos seus familiares, dos seus amigos, vivendo numa cultura estranha, desenraizado de si mesmo e se deparando com uma realidade que lhe é hostil, bem diversa daquela que imaginou antes de deixar a sua terra natal (MENDES JÚNIOR, 2007).
É importante reconhecer quando você sofre de luto, e enxergá-lo como um processo de adaptação psicossocial, que de acordo com Bibeau et al. (1992), se desdobram em dois momentos durante a imigração: “o tempo da ruptura”, no qual se contrapõem as expectativas, as referências do imigrante sobre a realidade do país de acolhida, e o “o tempo da continuidade”, no qual, pouco a pouco, o imigrante vai construindo seu cotidiano e se integrando ao novo país.
Minha vida nunca mais poderia ser a mesma depois dessa mudança. Quando chegou perto de completar um ano (eu estava com 20 anos de idade) não me via voltando. Aquilo que eu tinha vislumbrado era maravilhoso demais pra voltar. Mesmo com grandes dificuldades de adaptação, depois do primeiro ano e depois de ter mudado de cidade três vezes, eu tinha começado a pegar o jeito da coisa, então decidimos ir ficando. O pior que me poderia acontecer era perder o vínculo com a Universidade, pois meu curso tinha ficado trancado, mas decidi que depois retornaria quando achasse que fosse a hora e buscaria refazer este vínculo.
Quando estava planejando esta viagem, a ideia era fazer um curso de inglês lá, trabalhar de babá ou garçonete, e essa imagem lindinha que temos (ou eu tinha) de pessoas que vão fazer um intercâmbio fora do país era simplesmente uma grande noção inocente.
Os cursos de inglês eram caros demais, e babá e garçonete eram trabalhos que praticamente só os próprios neozelandeses ou estrangeiros com inglês bem avançado conseguiam. Eu fico rindo comigo mesma aqui enquanto escrevo, de imaginar minha inocência e como a versão foi bem diferente.
Trabalhei como faxineira, em colheita de kiwi, em fábrica que preparava a exportação do kiwi, e o auge do primeiro ano foi de empacotadora em um supermercado. Mas o inglês estava fluindo, demais inclusive. Depois desse primeiro ano as oportunidades foram incríveis… fui melhorando, aprendendo, convivendo com pessoas maravilhosas do mundo inteiro, eu estava como uma esponja, absorvendo, minha cabeça já tinha mudado completamente. E depois de um tempo e com o idioma já bem melhor estabelecido, e ganhando bem, trabalhei como vendedora, supervisora, e no último ano me tornei gerente de uma loja que vendia móveis e artigos de design de interiores. Morávamos literalmente no paraíso, e o mais incrível é como as pessoas em um país desenvolvido têm uma qualidade de vida tão boa, independente da sua situação financeira. Existe muito pouca desigualdade. Pra você ter um carro bom, morar numa casa boa, viajar, você pode trabalhar de qualquer coisa. É maravilhoso!
Porém, durante estes seis anos, a angústia da volta ao lar me acompanhou diariamente. Você vai sentindo um abismo emocional tão imenso, que a distância física parece pequena. O sentimento de pertencimento das suas raízes te chama. Para algumas pessoas pode não ser assim, mas estar mais perto dos “seus”, se relacionar com pessoas com a mesma cultura, que falam a mesma língua que você, que têm valores parecidos, que com todos os defeitos que o nosso país têm ele é a nossa pátria, é algo até difícil de explicar.
Nas datas comemorativas, como natal e ano novo, ficava muito nítido isso ao meu redor. Como moram muitos imigrantes lá, dava pra perceber nas pessoas conhecidas que o sofrimento de estar longe dos seus amados era potencializado nesses dias.
Ainda hoje quando conto um pouco dessa trajetória, as pessoas perguntam o porquê de voltar, porque realmente motivos pra ficar não faltavam. Dentro dos seis anos vim somente uma vez visitar, e meus pais foram uma vez pra lá. Viajamos pela ilha sul inteira, e eles ficaram tão maravilhados com o que viram e experimentaram lá que até se conformaram com a possibilidade de minha estadia ser mesmo permanente naquela terra maravilhosa do “Senhor dos Anéis”.
Finalmente criamos a “tal da coragem” pra voltar, agora revivendo novamente as angústias e os medos… os colegas brasileiros falavam: “um ano no máximo é o prazo pra vocês estarem de volta aqui”, porque o Brasil isso, o Brasil aquilo…sim, realmente, existem muitas justificativas e é uma decisão bem difícil tanto pra quem vai quanto pra quem fica… ônus e bônus.
Mas o Brasil é a nossa pátria. Se readaptar foi sem dúvida muito mais fácil do que a primeira experiência, mas ainda assim bem desafiadora. Essa pulguinha atrás da orelha, essa vontade de explorar esse mundo de meu Deus não acabou ainda dentro de mim… mas ela está aqui, contida, suprimida por outros lindos projetos de vida. Quem sabe essa foi a primeira e última vez, ou não, mas por enquanto deixo aqui um pedacinho de mim pra quem se interessar em ler, de uma faceta dessa história, da minha experiência de ruptura brusca com o que me era confortável, e um pouquinho deste processo.
