Mãe Gothel e a busca pela beleza eterna

Atualmente existe uma profusão de filmes onde há uma revisitação dos contos de fadas. E isso é muito interessante, pois podemos observar que a Consciência Coletiva está buscando uma compreensão de si mesma por meio das imagens arquetípicas presentes nos contos de fadas e está tentando nos dizer o que há de diferente na atualidade e o que precisa ser trabalhado.

Esse é o caso do filme Enrolados, uma adaptação do conto de fadas Rapunzel. Que apesar de manter a estrutura do texto original nos mostra uma mudança significativa no comportamento feminino atual.

O filme começa com uma velha bruxa chamada Gothel que é a única a ver uma gota de pura luz de sol atingir o solo, criando uma flor mágica, com a capacidade de curar doentes e feridos. Ela a utiliza para manter-se jovem quando canta para a flor. Centenas de anos mais tarde, a rainha de um reino próximo adoece enquanto esperava um filho. Os seus guardas, em busca de uma cura, encontram a flor misteriosa. Eles fazem uma poção com a flor que cura a rainha e ela dá à luz uma menina chamada Rapunzel.

Gothel descobre que o cabelo dourado de Rapunzel mantém a habilidade de cura da flor (desde que não seja cortado), por isso ela sequestra a menina e a isola em uma torre, criando-a como sua própria filha.  Aqui há mudanças importantes em relação ao conto original.

A primeira é que, no original, Rapunzel é dada a bruxa devido a um acordo do pai com a mesma que o flagrou roubando hortaliças de seu jardim para sua mulher grávida. Além disso, a bruxa no original tem somente a intenção de ter a filha só para si. No filme Gothel sequestra a menina com a intenção de se manter jovem para sempre e a criança não é dada, ela é sequestrada.

Essa mudança da figura da bruxa demonstra uma mudança interessante no aspecto da consciência coletiva atual que é a busca da juventude eterna. Gothel é desesperada pela juventude e pela beleza eterna. Há uma fixação com o corpo, assim como em muitas mulheres hoje em dia!

Hoje é quase um sacrilégio envelhecer! E com isso muitas mulheres mutilam seus corpos em busca de juventude eterna. Esse aspecto da busca da juventude eterna já foi brilhantemente retratado no romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, que relata a estória de um jovem que devido a sua beleza física, se tornou modelo para uma pintura, e enquanto seu retrato definhava, revelando a decadência que é o seu interior, seu rosto continua com os traços angelicais dos seus 18 anos.

No caso de Gothel, ela faz isso por meio dos cabelos de sua filha, os quais ela impede cortar. Aqui podemos associar os cabelos ao cordão umbilical que a mãe insiste em manter com a filha. Pois impedindo a menina de crescer, ela teoricamente impede seu envelhecimento. E assim ela não deixa a menina viver a própria vida, impedindo-a de realizar seus sonhos.

Mas há outra diferença em Rapunzel. No conto original ela é muito mais submissa e somente enfrenta a mãe possessiva quando se apaixona. É nesse instante, quando a menina começa questionar a mãe que ela se transforma em Mãe Terrível e a expulsa do paraíso. Já em Enrolados ela anseia por sair e ver as luzes que sobem aos céus no dia do seu aniversário, e Gothel é desde o começo Mãe Terrível.

Isso demonstra que atualmente as mulheres anseiam em realizar seus projetos próprios e não somente se entregar ao amor. A fuga de Rapunzel é movida por um anseio e desejo além do âmbito do casamento. Por essa razão, na atualidade, a Mãe Terrível se constela na psique feminina mais cedo.

Além disso, Carl Jung em sua obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo, levantou a questão da problemática do complexo materno na mulher. E um desses problemas é a exacerbação do feminino, o qual ele narra:

A exacerbação do feminino significa uma intensificação de todos os instintos femininos, e em primeiro lugar do instinto materno. O aspecto negativo desta é representado por uma mulher cuja única meta é parir. O homem, para ela, é manifestamente algo secundário; é essencialmente o instrumento de procriação, classificado como um objeto a ser cuidado entre as crianças, parentes pobres, gatos, galinhas e móveis. A sua própria personalidade também é de importância secundária; freqüentemente ela é mais ou menos inconsciente, pois a vida é vivida nos outros e através dos outros, na medida em que, devido à inconsciência da própria personalidade, ela se identifica com eles. Primeiro, ela leva os filhos no ventre, depois se apega a eles, pois sem os mesmos não possui nenhuma razão de ser.

