Isso não é mais um relato da história de vida de um “louco”, é um relato das emoções, de um homem que tinha paixões que de tão intensas o levou a loucura.
Vicent foi um homem que tinha uma visão diferente do mundo que o cercava, sua vida foi marcada pela intensidade de suas emoções e pela forma como as expressava. Era filho de um pastor e, como seu pai, também queria se dedicar a religião, porém não foi bem sucedido. Não foi admitido na universidade de teologia, fracassou nos estudos da escola missionária protestante e sua dedicação a um trabalho temporário como missionário foi tão grande que desagradou seus supervisores. Nesta ocasião, Vicent distribuiu todos os seus bens aos mineiros a que estava ajudando.
Após se decepcionar com a experiência missionária decidiu se dedicar a arte. A vida religiosa não foi o seu único fracasso, ele era financeiramente dependente, não conseguiu construir uma família e era incapaz de estabelecer relações sociais. Com poucos recursos, passou a ser sustentado por seu irmão mais novo, Theodorus, situação esta que o deixava extremamente angustiado. Em certa ocasião escreveu para seu irmão “… em ocorrer sentir-me já velho e fracassado, com tudo ainda suficientemente apaixonado para não ser um entusiasta da pintura. Para ter sucesso preciso ter ambição, e a ambição me parece absurda. Não sei o que será, gostaria especialmente de viver menos a suas custas – e doravante isto não é impossível – pois espero fazer progresso de forma que você possa, sem hesitação, mostrar o que faço sem se comprometer”. (sic)
Em relação a sua vida amorosa, Vicent também teve várias decepções, durante sua adolescência se apaixonou por uma inglesa por quem foi desprezado. Mais tarde, já adulto, apaixonou-se novamente, agora por uma prima. Chegou a pedi-la em casamento e novamente foi rejeitado. Na tentativa de convencê-la do contrário, ele colocou sua mão sobre a chama de uma lâmpada de óleo até se queimar. Esse episódio de auto-flagelo foi o primeiro a ser relatado sobre sua vida, porém não foi o único.
Seu jeito estranho e hábitos excêntricos não eram bem vistos pela sociedade, seu temperamento não era fácil e suas variações de humor fizeram com que sua amizade com Gauguin, com quem dividiu moradia por dois meses, chegasse ao fim. A rápida convivência entre os amigos teve um ponto final quando, após uma intensa discussão, Vicent foi atrás de Gauguin e o surpreendeu com uma navalha, mas felizmente não chegou a machucá-lo. Vincent voltou para casa e mais uma vez cometeu auto-flagelo: cortou um pedaço de sua orelha esquerda e o enviou para uma prostituta da cidade, com quem tinha um caso.
Alguns dizem que Vicent estava com inveja de Gauguin – que começava a fazer sucesso como pintor; outros dizem que Vicent estava com ciúmes pois tinha descoberto que sua amante estava apaixonada pelo companheiro. Depois deste episódio, Vicent foi internado, permanecendo 14 dias no hospital, e ao retornar para sua casa fez seu auto-retrato com a orelha cortada. A partir de então, passava a ter sintomas psicóticos, achava que várias pessoas queriam lhe envenenar. Assustados, os moradores da cidadezinha onde morava exigiram que ele fosse internado novamente.
