Loki e a volatilidade do trickster

 

Loki, na mitologia nórdica, é o deus da trapaça, do fogo, das travessuras e suas narrativas estão fortemente ligadas à magia e seus feitos vão desde ser um gigante de gelo adotado em meio aos aesires em Asgard, a estar presente em todos os principais momentos chave na cosmogonia escandinava, alterando a estrutura do mundo ao seu redor e influenciando os seres mitológicos que vivem ali consigo, de maneiras mais positivas até às mais desastrosas (GAIMAN, 2018). 

No universo dos quadrinhos o personagem foi concebido por Stan Lee (1922-2018), Larry Lieber (1931-Presente) e Jack Kirby (1917-1994), baseado no deus nórdico e entrando em conflito direto com os vingadores, sendo inclusive responsável pela primeira reunião dos heróis em uma equipe, sua primeira aparição se daria em Journey into Mystery #85 (1962).

Loki e sua primeira aparição nos quadrinhos – Fonte: encurtador.com.br/kNUW9

Nos cinemas, sua primeira aparição se deu em Thor (2011), no filme que retrata a origem do deus do Trovão. Loki e sua concepção conturbada são apresentados ao público como a de um ser milenar e poderoso, que foi adotado na benevolência do rei dos deuses Odin, ao longo do filme, ele descobre seu passada e a verdade sobre ser filho dos piores inimigos de Asgard, os gigantes de gelo, e isso gera revolta tremenda. Tamanha inconformidade com este fato o leva a optar por se entregar ao vazio do espaço ao final do filme, ao perceber que jamais seria o herdeiro do trono dos deuses, papel esse destinado a Thor.

Essa concepção hollywoodiana, no entanto, não deixa no entanto a desejar no aspecto retratação da personalidade de Loki, como o deus da trapaça. Ele é intempestivo, volátil, e principalmente imprevisível. A maioria dos personagens ao seu redor passa a maior parte do tempo tentando lidar com as intrincadas tramas desenvolvidas por ele, escapar das maquinações e muitas vezes até das pegadinhas. Isso favorece alguns questionamentos, como por exemplo, porque a personalidade deste personagem é assim e porque é retratado de forma tão contundente assim; a resposta está no arquétipo do Trickster. 

Tom Hiddlestone como Loki em “Thor (2011)” – Fonte: encurtador.com.br/ewGOX

O Trickster em Asgard

Ao estudar a psicologia analítica é possível identificar dentro do conceito dos arquétipos uma variedade quase infinita de representações, entre elas consta o Trickster. Queiroz (1991) essa figura arquetípica se pode associar com personagens de característica ardilosa, astuta, desonesta ou cômica, seriam aqueles heróis embusteiros ou o pregador de peças. O autor destaca também que o termo trickster vem do francês tricherie – que quer dizer algo entre trapaça, falcatrua ou engano – e que esses personagens míticos podem estar associados a um conceito de neutralidade moral, pois seus feitos podem prejudicar ou beneficiar as pessoas e o mundo a sua volta, devido a sua natureza dúbia.

Esta figura atua sem limites e sem qualquer lei que não seja a do próprio desejo. Por esta razão, pode-se dizer que o trickster costuma representar a antítese de valores culturais estabelecidos e integrados pela consciência coletiva em forma de rituais, e então, quando surge, personifica a antítese da atitude culturalmente esperada. Até o corpo do trickster não é uma unidade integrada, separando-se frequentemente em partes autônomas ou então metamorfoseando-se. Loki, por exemplo, é capaz de transformar-se em fêmea e se metamorfosear em vários animais (…) (ALVES, 2016, p.75)

Na mitologia nórdica nenhum outro ser se enquadra melhor no arquétipo do trickster do que Loki, o deus do fogo e da trapaça. Em toda sua trajetória este se vê atuando de maneiras absurdamente contraditórias; ora é retratado junto aos aesires indo em direção a batalhas ferozes ou ajudando Thor a recuperar seu martelo perdido, ora está se rebelando, concebendo filhos mortais – pois é retratado como um ser de gênero fluido e de forma abstrata quando deseja – e começando o equivalente ao apocalipse cósmico escandinavo:

Seja na mitologia nórdica de maneira geral, seja no círculo de Asgard, o lugar ocupado por Loki é de certa forma intrigante. Ele tem um papel de destaque na maioria dos mitos nórdicos conhecidos por nós nos dias de hoje. Considerando o material produzido por Snorri Sturluson como única fonte, Loki talvez seja o personagem de maior destaque entre os deuses do norte, o principal ator nas estórias divertidas e também a força motivadora em um bom número de tramas. Ele traz ao reino dos deuses tanto a comédia quanto as grandes tragédias (…) (ALVES, 2016, p.73)

Representação ancestral de Loki – Fonte: encurtador.com.br/adeG6

A inconstância nas interações do deus da trapaça são sua marca registrada e é aí que mora o trickster nessa narrativa, um ser que é livre de certa forma e exerce essa liberdade interagindo de diversas maneiras com o mundo ao seu redor. Tanto no caso de Loki, quanto no caso de outros tricksters de outras culturas. Vide Exu na cosmogonia Iorubá (DE ALMEIDA GABANI; SERBENA, 2015) que atuava como observador da humanidade entre suas vilas, ou mesmo Hermes da cultura greco-romana que era mensageiro dos deuses e divindade relacionada a medicina e aos viajantes (BALIEIRO, 2015), ambos podem ser identificados nesse arquétipo e mostram como as sociedades ancestrais que conceberam esses mitos vislumbravam essa figura arquetípica.

A Lição do Trickster

Tanto nas mitologias quanto nas narrativas cinematográficas em que está presente, um ponto em comum na narrativa do trickster e em sua interação com os que o orbitam fica evidente: ele coloca os personagens, o mundo e a história em movimento. Loki é ao mesmo tempo um inimigo infiltrado, um filho, um grande irmão, um anti-herói. 

Ele é o responsável por colocar a história em movimento auxiliando os deuses, sendo parceiro, amigável, mas em uma de suas piadas mais cruéis, mata o deus Balder e inicia o fim dos tempos, levando toda a narrativa cósmica para seu ápice. Mesmo com tantas e repetidas idas e vindas, o trapaceiro tem que estar ali, para manter a narrativa em movimento, e muitas vezes dar um empurrão singelo para a conclusão tão esperada.

REFERÊNCIAS

BALIEIRO, Cristina et al. A imagem arquetípica do psicopompo nas representações de Exu, Ganesha, Hermes e Toth. Revista de Estudos Universitários-REU, v. 41, n. 2, 2015.

DE ALMEIDA GABANI, Michelle Suzana; SERBENA, Carlos Augusto. Exu: Um Trickster Solto No “Terreiro” Psíquico. Revista Relegens Thréskeia, v. 4, n. 1, p. 52-70, 2015.

GAIMAN, Neil. Mitologia nórdica. Editorial Presença, 2018.

QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social, v. 3, n. 1-2, p. 93-107, 1991.

ALVES, Victor Hugo Sampaio. Um Estudo Simbólico-arquetípico Da Edda Em Prosa. Textos completos do 4 Seminário Integrado de Monografias, Dissertações e Teses, p. 62, 2016.