Gothel é uma mulher presa ao complexo materno. Ela afastou o masculino de sua vida e dos cuidados da filha e assim como no conto Rapunzel é sua única razão de viver. Não há menção a qualquer outra atividade de Gothel a não ser vigiar e cuidar da filha. Atividades intelectuais que desenvolveria seu animus e a relação com o masculino não são cultivadas.

Mas mesmo aqui também há uma diferença pequena, mas significativa. Mesmo com o elemento masculino saindo de cena, o pai em Enrolados não entregaria sua filha tão facilmente e nem cairia na proposta da esposa e da bruxa, por isso a menina teve de ser sequestrada. E ao final ele reaparece na vida cotidiana, coisa que não ocorre no conto.

Isso significa que seu animus não é tão fraco, e ela tem a oportunidade de resgatar essa dimensão de sua psique quando rompe os laços com Rapunzel. Outra mudança digna de nota é justamente a figura masculina e a relação do feminino com ela.

No filme não há um príncipe, o mocinho é um ladrão chamado Flyn com jeito de malandro que roubou justamente a coroa da princesa no castelo. Além disso, ele não sobe na torre de Rapunzel por amor, mas para fugir de seus perseguidores. Aqui a figura do masculino se aproxima de Hermes, deus traquinas, padroeiro dos ladrões e senhor da inteligência e astucia.

No filme não há paixão à primeira vista e Rapunzel precisa fazer um acordo com ele para sair da torre. Se ele a levar para ver as luzes e trazê-la de volta em segurança, ela devolve a coroa a ele. O que há de interessante nessa mudança é que a mulher vem ao longo do tempo parando de sonhar com um príncipe encantado e com amor à primeira vista. Agora elas anseiam com uma relação mais real e que percebem que o amor é algo a ser construído por meio do conhecimento e aceitação da sombra um do outro.

Com o ingresso no mercado de trabalho ela teve de desenvolver características que antes eram restritas ao masculino como a inteligência, o intelecto, e a astucia. Observem que Rapunzel teve de aprender a negociar com seu aspecto masculino para que ele a tirasse da prisão. Somente iniciando uma negociação com seu animus é que a mulher pode se desligar do complexo materno. Pois, como é dito na psicanálise é o masculino que faz a interdição entre mãe e filho. E isso é bem significativo, pois é ele quem corta os cabelos (cordão umbilical) de Rapunzel ao final.

Ao final, quando há o corte do cabelo, a ligação de Gothel e Rapunzel se corta e a mãe tem de aceitar seu envelhecimento e maturidade. A figura da mãe terrível e seu aspecto castrador morre e Rapunzel pode estabelecer uma melhor relação com seu próprio feminino e o aspecto materno em si mesma.

Quando os filhos crescem e saem de casa é um aspecto desafiante para a mulher. Se a mulher não desenvolve uma objetividade, pode até cair em depressão.  Gothel que é a mesma figura que a Rainha, mostra que agora consegue se relacionar com os aspectos masculinos de sua psique, representados pelo Rei. O masculino a conscientizou que há ela pode buscar outros interesses em sua vida fora do âmbito da maternidade.

Além disso, temos no final quatro personagens, dois femininos e dois masculinos, em um equilíbrio de opostos. Ainda temos um longo caminho, mas podemos notar aqui, um protótipo da alteridade se desenvolvendo em nossa consciência coletiva.

 

Referências:

CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas historias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo:2002.

VON FRANZ, M. L. Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

Psicanalista Clínica com pós-graduação em Psicologia Analítica pela FACIS-RIBEHE, São Paulo. Especialista em Mitologia e Contos de Fada. Colaboradora do (En)Cena.