Um corpo que sente e é sentido: a experiência de transitar a vida durante e depois de um transtorno alimentar

Um relato do começo da minha adolescência com anorexia.
Atenção: esse texto contém relatos sensíveis sobre transtornos alimentares.
Autoria anônima

A adolescência é marcada por diversas mudanças fisiológicas e psicológicas, além de ser uma fase em que a influência das redes sociais é notável. Tendo isso em vista, muitas meninas adolescentes são atingidas pelas demandas da sociedade com relação ao corpo. Neste contexto, o desenvolvimento de transtornos alimentares pode ser um risco, uma vez que a cultura da magreza é posta como algo essencial para o valor feminino e isso é acentuado durante a adolescência.
Segundo Silva e Daniel (2020) os transtornos alimentares (TAs) são condições psiquiátricas determinadas por uma alteração crítica do comportamento alimentar, o que pode comprometer a saúde física e psicossocial. O transtorno que será tratado aqui é a Anorexia Nervosa (AN), que pode ser descrita como um distúrbio no qual o indivíduo faz uma restrição na ingestão calórica em relação às suas necessidades diárias, chegando até a parar de comer completamente. O temor persistente com o ganho de peso e a desordem na percepção do próprio corpo é uma característica observada em pessoas que apresentam esse transtorno.

Também existe a bulimia nervosa, que é caracterizada quando o indivíduo tem episódios regulares de compulsão alimentar, desordem na percepção do corpo e comportamentos de compensação pelo alimento ingerido durante a compulsão alimentar. Esses transtornos podem se tornar mais evidentes durante a adolescência devido às mudanças citadas.

Eu fui uma das adolescentes atingidas pela anorexia nervosa, me vi envolvida em demandas que nem sempre foram minhas e recorri ao que estava mais próximo de mim , ou seja, as redes sociais. Quando eu estava no auge dos meus 12 anos comecei a encontrar defeitos no meu corpo e não sabia o que fazer com eles, pra onde levar, como resolver? Vi no Tumblr a saída ideal: parar de comer. Claro que não consegui parar totalmente de um dia para o outro, mas fui aos poucos.

Comecei a não tomar café da manhã, algo que eu gostava tanto, para um sacrifício maior. Tudo o que eu estava fazendo fazia sentido na minha cabeça, se eu não tomar café meu corpo vai ficar com o aspecto mais magro por mais tempo, mas logo isso não foi o suficiente. Depois disso fui procurar dicas em site da internet de como poderia emagrecer mais rápido e encontrei páginas, perfis que além de dar essas dicas postavam fotos de meninas magérrimas (anoréxicas) e de como elas estavam felizes pois conseguiram atingir o objetivo maior, o único que importava, que era o de ser magra.

Parti de não tomar café da manhã para tomar somente água com gelo quando sentia fome e a almoçar sozinha, para que tivesse a cozinha somente para mim e pudesse jogar a maior parte da comida que estava no prato fora. Isso tudo trouxe consequências, me sentia fraca o tempo inteiro, estava irritada, dormia muito e me sentia terrivelmente triste, claro que eu achava que era porque eu não estava magra ainda mas era por falta de nutrientes. Isso não passou despercebido pela minha família.

Meus pais estavam preocupados comigo porque além de estar irritada o tempo inteiro eu estava engordando. Na época isso foi um dos motivos de ter continuado porque pensei como assim não está funcionando? Ficar sem comer por horas e saciar minha fome em “besteiras” parecia o caminho certo, o que mais eu precisava fazer? Recorri novamente à minha fiel plataforma social e procurei mais afundo dicas, formas, jeitos milagrosos de não sentir fome e finalmente emagrecer.

Nisso encontrei novos objetivos para mim que eram como metas, primeiro eu preciso que os ossos da minha clavícula estejam à mostra, depois que minhas pernas não encostem uma na outra, que os ossos das minhas mãos estejam mais acentuados e assim vai. Criei essa rotina de fantasiar meu corpo ideal constantemente quando estava com fome e comer muito pouco quando era obrigada. 

Para as anoréxicas, os limites do corpo quase se apagam diante das circunstâncias em que vivem, do cotidiano de seus relacionamentos, dessa rede de relações concretas e afetivas em que estão submersas. Toda condição e situação que a rigor está matizada nessa imagem disforme que a anoréxica tem de si mesma e que se expressa pela insatisfação com o tamanho do seu corpo e a perda de peso (GIORDANI, 2006).

Depois de um tempo passei a notar pequenas mudanças, meu anel que usava todos os dias não ficava mais no meu dedo, meu cabelo começou a cair, se eu me machucava a ferida demorava o dobro do tempo para cicatrizar, meus ossos da clavícula finalmente começaram a aparecer e o pior de tudo, não conseguia dormir durante a noite. Em meio a essas mudanças, eu sentia vontade constante de não estar viva e não ter que lidar com meu próprio corpo, não queria mais ter os braços que eu tinha, o rosto que eu tinha e os peitos que eu tinha.

