Kant a partir de um viajante muquirana e friorento

Uma vez me deu vontade de viajar até Kaliningrado. Meus colegas de estudo riram muito, porque diziam que eu estava fou ou que tinha consumido muita substância alucinante. Nem a isso fazia uso, bobocas. Eu queria viajar para Kaliningrado, lá nas botas encontradas do Judas numa ponta de ilha, cidadezinha portuária, uma coisa que fica entre a atual Rússia, Lituânia e Polônia… e no mar Báltico. Para eles a erva estava fazendo efeito… O que faria eu num lugar que fizera parte da Prússia Oriental (todo mundo fala da Prússia, mas poucos se dão o trabalho para buscar nos mapas onde ficava).

Kalinigrado é a antiga Könisberg (do alemão, monte-montanha do Rei), cidadezinha fundada por cavaleiros teutônicos em 1255, era da Prússia, depois da Alemanha, depois de arrasada pela 2ª. Guerra Mundial foi tomada pelos, então, vermelhos, reconstruída e renomeada em homenagem a Mikhail Kalinin, um dos líderes fundadores da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas-URSS. Os colegas tinham certeza que eu iria para lá por causa do bolchevique. Enganados estavam, mesmo que o cara tenha sido um dos responsáveis pela criação Central Sindical dos Trabalhadores Metalúrgicos. Meu afã revolucionário se resumia a uma taça de vinho ou uma Stella Artois básica num bistrô qualquer. Gauche caviar…

Nada disso. Queria ir até que pedaço de fim de mundo para conhecer por onde Kant viveu e morreu (1724-1804). Ficaram loucos! O que um brasileiro tinha na cabeça para ira até a cidade de um filósofo complicado, já morto, e que poucos ousavam entender sua obra?

Eles se esqueceram de uma das primeiras lições ensinadas do mais antigos para nós sobre a filosofia: exercitar a curiosidade. Na atualidade, essa lição está mais nas mãos dos cientistas profissionais e produtores de Lattes em metro. Mas, ainda sentir, perceber, imaginar, entender, compreender, conhecer, questionar, opinar são verbos que refletem substantivos,  possibilitam a análise sobre como exercitar os juízos sobre nós, os outros e o mundo com exemplo de regra entendimento. Adoro quando o velho Kant escreveu, ora coesa ora espalhadamente, sobre a relação do entendimento e a razão. Amo quando espíritos em desassossego (favor não confundir com espíritos perturbados ou obsedados num léxico mais kardeciano) teimam em defender a lei da liberdade sem sequer pensar na relação entendimento e razão a partir do que se vive na natureza com os ditames da moral.

Ainda esse senhor de Köninsberg teve poucos complementos às questões presentes na filosofia (Sobre o que posso pensar? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? O que é o homem (mas voltando isso para mim no conjunto da questão)? Essas questões se fazem presentes quando discutem os profissionais sobre o ensino da filosofia no ensino médio (às vezes, discutem demais, publica  sobre as reflexões e tão pouco é feito nas escolas… mas, fazer o que?). Para o Immanuel, filosofia não se aprende porque ela é uma investigação. Filosofia com respostas prontas para questões que não foram feitas é letra de música desses padres midiaticamente bonitos nos programas de auditórios televisivos afora…

O desejo de viajar para Könisberg era pura Schwärmerei (extravagância) de alguém ainda vivendo um delírio da razão, ou seja, de ter a ilusão sobre a possibilidade do estar realizando o exercício pleno de minha vontade e liberdade. Desregramento puro.

Ir até aquele lugar perdido para encontrar algo da Kant defendia minha crença de que as distâncias seriam todas superadas. Um modelito herdado por nossos colegas platônicos. Projetado na mente, meu querer poderia ser meu poder, um vir-a-ser realizável de imediato. Não bastava apenas fazer o cálculo de distâncias e deixar-me levar por uma razão pura que deseja dominar a realidade por meio de um pensamento matemático. Cálculo de distâncias, valores de passagens, tempo de trens e barcaças, despesas de hotel. Extravagância de um pensamento que se quebraria na realidade.