Sou muito grata a todas as vivências experimentadas naquele país tão lindo, que me permitiu evoluir tanto como pessoa! Eu vivi o meu luto, ressignifiquei ele, e superei.
Para definir o que seria então este processo de um luto saudável, recorro aqui ao trabalho do renomado psicólogo John Bowlby.
O luto saudável é primeiro aceitar a mudança e, portanto, considerar que voltar atrás não é uma opção. Em segundo lugar, é fazer mudanças apropriadas em seu mundo interior e encontrar um novo equilíbrio. Como resultado, você pode distinguir quatro tarefas no processo de luto (adaptado dos estudos do professor William Worden):
– Aceitar a realidade da perda;
– Trabalhar com a dor da tristeza;
– Ajustar-se ao novo ambiente após a perda;
– “Integrar” emocionalmente a perda dentro de você – dando-lhe um pequeno lugar no seu coração – e reinvestindo esta energia em outras atividades.
Segundo Anne Gillme, terapeuta que trabalha na Austrália com superação de desafios de pessoas que vão morar fora de seu país de origem, cada processo de luto é único. E não existe um período padrão de luto. Ainda mais porque a mudança de país envolve dois tipos de perdas: perda definitiva e perda ambígua. Ambos produzem efeitos diferentes.
Uma perda definitiva é uma perda evidente, como vender sua casa ou desistir de seu emprego, e que embora não haja dúvida de que tal perda pode ser extremamente dolorosa, há um encerramento.
Uma perda ambígua por outro lado, é caracterizada por uma ausência física e uma presença psicológica ou vice-versa.
Deixar seus pais para trás, por exemplo, é um exemplo típico de perda ambígua. Você perde a proximidade da relação (refeições juntas, encontro diário, festas de aniversário). Você não tem mais a presença física. Por outro lado, você mantém seus pais em sua mente. Eles estão sempre psicologicamente presentes.
Pauline Boss, que estuda a perda ambígua há mais de três décadas, argumenta que a perda ambígua é o tipo mais estressante de perda porque não há fechamento. A ambigüidade gera uma mistura de emoções, muitas vezes opostas como amor e ódio, esperança e desespero.
Quem já passou por isso pode entender perfeitamente o que escrevo. E para quem ainda não, mas tem vontade de experimentar, só tenho a dizer que é uma experiência muito enriquecedora de autoconhecimento, de se desligar da sua zona de conforto e procurar estabelecer sua identidade com mais espaço. Vejo que para nós brasileiros isso parece uma tarefa mais difícil. Por sermos latinos, temos uma proximidade absurda com as nossas famílias, (em alguns casos, essa proximidade é até tóxica), e este emaranhamento nos arranjos familiares não encoraja os jovens a sairem do ninho, e os pais vão repetindo o ciclo de buscarem que os seus filhos estejam bem próximos, e que de preferência, mesmo depois de adultos e suas famílias formadas ainda possam exercer muita autoridade em suas decisões. Fico pensando no coração dos meus pais, que tiveram que experimentar essa angústia de um passarinho voar do ninho pra bem longe e gritar sua independência tão cedo. Em outras culturas isso é muito mais comum.
E no final o que acontece é sentir tanta saudade do país de origem a ponto de regressar e, uma vez de volta, começar a sentir a mesma saudade do país que se deixou, e isso pode gerar uma sensação de profunda confusão e um intenso sofrimento.
Sentir-se ambivalente, ressaltando as maravilhas de um lugar quando se está em outro e vice-versa é parte do processo. E o que é a saudade senão ambivalência, “ruim” e “boa” ao mesmo tempo, uma mistura dos sentimentos de perda, falta, distância e amor.
O processo de morar fora é, talvez, uma das mudanças mais drásticas que uma pessoa pode experimentar. Como qualquer outra mudança, contempla riscos e benefícios, perdas e ganhos.
Integrar as perdas, aprender a viver com e apesar delas, requer um processo de coragem e uma boa elaboração de reorganização interna, que pode resultar em um belo desfecho. Finalizo com um pedacinho da música de Leonard Cohen chamada Anthem que diz: “There is a crack in everything, that´s how the light gets in”.
REFERÊNCIAS:
APEGO e perda ambígua: apontamentos para uma discussão, Pepsic, 2006, disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482006000200008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 15/11/2021.
TRAD, L.A.B. Processo Migratório e Saúde Mental: Rupturas e Continuidade na vida Cotidiana. Revista Saúde Coletiva, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/gM7w4XGyhPfktmY5VLZsZwj/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 15/11/2021.
THE chocking truth about changing country, Globiana, disponível em: https://globiana.com/the-shocking-truth-about-changing-country-expatriate-connection/. Acesso em 09/11/2021.
SILVA, J.C.L. D; PADILHA, N.S.; LAMY. M. A “Síndrome de Ulisses” e a Medicalização dos Movimentos Migratórios, Furb – Revista Jurídica. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/7927-1-34594-1-10-20201221.pdf. Acesso em 15/11/2021.