Quando aqueles ao meu redor notaram que eu estava mais magra me elogiavam e aquilo alimentava a minha fome, eu pensava que precisava ficar mais magra ainda porque só assim eu seria feliz, eu teria notas boas, eu teria mais atenção dos amigos e vestiria roupas mais bonitas. Além de notar minha nem tão repentina magreza, minha família notou a irritação, os fios de cabelo que eu deixava para trás e a tristeza aos poucos me consumindo.

Em um dia que eu guardei comigo eu fui passear na chácara do meu tio e não tinha me sentido bem daquela forma em muito tempo, peguei sol, tomei banho no lago e fiquei longe do celular. Na volta fui olhando a natureza e sentindo o vento no rosto pensei que talvez a vida não fosse somente sobre o nosso corpo, sobre ser magra, talvez eu poderia pensar em outras coisas. Quando voltei para casa a realidade bateu no peito e senti que estava traindo tudo aquilo que “acreditava” e todas aquelas pessoas que eram da minha comunidade de anoréxicas. 

Enquanto tudo isso acontecia eu já estava mais velha, com 14/15 anos e sentia que estava entrando em um buraco sem fundo, o sentimento de não me encaixar e de ter que emagrecer diminuiu e a tristeza tomou conta. Talvez foi uma consequência do que eu fazia antes ou de onde eu navegava pela internet mas me vi nesse lugar diferente mas muito parecido com antes. 

Minha recuperação só começou porque enquanto eu estava pesquisando sobre como emagrecer ou como não existir mais de forma menos dolorosa eu também encontrava posts que diziam que eu poderia melhorar, que eu precisava de ajuda e que ser magra não é tudo. Procurei ajuda profissional quando senti que não aguentava mais, ou era isso ou não era mais nada. 

Enquanto ia melhorando com a ajuda de medicação, psicóloga e dos meus amigos foi caindo a ficha do dano que eu tinha feito no meu próprio corpo, eu não lembrava de coisas que tinha estudado, não lembrava de acontecimentos importantes e menos cabelo e mais cicatrizes. Apesar de me sentir melhor, ainda existia uma voz na minha cabeça que dizia que eu precisava emagrecer, não era o suficiente ser feliz e me sentir bem, eu precisava daquilo para a minha vida fluir melhor.

Fui crescendo, melhorando, comendo e consequentemente engordando, era uma sensação estranha estar bem e ainda assim não ser magra. Atribui meu peso novo a minha felicidade e ao estar bem com o meu corpo e cheguei a conclusão que quanto mais magra eu era mais triste eu estava e vice versa, isso ia contra tudo o que as pessoas na minha comunidade acreditavam então larguei de vez o aplicativo, exclui todas as fotos de corpos magros que tinham no meu celular e segui a vida. 

Hoje enquanto adulta vejo o real dano que tudo isso fez na minha vida, passei por coisas que ninguém deveria passar e pensei em diversas formas de destruir o meu corpo pouco a pouco, mas ao mesmo tempo me perdoei, porque eu não sabia pra onde jogar a cobrança da sociedade e era muito nova para entender completamente o que estava acontecendo.

A voz que diz que preciso ser magra ainda ecoa dentro de mim, ainda me pego com hábitos alimentares péssimos, me pergunto de onde eles vem e encontro a resposta na adolescente de 15 anos que absorveu tudo o que a cultura da magreza tinha para dar para ela. Mas encontrei pessoas que passaram pelas mesmas dificuldades, aos trancos e barrancos também se recuperaram e hoje temos o que pode ser chamado de rede de apoio para quando tudo isso voltar. 

A influência que as redes sociais tinham sobre mim era imensa, eu estava me vendo como alguém no mundo e me deparei com defeitos e erros que nem sequer existiam visto que eu estava mudando e passando por um processo natural dos seres humanos. Eu me alimentava de ódio pelo meu corpo e por todos aqueles que se pareciam comigo, sem ver o que estava perdendo do começo da adolescência e comprometendo o futuro.

Se você se identificou com esse relato, saiba que é possível se sentir melhor. Busque ajuda e se acolha junto aos seus… você não está só. Abaixo estão as informações sobre como buscar ajuda. Acesse: https://www.wannatalkaboutit.com/br/ e busque por ajuda <3 

Referências

DA-SILVA, Giulia Gomez; DANIEL, Natália Vilela Silva. Relação do uso de redes sociais com risco de transtorno alimentar e insatisfação corporal em adolescentes escolares. Artigo Original,[s. l], p. 1-9, 2020.

GIORDANI, R. C. F.. A auto-imagem corporal na anorexia nervosa: uma abordagem sociológica. Psicologia & Sociedade, v. 18, n. 2, p. 81–88, maio 2006.