Com 36 anos, após ser abandonado pelo seu amigo Gauguin e com o casamento de seu irmão Theodorus, Vicent sentiu-se muito solitário e caiu em depressão. Desta vez, ele mesmo pediu pra ser internado no hospital psiquiátrico St-Rémy-de-Provence. Na ocasião, foi diagnosticado com perturbações epilépticas, porém o médico que o diagnosticou não era especialista. As crises ocorriam de tempos em tempos e eram precedidas de sonolência e seguidas por apatias. Durante suas crises não conseguia pintar. Nesse período, escreveu para Theodorus, “Após a experiência dos ataques repetidos convém-me a humildade. Assim, pois paciência. Sofrer sem se queixar é a única lição que se deve aprender nesta vida”; “Eu me atrapalhei na vida e meu estado mental não somente é como foi abstraído, de forma que independentemente do que fizerem por mim, eu não posso equilibrar minha vida. Quando eu tenho que seguir uma regra como aqui no hospício, sinto-me tranqüilo”. (sic)
No ano seguinte, já com 37 anos, mudou-se para França para poder ficar mais próximo de seu irmão Theodorus. Entretanto, Vicent deparou-se com o irmão em situação financeira medíocre e ainda com um sobrinho doente. Inconscientemente, culpou-se por tudo que estava ocorrendo e continuou com consultas freqüentes ao psiquiatra. E em 27 de julho de 1890, Vicent pegou suas tintas e seu cavalete e foi para um campo onde pintou seu último quadro. Em mais uma de suas crises, atirou contra seu peito e morreu dois dias depois. Ele foi um homem que teve a vida pessoal marcada pelo fracasso, seu jeito esquisito e fora dos padrões o levou para um isolamento social. Houve vários momentos em que demonstrou um desequilíbrio emocional com variações de humor, porém – em meio a toda essa “loucura” da sua vida pessoal – existia um artista excepcional, cujo reconhecimento só aconteceu após a sua morte.
Vicent Willem Van Gogh é, atualmente, considerado um gênio e, para muitos, um dos maiores artistas de todos os tempos. Tinha uma percepção diferente; ele via beleza e arte no que para os outros era comum. Sua paixão pela pintura e suas emoções eram tão intensas que é possível percebê-las em suas telas. Ao contrário de outros artistas, não gostava de pintar em ateliê. Gostava do ar livre, de sentir a emoção do ambiente e gostava, sobretudo, de pintar pessoas. Admirava-as.
Em trechos de cartas enviadas por Vicent a Theodorus ele narra:
“É uma coisa admirável achar um objeto e acho belo, pensar nele, e dizer em seguida: Vou desenhar e trabalhar então ate que eu esteja produzido. Naturalmente, contudo, esta não e ponto de acreditas que não precisava melhora-la. Mas o caminho para fazer melhor mais tarde é fazer hoje tão bem quanto possível, e então naturalmente haverá progresso amanhã”.
“Com tudo prefiro pintar os olhos dos homens, mais que as catedrais, pois os olhos há algo que nas catedrais não há, mesmo que elas sejam majestosas e se imponham a alma do homem, mesmo que seja um pobre mendigo ou uma prostituta, é mais interessante aos meus olhos”. (sic)
A arte de Van Gogh só ganhou notoriedade 10 anos após sua morte, numa exposição de quadros feita por sua cunhada, em 17 de março de 1901. Durante toda a sua vida, Van Gogh só vendeu uma tela.
Paremos um pouco para pensar: qual era a visão desta época? Por que Van Gohg não fora aceito pela sociedade? Por que ele incomodava?
A sociedade em questão era considerada burguesa, valorizando o pensamento racional. Van Gogh viveu no século XIX, época em que o modelo asilar da psiquiatria já tinha se consolidado. Os asilos eram locais para onde iam os indivíduos que fugiam dos padrões éticos e morais da época. Tais indivíduos eram aqueles que viviam na ociosidade, que pensavam e agiam de maneira diferente daquela vigente na época, sendo considerados, assim, loucos. Era mais fácil prendê-los em asilos do que tentar compreendê-los.
Vicent Van Gogh era tão diferente na sua forma de ser, de ver o mundo e de expressar suas emoções, que incomodava a sociedade, a ponto de se tornar detestável e isolado. O que nos intriga e nos faz buscar esses questionamentos 120 anos após a sua morte é que, o perfil da “loucura” para a época era o perfil de Vincent Van Gogh, contudo a visão que se tem dele hoje é completamente diferente. Quem antes era um “louco” hoje é um gênio, um incompreendido. Os costumes mudaram. O que é loucura mudou.
Se for feita uma análise, é ainda mais assustador o fato de que ainda hoje desprezamos o que não entendemos, o que achamos estranho, o que não aceitamos. Os motivos mudaram, mas a prática continua, não mandamos mais as pessoas para asilos mas continuamos a exilá-las das nossas vidas.
E fica a pergunta: daqui a 100 anos, o que será normal e o que será loucura? Qual a visão que se terá da moral e dos costumes do século XXI?
Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.