Antes mesmo de pensar em fazer medicina, o tema “psiquiatria” já era algo que me trazia a mente temas um tanto quanto polêmicos e vários dos “tabus” da sociedade. O que vinha à minha mente eram coisas do tipo “médico de louco”, “mexer com gente estranha”, “médico de desocupados” e por aí vai, numa lista que com a maior das certezas encheriam folhas e mais folhas. Isso, como era de se esperar, me fez ter certo receio de basicamente tudo que começasse com o radical psi. Psiquiatra, psicólogo, psicanálise, psicose, todas essas eram palavras que sem sequer saber o que significavam, eu tinha a maior das certezas de que seriam “Bichos de Sete Cabeças”.
Mas aí veio a faculdade, e todos os novos conhecimentos que ela nos traz. É algo equiparado a uma reforma, onde saímos de nossos “casebres” construídos durante os anos iniciais de nossa formação e vamos a cada dia colocando um “tijolinho” na construção da imensa “mansão de inúmeros quartos” de que, ao menos supostamente, devemos sair da graduação superior, com todos os quartos lotados de informação que contribui para o nosso futuro.
E os períodos foram passando, e as matérias foram aparecendo. Com a disciplina de psicologia fui tirando da minha cabeça muitos dos conceitos errados que todo aquele “trauma de infância” criou em mim. Foi então no 6º período que realmente tive o contato com a psiquiatria, e foi nesse momento que percebi que não há tabu algum na palavra e que o termo “saúde mental” é algo que realmente cabe ao médico, assim como a várias outras áreas de atuação na saúde.
Aprendi sobre as reformas psiquiátricas, sobretudo no Brasil, e sobre uma variedade de conceitos que trouxeram um pouco de luz e grandes quantidades de entendimento (além de algum desespero durante as provas). Entendi realmente qual a função do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), e os motivos que o levaram a ser idealizado dessa forma. Conceitos como desospitalização (retirar o paciente do ambiente hospitalar), desmedicalização (não recorrer somente a saberes médicos), interdisciplinaridade (vários profissionais da saúde trabalhando de forma conjunta) e horizontalização (não há uma pessoa no comando, todos os profissionais são aptos a intervir) foram escolhidos como eixo norteador para acabar com aquela antiga e ultrapassada, além de chocante é claro, ideia de que os “loucos” deviam ficar trancafiados e isolados nos manicômios. Na teoria isso tudo me parecia tão ideal e tão perfeito que por um momento acreditei que isso realmente havia sido um avanço único no campo da medicina, e que isso realmente integraria as pessoas tidas como “loucas” à sociedade. Mal podia esperar, no entanto, pra descobrir o meu ledo engano.
Após algumas semanas de aulas teóricas começaram as aulas práticas, e foi quando pude perceber que realmente tudo aquilo que aprendi e a forma que imaginei um CAPS em plena função ficariam apenas na minha cabeça. O primeiro contato foi agradável, a unidade do CAPS que visitei era relativamente nova, com amplo espaço, vários consultórios e uma distribuição de espaços que fazia inveja a muitos locais de lazer. Nesse ponto realmente não havia do que reclamar, a unidade fazia jus a praticamente todos, se não todos, os padrões que a literatura preconizava.
Então onde estaria os “erros” que me fariam entender que grande parte do que se passava na minha cabeça sobre o CAPS ideal era apenas uma utopia? Justamente nas “engrenagens” que deveriam ser as movimentadoras daquela “máquina”: as pessoas. E as coisas que aconteciam eram inaceitáveis, pelo menos para a minha opinião, pois eram absolutamente opostas ao proposto pela Reforma Psiquiátrica e pelos ideais de criação do CAPS. Tentarei citar o que vi de acordo com aqueles eixos que apresentei anteriormente no texto, de modo a tornar a leitura mais lógica.
A horizontalização, que defende a igualdade entre todos os funcionários do CAPS e onde não deve haver uma liderança única e concentrada, para mim, foi o eixo que está mais abandonado dentro da unidade com que tive contato. Nela o médico ainda é considerado o “detentor onipotente” do poder, e os demais profissionais se organizam em uma “escadinha” sob a sombra do poder do médico. Não sei dizer o motivo de tal problema acontecer, mas acredito que seja por um “mau costume” herdado das demais esferas de trabalho, e que as pessoas ainda são resistentes em abandonar, visto que passar de “ordenado” para um possível “ordenante” demanda uma grande carga de responsabilidade, que a grande maioria das pessoas não quer ou ainda não está preparada para assumir.
Outro ponto que pode ser colocado nesse eixo é de que todo e qualquer funcionário de uma unidade do CAPS deve estar preparado para lidar com pacientes psiquiátricos, posto que tais pessoas, em sua grande maioria, costumam abrir-se e compartilhar seus medos, inseguranças, experiências e etc. somente com um indivíduo por ela escolhido, por vários motivos, desde afinidade até por fatores ligados a uma carga emocional passada. Mas ainda são poucas as pessoas que dentro do CAPS estão abertas a esse papel, que considero fundamental para o sucesso ou o fracasso do tratamento de um paciente. Quando alguns pacientes tentam se aproximar, esses profissionais, sobretudo movidos pela falta de conhecimento do assunto, tendem a ignorar ou simplesmente evitar essas pessoas.
Em algumas ocasiões pude ver que a proposta da desmedicalização, que procura não recorrer somente a um tratamento farmacológico do paciente incluindo-o também em atividades que promovam o bem-estar e a socialização, foi deixada de lado. Após algumas consultas a decisão médica foi de apenas alterar o tratamento medicamentoso, seja aumentando-o, suspendendo-o ou diminuindo-o, sem tentar considerar abordagens terapêuticas mais brandas, onde o medicamento é utilizado em adição a alguma outra atitude. Mas nesse ponto prefiro não me aprofundar muito, sobretudo pela minha total falta de experiência na área, o que poderia ser uma tremenda injustiça da minha parte.
Para finalizar, comentarei sobre o campo da interdisciplinaridade, que entende que o diagnóstico psiquiátrico, assim como a abordagem e o tratamento, não deve ser algo depositado única e exclusivamente nas mãos do médico, e sim de uma equipe formada por vários profissionais da saúde (médicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas e etc.) que, de acordo com a sua especialidade, decidem por um tratamento mais próximo do ideal. Novamente o que vi foi uma falta de “sincronia” entre tais profissionais, que não trocavam informações e muito menos opiniões em determinadas situações, simplesmente acatando o que o seu “superior”, o médico, decidiu. Poderíamos considerar novamente que essa atitude mostra certo receio do profissional de arcar com a responsabilidade de suas palavras, decisões e opiniões.
Enfim, realmente o que vi nas minhas (poucas, mas comprometidas) visitas a essa unidade do CAPS é que realmente ainda temos que percorrer um longo caminho até que todo o ideal proposto durante a Reforma Psiquiátrica Brasileira chegue a ser um padrão natural de todos os CAPS. O que vale na prática ainda é o antigo “faça o que digo, não faça o que faço”, e fatores como acomodação e medo dos profissionais envolvidos ainda falam mais alto. Acredito que ver tais coisas durante a minha graduação realmente servirão de experiência para evitar ao máximo reproduzir o que acontece no dia-a-dia dessa unidade, e quem sabe fazer a diferença em algum outro lugar. Afinal, burrice não é errar, mas sim cometer os mesmos erros várias e várias vezes!