Havia um entusiasmo, depois que aceitei com o juízo colocado em prática, para saber mais sobre Kant, mas sem o desregramento da extravagância de um deslocamento para uma região cujas temperaturas anuais são baixas, a sensação de estar numa geladeira é constante.

Mas qual era o meu desejo? Um pouco de curiosidade fofoqueira filosófica, isto é, por anos escutava nos corredores das academias (por favor, não dessas de musculação e “bumbunção”… seria prenúncio do fim do mundo se em tais locais Kant viesse a ser refletido e discutido – enquanto esteiras rodam, desculpe pela franqueza…, não é preconceito, vem da experiência de uma razão prática que nesse corpo, um pouco decrépito pela ação do tempo, pegava pesos e caminhava naquelas máquinas que vez ou outra perdiam o controle da velocidade no Brasil) que Kant era um tipinho que tinha uma vidinha regrada, nada fez de diferente e produziu uma obra intensa e vigorosa.

Fonte: domínio público de alguma montagem na internet

Fui aplicando as categorias que ele ensinou. Não fui à Kaliningrado-Könisberg (na verdade, economizei mais dinheiro e fui para um show do U-2 em Oslo). Exercitei minha liberdade. Nas lojas da SNCF riram de mim quando tracei a primeira rota para Kaliningrado. Era muito complicado.

Uma conhecida amante do turismo. Conhecida, não amiga. A distinção entre amigos e conhecimentos passa questões por questões a priori. Conhecidos são como estações de trem. Nós somos os trens, passamos e eles ficam em algum ponto. Sabemos onde se encontram, entretanto poucas são as vezes que fazemos as rotas para passar naquele lugar novamente. Os amigos, que devem ser poucos, passam por outras categorias (talvez num outro momento, reflitamos sobre isso, mas de antemão, adiante-se… sem essa bobeira de “Canção d’América”… debaixo d sete chaves dentro do coração… imagine a hemorragia e demais complicações a intrusão de objetos nesse órgão…!?! Idealismo não é romantismo fantasiado de metáforas).

A conhecida abriu com toda sua bússola racionalista mapas, guias, livros e panfletos que davam referência sobre aquela região: museu de Kant na ilha Kneiphof, Museu do âmbar, passar pelo portão de Rossgarten, ir num navio cujo museu dos oceanos está localizado num rio de nome Pregel, visitar uma catedral católica destruída pela 2ª Guerra Mundial e reconstruída décadas depois, tirar fotografia na frente do teatro e da igreja neo-romântica projetada pro Fritz Heitmann ( e eu lá queria saber de Fritz… queria era Kant), andar pelos partes e longas avenidas que foram construídas sobre o casco viejo da cidade, visitar depois o túmulo de Kant na ilha Kneiphof e ao final, tirar a clássica fotografia ao lado de sua estátua na Universidade. A estátua é de segunda mão, porque a original foi destruída na guerra.

Aquela ideia do filósofo deambulando pela cidade nos seus horários certinhos se perdeu um pouco no meu desejo de viajar para aquele canto. Infelizmente, os soviéticos possuíam um mau gosto para arquitetura que ficar percorrendo pontes, museus e jardim zoológico estava fora de cogitação em minha vida. Essa ideia da Rússia como mátria é cansativa…

Essa ideia de uma cidade estranhamente medieval, ruas escuras e estreitas, espaços fedidos à urina e esgoto a céu aberto… aquelas maluquices que nos chegam à mente se desvaneceu. Decidi exorcizar a cidade de minha cabeça e dos planos de viagem definitivamente. Assim mesmo, fica a satisfação de não ter me metido numa região que no mês de janeiro tudo está abaixo de zero grau, geladeira. É fria!!!

Fui atrás de Immanuel Kant pelas bibliotecas mesmo, naquele tempo internet nem pensar, tinha um primo aposto chamado Minitel, mas nem de longe passava pela concepção dos conteúdos enredados by web.

Kant vem de família pietista luterana. numa cidade que foi reduto de uma nobreza com dias contados numa Europa em transformação. A vida de Kant não foi lá essa velocidade de um relógio de cordas cujo tique-taque está em velocidade alteradamente lenta. Foi menino que estudou para ser homem religioso e predicador, mas a natureza para além das coisas divinas o marcou na leitura do naturista Lucrécio.

Muito novo na universidade Königsberg sai dos eixos teológicos e adentra pelos caminhos da matemática e da física. Tempos newtonianos, não se pode esquecer. Contudo, os revezes da vida ou os “tempos de vacas magras” atingiu sua família. Com a morte do pai, Immanuel foi obrigado a parar os estudos e trabalhar para sobreviver. Foi tutor de crianças e jovens de famílias abastadas por nove anos, viveu em outra cidade por uns tempos, saboreou um pouco do vinho ( e porque não das outras luxúrias da nobreza)  em mais outra viagens antes de retornar àquele finzinho de mundo. Segundo dizem, Kant nunca teve relações sexuais e nunca se casou, tinha uma estatura pouco menos de 1.50 de altura, o tronco apresentava uma deformação congênita e a saúde era bem debilitada, mesmo assim, teve ajuda de um amigo para finalizar seus estudos. Talvez amor, né!

Com sorte e patrocínio desse amigo retornou à universidade, conseguiu finalizar sua formação. E se tornou membro dela como professor e posteriormente, livre docente.

A cidade não ficaria isolada, porque o filósofo solteirão começou a atrair levas e levas de rapazes e senhores interessados em discutir e aprender a partir de suas ideias e obras. Imaginem, pensar num homem que trabalhava com conceitos da geografia, da ciência, da filosofia e da literatura (inglesa e francesa) e a isso, vinha a lógica e uma crítica forte à metafísica.

Ao bradar ao seu estilo a saída de minoridade e entrada para a maioridade dos indivíduos com uma razão fora dos eixos da ortodoxia religiosa acabou comprando brigas com o pessoal do governo e de igreja na qual congregava. Acabou sendo proibido de escrever sobre temas religiosos em 1792 por Frederico Guilherme II. Obedeceu, como rei morto é rei posto, voltou à carga em 1798.

Kant teve suas ideias ensinadas em outras universidades em língua alemã. Isso auxiliou em muita sua divulgação, mesmo que até hoje franceses e ingleses debatam-se com a justaposição de conceitos…

Esse homenzinho feio detonou o racionalismo dogmático e do empirismo imperante dos ingleses. Começou a revisar a relação e efeito no prisma das ciências físicas e nortear outras bases para a metafísica.

Gosto muito do período quando Kant desce literalmente “a taca” nos dogmatismo, isso é deliciosa e complicadamente exposto na Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica da Faculdade de Julgar. A “taca” vai em cima da pretensão humana de construir sistemas de saberes metafísicos sem antes investigar as formas e nossos limites cognitivos, enquanto faculdades. É muito sério quando Kant defende que o conhecimento começa com a experiência mas não é derivado dele, isso tem implicações grandíssimas para aqueles que pensam também que a experiência é fonte iluminadora do pensamento ( o dogmatismo reverso pelos cientificistas…).

Fonte: http://piensaenverdeee.blogspot.com.br/2011/04/actualizamos-kant.html

Daquilo que não se pode ver, tocar e experimentar… meu conhecimento traz pressuposições necessárias. Não toco na liberdade, mas pressuponho-a, tenho necessidade dela. Sou sujeito que necessito de algo que me predique. Sou ser de relações, que tenho um conhecimento a priori mas que precisa também estabelecer na estrutura de meu conhecimento critérios para uso da experiência como aprendizagem.

O velho Kant deveria ser lido pela “tchurma” dos heteronormativistas e homonormativistas: a moral de uma razão é o que rege nossa atuação, o que comprova ou não se possuímos capacidade para ação. Assim, comportemo-nos de forma igual a que esperamos que os outros se comportem em situação semelhante.

Kant continuou em minha vida. Ele adere, mesmo que se queira esquecer de sua presença. Quem sabe se me apaixonar fortemente um dia não aquela terra distante por prazer da razão.

Referências para leitura:

http://jecelo.com/Livros/Dreamweaver/Arquivos/C/Cr%C3%ADtica%20da%20Raz%C3%A3o%20Pr%C3%A1tica%20-%20Emanuel%20Kant.pdf(Crítica da razão pura)

http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/razaopratica.pdf